“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 12 de abril de 2015

Tempo português

   É aí a terceira vez que vejo "Ruínas", de Manuel Mozos (2009), e a cada nova vez aumenta o meu deslumbramento com o filme. De facto, trata-se do mais inesperado, improvável dos documentários, feito sobre o passado em sons, palavras de época sobre imagens actuais do que do passado sobrou degradado, arruinado, já quase só como vestígios de um outro tempo.
                    
   O documentário de época, cinematográfico ou televisivo, tende normalmente para as vinhetas do passado e as palavras no presente dos sobreviventes. Instaurando uma nova prática contra velhos hábitos, "Ruínas" de Manuel Mozos consegue muito bem, de forma superlativa jogar em dois tempos dissociados, o da imagem presente do que restou do passado, salvo no início desabitada de gentes, e o do som, com palavras retiradas de textos passados (identificados no genérico de fim) lidos no presente por vozes actuais.
   Para além das palavras escritas em placas e cartazes nas imagens do filme, as que são lidas pelas vozes actuais inculcam uma diacronia, a do tempo em que foram escritas e a do tempo em que são agora ditas, o que faz com que as imagens, de uma desoladora e estarrecedora beleza, ocupem um lugar sincrético como o que sobrou em ruínas desse tempo passado mas também de tempos anteriores e posteriores.
                    
   A predominância do plano fixo das imagens cruas e desabitadas impõe a ideia de um tempo que parou, de um tempo hoje cristalizado para o futuro, e da sua mistura com as palavras, escassos ruídos e uma música quase em surdina resulta a dissociação de um passado e um presente, em que neste são mostradas e tornadas presentes uma arquitectura portuguesa típica de meados do Século XX, estruturas industriais e outros equipamentos desactivados em que se movem elementos naturais - bandeiras, pássaros, ramos de árvores (em movimentos por vezes quase imperceptíveis) - ou humanos - gente vária num cemitério, uma voz na instalação sonora, automóveis na noite -, o que tudo confere ao filme um tom sepulcral, fora do tempo já.
   Neste jogo com os espaços e com o tempo "Ruínas" de Manuel Mozos atinge um elevado grau de precisão quase clínica, entomológica, que não significa ausência de emoção, em que espaços e tempos deslizam uns sobre os outros como se criando um espaço-tempo abstracto, outro, em que tudo e todos no passado e no presente se encontram, esclarecem e anulam em campo raso - em campa rasa, já que todas as palavras têm autor e são ditas por outros e todas as imagens desabitam o tempo das palavras para o tornarem presente como espaços vazios, desoladoramente abandonados. 
                     
   Em tempos compósitos e espaços que se desdobram nos seus diferentes, sedimentados  tempos, em que vozes dizem palavras de estarrecedora e eloquante frieza de arquivo, mesmo as que têm origem na poesia portuguesa, em cantigas ou cantos, decididamente que Manuel Mozos é um dos nomes mais importantes a levar em conta no cinema português contemporâneo, mostrando em "Ruínas" que a promessa contida nomeadamente em "Xavier" (1992) não era vã.

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