“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 15 de novembro de 2015

Uma história antiga

      Aconteceu-me há muitos anos no antigo Cinema Condes, em Lisboa, já na fase final da sua existência como sala de cinema. Na última ou numa das últimas vezes que lá entrei entrou também uma mulher ainda nova, de olhos brilhantes e carregando uma pequena caixa que apertava contra o peito. Não me lembro de que filme se tratava mas de que para uma sessão da tarde estava muita gente. Sobre aquela mulher, cujo rosto já não recordo, construí uma história: de que por circunstâncias da vida tivera que empenhar algum/ns bem/ns que agora tinha ido resgatar antes de assistir a um filme numa sala de cinema. Nunca mais vi aquela mulher mas a ela associo uma das últimas sessões de cinema a que assisti em Lisboa. 
                       She's Funny That Way 2
    Claro que isto não aconteceu na mesma sala em que assiti a "A Última Sessão"/"The Last Picture Show", de Peter Bogdanovich (1971), que uns anos antes tinha visto na primeira sala de cinema situada num centro comercial em Lisboa. Passado este tempo todo, do cineasta ficaram-me na memória como mais notáveis "Lua de Papel"/"Paper Moon" (1973), "Noites de Singapura"/"Saint Jack" (1979), "Romance em Nova Iorque"/"They All Laughted" (1981), "Máscara"/Mask" (1985), "Apanhados no Acto"/"Noises Off..." (1992) e "O Miar do Gato"/"The Cat's Miew" (2001). Passados mais de 10 anos depois deste seu último filme de longa-metragem para cinema, e decorridas muitas outras últimas sessões nas mais variadas e improváveis salas de cinema de Lisboa, foi para mim uma grata surpresa poder assistir a "Ela é Mesmo... o Máximo"/"She's Funny That Way" (2014) que marca o regresso do cineasta sob os auspícios dos bem mais novos Wes Anderson (ver "Oh, não, outro artista americano", de 18 de Julho de 2012, e "O regresso de um artista", de 20 de Abril de 2014) e Noah Baumbach (ver "Fresca e encalhada", de 30 de Outubro de 2013, e "Agora nem de patins", de 14 de Junho de 2015) como produtores executivos.
     Centrado numa troupe de teatro que prepara uma nova peça, intitulada "Uma Noite Grega", e nas relações de cada um dos intervenientes, este seu mais recente filme é uma comédia americana típica de Bogdanovich que integra referências de screwball comedy e da equivocidade que a caracterizaram, com uma referência explícita nos diálogos que, para que mesmo quem não conhece saiba, logo a seguir à intromissão inesperada de um cinéfilo esgrouviado é mostrada em excerto do filme de Ernst Lubitsch - e se não conhecem as comédias americanas deste não dou nada por vós. 
                     
    O local é New York, assinalada nomeadamente pelos seus yellow cabs, mas nas trocas de par que se sucedem e nas recorrências da mesma expressão do protagonista, Arnold Albertson/Owen Wilson, um encenador pinga-amor, ao longo da história narrada pela protagonista, Isabella Patterson/Imogen Poots, uma call girl que ele converte em actriz, paira inequívoco o lubitschiano equívoco e o tom destravado do par Katharine Hepburn-Cary Grant sob o disface do par Katharine Hepburn-Spencer Tracy, que as referências mais recentes a Marilyn e Audrey Hepburn não iludem, antes desvelam - se também não conhecem também não posso fazer nada por vós...
    Por trás da erudição cinematográfica de Peter Bogdanovich, co-argumentista além de realizador de "Ela é Mesmo... o Máximo", paira um certo conformismo que mesmo o brio do seu desempenho como realizador e do próprio filme não ilude: aquele é o modelo do filme do cineasta reciclado e com adornos especiais. O que significa que, ao recuperar o seu fulgor passado, ele aqui faz uma revisão e síntese (a primeira na sua obra, é certo, e de nível superior) desse mesmo passado sem lhe acrescentar nada de verdadeiramente novo e significativo, como num processo de consolidação de corredores, portas, palco, trocas, trocadilhos e outras trapalhadas, que as presenças de Jennifer Aniston em piscadela de olho para o presente e de Cybill Shepherd em piscadela de olho para o passado apenas vêm aumentar.
                     She's Funny That Way 14
      Quero com isto dizer que só aprecia inteiramente este "Ela é Mesmo... o Máximo" e o degusta verdadeiramente, compreendendo-o até ao fim e percebendo que a comédia é um género maior do cinema americano, quem conhecer o contexto da comédia americana que ele com inventiva e brio evoca.   
        Saúdo o regresso de um cineasta americano muito importante e desejo-lhe um ainda melhor futuro, enquanto continuo a pensar na espectadora de há muitos anos num há muito extinto cinema de Lisboa: aquele estapafúrdio espectador de cinema do final, que espero que pelo menos esse vocês reconheçam, podia ser eu.

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