“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 17 de setembro de 2016

Em território desconhecido

     "Se as Montanhas Se Afastam"/"Shan eh gu ren", a mais recente longa-metragem do chinês Jia Zhang-ke (2015), é uma nova surpresa na sua obra, que o faz entrar e nos faz entrar em território desconhecido.
     Dividido em três partes distintas, acompanha Shen Tao/Tao Zhao com aqueles que a rodeiam em três fases distintas. Primeiro em 1999, no ano dos festejos da mudança de século e de milénio, quando ela é disputada por dois pretendentes: Zhang Jinsheng/Yi Zhang e Liangzi/Jing Dong Liang, o primeiro a subir na vida, o segundo um pobre trabalhador. Como é bom de ver ela escolhe o primeiro e o segundo parte, deixando atrás de si as chaves da sua casa, que vão ressurgir mais tarde.     
                       se as montanhas se afastam
        Depois de uma breve passagem por uma época intermédia, que vai corresponder à morte do pai de Shen Tao numa estação ferroviária, momento soberbo de cinema, numa época em que ela já está divorciada e acolhe o filho para a acompanhar no funeral, passamos para 2014 para seguir Liangzi, que entretanto se tornara mineiro, casado e com um filho, numa época em que lhe é diagnosticado um cancro que ele não tem dinheiro para tratar. De regresso à terra, a emblemática Fenyang onde Jia Zhang-ke nasceu e onde se passam os seus filmes iniciais, vai ser Shen Tao a resolver a situação e a devolver-lhe as chaves da sua casa, que ele deitara fora ao partir.
       Por último, a entrada em território desconhecido explicita-se totalmente com a passagem para 2025, para acompanhar o filho de Shen Tao, Zhang Daole/Zijian Dong, que se mudou com o pai para a Austrália e já só fala inglês (é conhecido por Dollar), pelo que tem de receber aulas da língua materna, e se envolve com a respectiva professora, Mia/Sylvia Chang. Pelas mãos desta regressam as chaves de casa e no final regressa Shen Tao que dança sob a neve que cai. 
                      se as montanhas se afastam
     Por este breve mas indispensável resumo se percebe que o cineasta investe aqui o tempo como nunca antes fizera, para se confrontar com passagem do tempo e a caducidade de tudo. Enquanto a própria China vai passando também, no final já como uma experiência distante para Zhang pai e Zhang filho. Não sei de outro filme em que o cineasta tenha arriscado tanto com tão pouco para nos transmitir a deslocação no espaço (significativas as várias viagens de comboio) e a passagem do tempo, perante o que o melodrama se entende plenamente numa civilização milenar que continua a ter a família como seu núcleo fundamental.
      Do ponto de vista cinematográfico são especialmente importantes os diálogos num só plano e os diálogos com campo-contracampo, num jogo fascinante e sempre justificado. Jia Zhang-ke continua a ser, mais do que nunca agora que contraria todas as expectativas, um dos mais destacados cineastas emergentes do Século XXI  - sobre ele ver "Contra o esquecimento", de 29 de Janeiro de 2012, e "O devir-violento", de 15 de Dezembro de 2013.

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