“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

terça-feira, 10 de junho de 2014

O mistério das sombras

    "A Vida Invisível" (2013), que assinala o muito aguardado regresso de Vítor Gonçalves depois de "Uma Rapariga no Verão" (1986), constrói-se e constrói o mistério em que reside o seu fascínio sobre a ideia de "retenção". Num filme em que as referências narrativas são reduzidas ao mínimo, também as referências visuais e sonoras são extremamente escassas, esparsas e diluídas embora muito precisas, como se movendo-se numa fenda entre o passado e o futuro, a vida e a morte, a chegada e a partida em que estabelece uma emoção contida. Nessa justa medida este é um filme depurado até ao excesso, que extrai do seu corpo tudo o que emocionalmente não lhe é essencial.
                    
  Relativamente ao seu auspicioso filme de estreia, a radicalidade da proposta do cineasta mantém-se, substituindo a despedida da juventude pelo abraçar da idade madura sem deixar atrás de si nada que não seja para Hugo/Filipe Duarte a memória de António/João Perry e dos espaços em que ambos conviveram no tempo que precede a despedida. No limiar entre a vida e a morte, Hugo assume a fatalidade da memória que o acabrunha no seu ensimesmamento triste e deixa fugir entre duas escalas Adriana/Maria João Pinho, que talvez nem sequer lhe interesse já - mulher-fêmea é a enfermeira que assiste António nas vésperas da sua morte.
    Os corredores do Terreiro do Paço desenham-se como labirínticos para uma personagem que aí se perde e encontra para o que não sabe ainda e talvez não quisesse na sua tristeza e escuridão, para despertar para o único momento de revolta na hora da morte em que não está presente. Mas os labirintos do protagonista são construídos em termos visuais pela própria realização de Vítor Gonçaves, na criação do plano que quando acompanha Hugo e António contrasta luz e sombra, com predominância desta, para se abrir à luz nos encontros dele com Adriana no hotel e por vezes se ficar por meros espaços, recortados ou abertos, interiores ou exteriores, mantendo sempre, porém, uma fascinação própria pelas personagens que mostra no seu ser físico, mesmo se imóvel e com olhares desencontrados, para além do qual apenas as palavras e os silêncios esclarecem - apesar de um inesperado travelling se abismar sobre Adriana reclinada.            
                     YCapaGonçalvesB5col
    Há os excertos de filmes em 16mm que apontam para um outro tempo, um outro espaço, o que permanece enigmático, mas na sua desaparição António é mais sólido para Hugo do que uma Adriana fugidia, que apenas assinala uma presença que vai cair no passado no insistente trabalho sobre a vida dos mortos e a morte dos vivos em que "A Vida Invisível" se decide. E o tempo em que o filme se desenrola, e que uma música discreta acompanha em surdina, é justamente o final de um tempo indeciso de que o paralítico final, em branco e luz, sugere um despertar, e esse despertar é por si mesmo importante e ilumina finalmente as sombras que o precederam. 
   Se é surpreendente que alguém viva ainda nos corredores dos Terreiro do Paço, de que são tiradas belas imagens do exterior, o filme corre o risco de "embalsamar" as suas personagens, reduzidas a ideias, em belas imagens, em que a vida assoma nos breves momentos em que os cabelos são empurrados pelo vento, em que a chuva, mesmo se escassa e contida, cai na vidraça. Soberano poder de um cineasta que, com um filme completamente controlado, contido e perfeito, em que nada está em falta ou em excesso, se re-apresenta como raro e distinto de novo em despedida de um tempo anterior.

Sem comentários:

Enviar um comentário