“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Poética de Orson Welles

    Nos seus escritos sobre cinema, em "L'image-temps" (1) Gilles Deleuze observa justamente que Orson Welles foi um grande cineasta do espaço, do tempo e do falso. Do espaço por causa da profundidade de campo com efeitos dramáticos e dos movimentos de câmara, em especial o travelling. Do tempo porque, em plano-sequência, a profundidade  funcionava em termos espaciais mas também temporais, de temporalização. Do falso por causa do carácter falsificante de algumas das suas personagens, por oposição às verídicas (2).
    Espacialmente, desde "O Mundo a Seus Pés"/"Citizen Kane" (1941) que os planos adoptam nos seus filmes a profundidade de campo, aliás nesse caso muito trabalhada pela grande angular de Gregg Toland. Essa tendência para uma certa deformação da profundidade vai ser continuada, por exemplo, na sequência final de "A Dama de Xangai"/"The Lady from Shanghai" (1948) por causa e efeito dos espelhos, depois em "Macbeth" (1948), um dos melhores filmes shakespearianos de sempre, e "Otelo"/"Othelo" (1952), feito já na Europa com recursos escassos.
                    
      O seu filme mais famoso por causa do plano-sequência com profundidade de campo, "A Sede do Mal"/"Touch of Evil" (1958), viu a pertinência da sua imputação parcialmente negada pela versão que do filme Jonathan Rosembaum estabeleceu em 1998 seguindo as indicações do próprio cineasta à época, embora contra a vontade de Welles a versão original do filme permaneça, nomeadamente na sua abismal abertura.
    O tempo surge verbalmente evocado quer em "O Quarto Mandamento"/"The Magnificent Ambersons" (1942), em que, sem que o final seja da responsabilidade dele, funciona muito bem a evocação do tempo passado - tão bem como em "O Mundo a Seus Pés", o mesmo sucedendo no filme mais falsificante dele nos anos 50, "Relatório Confidencial"/"Confidential Report" ou "Mr. Arkadin" (1955), geralmente minimizado porque pouco conhecido.
     Mas quer em termos espacio-temporais quer em termos narrativos são "O Processo"/"The Trial" (1962), baseado em Franz Kafka e em que regressa à deformação espacial, e "As Badaladas da Meia-Noite"/"Chimes at Midnight" (1965), baseado em quatro peças de William Shakespeare, que condensam em si a mestria de Orson Welles, apontando mesmo o segundo para a figura da generosidade, da "bondade" da vida em si mesma que leva à criação na personagem tornada central de Falstaff (3).
                    
    Depois de "Uma História Imortal"/"Histoire immortelle"/ The"Immortal Story" (1968), também baseado no falso e que foi o seu primeiro filme a cores, os seus filmes finais regressam à questão do falso: "F for Fake" (1975) através da figura do falsário, superiormente trabalhada, ""Filming Othelo" (1978) através da observação na mesa de montagem do falso do filme de 1952 que o cinema faz passar por verdadeiro.
     Além do mais Orson Welles foi um grande actor, nomeadamente nos seus próprios filmes em que interpretou a personagem falsificante ("Relatório Confidencial", "A Sede do Mal", "Uma História Imortal") mas também Falstaff. A questão do homem falsificante era por ele esclarecida quando dizia que ele o detestava moralmente mas não humanamente na sua falsidade de força esgotada pela vida, quando oposta ao homem verídico, que se toma por homem superior e por isso capaz de julgar: contra este, o primeiro era uma força em devir, uma irredutível multiplicidade, uma forma em que as personagens se transformam umas nas outras (4).
     Enquanto "O Estrangeiro"/"The Stranger" (1946) confirma a ambiguidade do homem falsificante perante o homem verídico, o ainda inédito e deixado inacabado por ele "The Other Side of the Wind" mais do que o seu "Dom Quixote de Orson Welles"/"Don Quijote de Orson Welles", que apenas confirma expressamente o quixotismo na sua obra numa versão que não lhe faz justiça (Jess Franco, 1992), aponta para uma experiência total semelhante à de "O Mundo a Seus Pés" e de "As Badaladas da Meia-Noite". Um filme que, acabado por eles, os especialistas wellesianos americanos nos devem a todos - e lhe devem a ele.
                   
     Se percebermos que no tratamento do espaço e do tempo por Orson Welles há uma tendência para os "falsificar" em termos de cinema, exacerbando-os em termos realistas mas também expressionistas - Gilles Deleuze chama-lhe mesmo neo-expressionismo (5) - poderemos perceber que o praticante das artes mágicas foi o mago que ele pôs a trabalhar nos seus filmes, entre homem falsificante e homem da dádiva, especialmente quando envelheceu gordo como actor. A sua foi, pois, uma poética da magia do cinema e no cinema: da profundidade de campo e do espaço, das sombras e das oposições e combinações de claro e escuro (6), do tempo e das potências do falso que põem em causa a capacidade de julgamento, que nem "It's All True" (1942), o documentário que filmou no Brasil mas não pôde montar, nem os dispersos filmes curtos em que se desdobrou a partir dos anos 50, permitem desmentir, antes confirmam. 
    Sem Orson Welles não se pode compreender o primeiro século do cinema nem o cinema enquanto arte maior, de que ele foi, com Sergei Eisenstein, o maior génio, a que apenas Fritz Lang, Friedrich Murnau, Alfred Hitchcock e Jean Renoir podem ser comparados. Influenciados por ele, Stanley Kubrick e Alain Resnais, Francis Ford Coppola e Martin Scorsese foram os seus principais continuadores (7). 
     Sobre Orson Welles, ver "Génio de Orson Welles", de 10 de Julho de 2015.
                   
         
        Notas
      (1) Paris: Les Éditions de Minuit, 1985 (edição portuguesa "A Imagem-Tempo" - Lisboa: Assírio & Alvim, 2006; Lisboa: Documenta, 2015).
      (2) Gilles Deleuze e Félix Guattari referem-se também a Welles em "Kafka - Para uma Literatura Menor", Capítulo 8, "Blocos, séries, intensidades", Observação III, pág. 130 da edição porutuguesa (Lisboa: Assírio & Alvim, 2003). 
        (3) Cf. Gilles Deleuze, op. cit. na nota (1), págs. 185-186.
        (4) Idem, ibidem, págs. 181-192.
        (5) Idem, ibidem, págs. 187-189. 
        (6) Idem, ibidem.
        (7) Da bibliografia mais recente, vasta como era devido por altura do centenário, permito-me destacar aqui "My Lunches With Orson: Conversations Between Henry Jaglom and Orson Welles", edited and presented by Peter Biskind (New York: Metropolitan Books, Henry Holt and Company, 2013) - edição francesa "En tête à tête avec Orson - Conversations entre Orson Welles et Henry Jaglom", editées et presentées par Peter Biskind (Paris: Robert Laffont, 2015).

Sem comentários:

Enviar um comentário