“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Até ao fim do mundo

    "Cartas da Guerra", de Ivo M. Ferreira (2016), sobre a correspondência de António Lobo Antunes com sua mulher enquanto ele estava em Angola, durante a guerra colonial, e ela em Lisboa, no seu exigente e justificado preto e branco é um filme invulgar e muito bom sobre uma época pouco visitada pelo cinema português. As cartas em causa foram publicadas com organização das filhas de ambos, Maria José e Joana Lobo Antunes, em "D'este viver aqui neste papel descripto - Cartas da guerra" (Lisboa: Dom Quixote, 2005).           
                    
     O facto de as cartas, dramáticas e belíssimas, serem lidas torna-as outras, e serem lidas por uma voz feminina, correspondente a quem elas eram destinadas e as leu, confere-lhes um carácter muito especial, devolve-as ao seu original do mesmo modo que as torna quase abstractas.
    Mas Ivo M. Ferreira não se limita a elas, pois reconstitui o meio e o ambiente, incluindo brancos e negros e sem esquecer a soberba paisagem, em que o autor das cartas vivia quando as escreveu, o que torna este "Cartas de Guerra" um retrato do Lobo enquanto jovem inteiramente conseguido. Mesmo os elementos radiofónicos, televisivos e cinematográficos estão perfeitamente utilizados (até à máquina de projectar), tal como o espectáculo ao vivo, enquanto as representações de actores predominantemente jovens são sempre justas e seguras - Miguel Nunes como António está bem na sua concentração, Margarida Vile-Nova como Maria José vê-se menos mas é sobretudo a voz, e fiquei surpreendido com um Francisco Hestnes Ferreira entre eles.
                     Já estreou o filme Cartas de Guerra de Ivo M. Ferreira
     Claro que nessa altura, 1971-1973, a diferença passava já pelos oficiais, mas entre trabalho, conversas e perigo a vida do António estava toda focalizada naquele grande amor, de que a guerra o separara, e no que entretanto ia escrevendo já enquanto amadurecia politicamente. Muito bem, "Cartas da Guerra" reprime o acto de escrever, mesmo as cartas, que assim, apenas ouvidas, como que adquirem vida própria e tornam mais abstracto o próprio meio de guerra mostrado.
     Com argumento de Ivo M. Ferreira e Edgar Medina, "Cartas da Guerra" conta com excelente fotografia de João Ribeiro e montagem de Sandro Aguilar. Por uma qualquer coincidência alquímica de talentos, resulta um belo filme de memórias, que prescinde de um narrador diegético no presente, mais do que um filme meramente epistolar. Perfeito no seu cristal do tempo, honra todos aqueles que nele participaram e dignifica o escritor.    

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