“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 5 de abril de 2015

Poética de Manoel de Oliveira

    Escrevi aqui há pouco sobre Manoel de Oliveira ("Por Manoel de Oliveira", de 15 de Março de 2015) e volto a fazê-lo agora que ele chegou ao fim da sua vida. Uma vida longa e muito prolífera, que o situa entre as maiores e mais universais personalidades da cultura portuguesa de sempre, o primeiro nessa arte nova e moderna que foi e ainda é o cinema.
                    
   Depois de ter sido  boémio e desportista de mérito na juventude, ele teve uma vida indissociável da sua actividade criativa como cineasta, sempre envolvido pelo que o rodeava tanto na vida como na cultura, sem fronteiras que não fossem as da própria criatividade humana no que ela, nacional e internacionalmente, teve de mais importante. Mesmo a Deus, em que acreditava, interpelou-o sempre para interpelar o seu tempo. A História de Portugal procurou-a onde ela é mais difícil de encontrar, onde ela mais dói e se torna mais significativa. Na literatura acompanhou o seu tempo, o do segundo modernismo português, o da revista Presença, e, tendo-o em conta, as suas escolhas nem sequer são surpreendentes mas de uma grande coerência. E aí nunca transigiu na sua integridade pessoal como criador original, que faz os seus filmes em seu nome pessoal. 
   Com ele morreu uma das últimas testemunhas do cinema mudo (como o cinema nasceu), que assistiu em tempo real aos primeiros filmes de Charles Chaplin, por exemplo, aos filmes do expressionismo alemão e da vanguarda soviética e francesa dos anos 20 do Século XX. O acolhimento reservado em Portugal à sua primeira curta-metragem, ainda muda, "Douro, Faina Fluvial" (1931), um documentário excepcinal que veio a ter duas versões sonoras, marcou o tom para a escassa popularidade da sua obra entre nós. Tendo escolhido as suas influências entre os maiores nomes do cinema do seu tempo (Carl Th. Dreyer, John Ford, Robert Bresson, embora ele próprio referisse pontos de contacto com Jean Renoir e Jean Vigo, Yasujiro Ozu e o cinema japonês clássico, Roberto Rossellini e Luis Buñuel, mais tarde Jean-Marie Straub/Danièle Huillet), teve uma vida difícil durante o Estado Novo, com o qual nunca escondeu a sua oposição e pelo qual foi largamente prejudicado em concretos termos censórios e perseguido, sem embargo do que antecipou várias coisas em "Aniki-Bóbó" (1942), a cor em "O Pintor e a Cidade" (1956), e foi um dos nomes fundadores do Novo Cinema Português dos anos 60 como referência ética e estética e com "Acto da Primavera" (1963) e "A Caça" (1964).
                       Oliveira, actor burlesco no «Lisbon Story», de Wim Wenders
    O seu cinema encaminhou-se depois para a "tetralogia dos amores frustrados" e mais tarde para obras fundamentais do cinema dos últimos 40 anos sob a égide do "Non", que preenchem uma obra rica e multifacetada, contudo sempre moderna e fiel ao seu próprio entendimento do mundo e de Portugal, liminarmente presente nos seus primeiros filmes. Aí avultam as suas relações com a literatura portuguesa - José Régio, Camilo, Agustina, Eça de Queirós, Raul Brandão - mas também internacional - Paul Claudel, Samuel Beckett, Dostoievski, Nietzsche, Madame De La Fayette, a Bíblia. Na História de Portugal "Non, ou A Vã Glória de Mandar" (1990), "Palavra e Utopia" (2000), "O Quinto Império - Ontem como Hoje" (2004) são pontos de referência, marcos decisivos. 
     De tal modo que se existe uma poética do cinema português ela é indissociável do seu nome. Uma poética irreverente, rebelde, simultaneamente respeitadora e crítica, sempre fiel a si próprio e à sua ideia do cinema, do seu tempo e dos seus meios, por isso eventualmente localizada e minoritária, que o encaminhou para uma estética persistente do plano longo e da palavra dita, recitada como numa prece, que a música vem esclarecer, completar e enriquecer. Este elemento, o da palavra dita, ainda que indossociável da imagem, do plano, do espaço do plano, embora eventualmente contra ele, terá sido aquele a que mais resistiu um público habituado no cinema à imagem-tipo do cinema, simultaneamente o elemento em que Manoel de Oliveira, sempre autor do argumento, da adaptação e dos diálogos dos seus próprios filmes, mais fundamente questionou o próprio cinema e a sua linguagem standartizada e sustentou a sua poética própria. 
                   "Cristovão Colombo - O Enigma" de Manoel de Oliveira (Portugal/França)
   Pelo caminho tornou-se um dos mais importantes cineastas de toda a história do cinema mundial e um dos mais influentes, nomeadamente no cinema português, em que continuou como figura de referência para todos os mais novos, alguns dos quais, como António Reis (1927-1991), Paulo Rocha (1935-2012) e João César Monteiro (1939-2003), partiram antes dele. Sem poupar palavras, e sem conhecer "Visita ou Memórias e Confissões" (1982), o seu filme para ser visto só agora, depois da sua morte, Manoel de Oliveira foi um cineasta indissociável do cinema e do seu tempo, e um cineasta de excepção que apenas a graça, no sentido grego e cristão (1), poderá explicar ter sido português. 
    A escassa popularidade que o acompanhou em Portugal, em sentido inverso do que aconteceu noutras partes do mundo, deve-se fundamentalmente à sua radical intransigência criativa mas também à escassa divulgação da sua obra em termos sistemáticos e acessíveis - os vários e valiosos especialistas (entre os quais me conto), como acontece aos especialistas sempre falaram mais entre si do que para fora, para o espectador comum, com outros hábitos e habituado a um outro, mais comercial tipo de filmes.
                   Happy 106th birthday to the great Manoel de Oliveira!
   Em termos pessoais, do Manoel fica-me a imagem da sua boa disposição e da sua vivacidade, indossociáveis para mim da sua inteligência e da sua argúcia. Sentindo muito a sua partida, que ele próprio contudo invitavelmente esperava, no seu nome e na sua obra aqui reafirmo a minha confiança no cinema como arte maior. À família, encabeçada por Maria Isabel, e aos companheiros da vida cinematográfica, nas pessoas dos actores Luís Miguel Cintra e Leonor Silveira, apresento a expressão do meu grande pesar e do meu maior respeito. 
   "Não sei explicar. Faço um filme como se cometesse um crime. É a minha sensação. Talvez se não fizesse filmes fosse um criminoso. É tudo o que posso dizer." (2)  "(...) A atracção pelo abismo faz esquecer o perigo da morte que é, dentre as coisas prometidas pela vida, a única que está garantida." (3). Talvez que a ideia da morte, a sua inevitabilidade e proximidade, a sua materialidade mesma, em especial a morte da mulher, seja a melhor chave para o cinema de Manoel de Olveira e a sua poética (4). O que, se for verdade, na esteira de "Francisca"(1981) e de "Vale Abraão" (1993) torna "O Estranho Caso de Angélica" (2010), recuperação tardia de um projecto dos anos 50 do Século XX, o seu decisivo filme-testamento.
                    
