“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 31 de janeiro de 2016

O senhor do segredo

   Jacques Rivette (1928-2016) foi a consciência crítica e teórica da nouvelle vague francesa durante os anos 50 e início dos 60 nomeadamente nas páginas dos Cahiers du Cinéma, e tornou-se com a sua estreia no cinema, depois de preliminares, com a curta "Le Coup du Berger" (1956) e a longa-metragem "Paris nous appartient" (1960) a sua consciência prática. Cada um dos seus textos críticos era também teórico, cada um dos seus filmes uma experiência e um ensaio no cinema.
    Os filmes que entre 1966 e 1967 realizou para a série "Cinéastes de notre temps" sobre Jean Renoir deixavam falar eloquentemente sobre o seu segredo, que toda a sua obra, incluindo o seu segmento para "Lumière et compagnie" (1995), confirmou. 
                             
    Depois de "A Religiosa"/"Suzanne Simonin, la Religieuse de Diderot"(1966), baseado em Denis Diderot e que, censurado, levantou uma enorme celeuma e polémica em França, e de "L'amour fou" (1968) os seus filmes foram-se fechando num crescente hermetismo, que era também um caminho de ascese pessoal. Mais longos, estabeleciam rimas com a cultura, nomeadamente a literatura francesa (Honoré de Balzac) e com o próprio cinema, nomeadamente o seu.
    Foi o tempo de "Out 1: Noli me tangere" (1970) e de "Out 1: Spectre" (1971), versão curta de 4 horas e 20 minutos do anterior que tinha 12 horas e 30 minutos, que alguns consideram a sua obra-prima, a que se seguiu "Céline et Julie vont en bateau" (1974). Da tetralogia "Les filles du feu" ou "Scènes de la vie paralèle" fez apenas "Duelle"  e "Noroit"  (1976), mais tarde "História de Marie e Julien"/"Histoire de Marie et Julien" (2003), filmes abissais sobre a vida e os vivos, a morte e os mortos, fantasmas.
                               Jacques Rivette à Cannes, en 2001.
     Sempre longe dos holofotes da ribalta e do cinema comercial, tornou-se aparentemente "mais acessível" em "Merry-Go-Round" (1978) e "Pont do Nort" (1981), "Amor de Rastos"/"L'amour par terre" (1983), "Hurlevent" (1985) baseado em Emily Brontë" e "O Bando das Quatro"/"La Bande des quatre" (1988). Com "A Bela Impertinente"/"La Belle Noiseuse" (1991), filme de ficção insuperável sobre a criação pictórica, e "Joana D'Arc, a Donzela I. As Batalhas e II. As Prisões"/"Jeanne La Pucelle I. Les Batailles et II. Les Prisons" (1994), filme em duas partes imprescindível sobre a história, houve quem admitisse a fama e glória do cineasta, que em "Alto Baixo Frágil"/"Haut Bas Fragile" (1995), "Secret Défense" (1997), "Sabe-se Lá"/"Va Savoir" (2001), "Não Toquem no Machado"/"Ne touchez pas la hache" (2007) ele se apressou a desmentir ao sublimar, confirmando em inteligência e depuração a sua fama pessoal de cineasta excepcional para sua honra pessoal.
     Despediu-se com "36 Vistas do Monte Saint-Loup"/"36 vues du pic Saint Loup" em 2009, uma despedida em beleza e comovedora de quem viveu do cinema e para o cinema, que enriqueceu de forma decisiva pelos seus mestres confessos como hitchcock-hawksiano, a sua intransigência crítica e o seu excepcional cinema em que avulta o respeito pelo trabalho dos actores, que filmava como actores ao trabalho mais do que como personagens - um filme como o documentário da sua filmagem.
                   
    Denunciou lapidarmente o abjecto no cinema nos anos 50 e a partir daí tornou-se a grande referência de uma ética do cinema, em que Jean-Luc Godard e Serge Daney pegaram. Nunca transigiu no seu gosto pessoal, mesmo com os seus companheiros da nouvelle vague, o que está patente nos seus filmes de um génio pessoal incomparável, em que a sua estética cinematográfica transparece a sua ética como em mais ninguém, o que constitui a sua poética pessoal.
     É por causa dele que eu não posso baixar a guarda em tudo aquilo que escrevo. E lembro aqui que os seus escritos não estão publicados, salvo os seus inéditos de então em "Trois films fantômes de Jacques Rivette - Phénix suivi de L'An II et Marie et Julien, Précédé d'un Mode d'emploie par Hélène Frappat et Jacques Rivette (Paris: Cahiers du Cinéma, 2002). Sobre ele é decisivo "Jacques Rivette, secret compris", de Hélène Frappat (Paris: Cahiers du Cinéma, 2001). Para vossa confusão, acrescento que quem, longe dele, esteve mais próximo dele foi Manoel de Oliveira. Não preciso de mencionar aqui todos os que trabalharam com ele, com os quais, Jean-Luc e os Cahiers incluídos, emocionado partilho neste momento o luto mais carregado.

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