     Viver a sua vida e construir a sua obra em convívio e em conflito com o seu tempo terá sido a sua grande herança, em que me reconheço. Continuo, Manoel de Oliveira, continuamos todos à espera do seu próximo filme. Enquanto exigimos da distribuição cinematográfica uma reposição da sua obra à altura das precedentes (Yasujiro Ozu, Ingmar Bergman, Satyajit Ray) e da decorrente (Roberto Rossellini), mas mais completa, das cinematecas, fundações e associações culturais que continuem a cumprir a sua obrigação para com o cinema e para consigo.

      Notas
(1) Cf. "Sobre graça e graciosidade", de Claudia J. Fischer, com Prefácio de Miguel Tamen (Lisboa: Verbo, 2015).
(2) Manoel de Oliveira in "Conversas com Manoel de Oliveira", de Antoine de Baecque e Jacques Parsi (edição portuguesa Porto: Campo das Letras, 1999, pág. 60).
(3) Manoel de Oliveira a propósito de "Le Soulier de satin", ibidem, pág. 82.  
(4) Num sentido próximo, cf. "A Filosofia da Composição", in "Poética (Textos Teóricos)", de Edgar Allan Poe - edição portuguesa com tradução, introdução, cronologia e notas de Helena Barbas (Lisboa: Fundação Calouste Gubenkian, 2004, páginas 29-52, em especial pág. 42). 

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