“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

quinta-feira, 30 de abril de 2015

Fala baixo

    "Phoenix", a última longa-metragem de Christian Petzold (2014), é mais um filme extraordinário daquele que é um dos melhores cineastas alemães e europeus da actualidade, de novo com Nina Hoss, provavelmente a melhor actriz europeia de hoje.
    Com argumento da sua autoria e de Harun Farocki (1944-2014), baseado em "Le Retour des cendres" de Hubert Monteilhet, o filme desenrola-se de forma enigmática até sabermos por Lene Winter/Nina Kuzendorf que Esther, cujo rosto destruído teve que ser reconstruído, é de facto Nelly Lenz/Nina Hoss, no desconhecimento deste levada pelo seu ex-marido, Johannes/Ronald Zehrfeld, a fazer-se passar por quem efectivamente é, depois do final da II Guerra Mundial e da passagem dela por um campo de concentração nazi.
                     Phoenix Ronald Zehrfeld Nina Hoss
      Um novo longo percurso em comum é descrito pelo par, na ignorância dele de que Esther é de facto Nelly (repito), no intuito da parte dele, que a terá denunciado aos nazis, de se apoderar da herança a que ela teria direito.
      Tudo de uma grande clareza mas também de uma grande subtileza, pois o ponto de vista que nos é dado seguir é, desde o início, o de Esther/Lenny, o que permite acompanhar as oscilações dela naquele renovado e hesitante convívio, com a confidente Lene, personagem instrumental plenamente justificada, até certo momento. Até à assombrosa cena final em que ela canta "Speak Low", no final sem acompanhamento de Johannes ao piano, em que Nina Hoss culmina uma interpretação notável.
                      Still shot from "Phoenix"
      Existe em "Phoenix" a ideia de uma encenação e de um encenador, Johannes evidentemente, que volta a funcionar em pleno, superlativamente na obra de Christian Petzold (ver "O encenador", de 21 de Setembro de 2012, e "A fuga", de 7 de Fevereiro de 2013). Só que, desta vez de forma clara o encenador é ele próprio vítima da encenação daquela que quis encenar, que no plano final muito apropriadamente desaparece pela janela no desfocado da imagem. Para ela viver três vezes.
     Perfeito em termos cinematográficos, este é um filme com o mérito especial de evocar a II Guerra Mundial e o pós-guerra, questão que ainda hoje, já depois da reunificação do seu país, assombra (e ainda bem) os alemães. Com música muito evocativa.

O relógio roubado

    "Pela Rainha"/"Queen and Country" (2014) joga na obra de John Boorman com "Esperança e Glória"/"Hope and Glory" (1987), passado durante a II Guerra Mundial em Londres durante os bombardeamentos alemães. Nele encontramos o seu jovem protagonista, Bill Rohan/Callum Turner nove anos depois, durante os treinos militares para a Guerra da Coreia. 
                      Caleb Landry Jones and Tamsin Egerton is Queen and Country.
    Com uma parte militar muito longa e importante, em que se estabelece o centro narrativo à volta do desaparecimento do relógio do regimento, o filme encontra o seu melhor na parte que decorre em casa de Bill, que vem estabelecer um contraponto para ela. Aí, acompanhado pelo seu camarada Percy Habgood/Caleb Landry Jones, ele vai reencotrar a irmã, Dawn/Vanessa Kirby, e receber Ophelia/Tamsin Egerton, o que juntamente com os segredos da sua mãe, Grace/Sinéad Cusack, dá um tom diferente à narrativa.
     O apontamento sobre a morte do rei e a coroação da rainha é apenas curioso e o regresso da parte castrense inevitável mas em tom morno, apenas para resolver o enigma do roubo do relógio.
                     
     Eu percebo o sentido que o filme faz na obra do cineasta, reconheço-lhe mesmo algum mérito, mas o tom quase caricatural suprime o que de maior interesse se podia apesar de tudo encontrar em "Esperança e Glória". Com argumento do próprio John Boorman, "Pela Rainha" não desmerece na sua obra, vasta e multifacetada, em que o melhor continua, contudo, a estar no seu início americano: "À Queima Roupa"/"Point Blank" (1967), com Lee Marvin e Angie Dickinson, "Duelo no Pacífico"/"Hell in the Pacific", com Lee Marvin e Toshirô Mifune" (1968), "Fim-de-Semana Alucinante"/"Deliverance" (1972).
     E é claro que em comparação com "King & Country", de Joseph Losey (1964), filme inglês de um cineasta americano, nem por sombras. 

domingo, 26 de abril de 2015

Visita guiada

    O filme de João Botelho "A Arte da Luz Tem 20.000 Anos" (2014) cumpre uma missão essencial, que é a de divulgar metodicamente a arte rupestre em território português, no Vale do Côa. Com propósito inteiramente didáctico e de divulgação, o cineasta português constrói o seu filme como uma visita guiada a Joana Botelho por quem sabe, o coordenador do Parque Arqueológico e do Museu do Côa, António Martinho Baptista, e permite-nos ficar a conhecer em pormenor, em imagens, as famosas gravuras rupestres. 
    Como quem não vê é como quem não sabe, com este filme muito bem contextualizado geograficamente ficamos todos, o que já visitaram o sítio e os que ainda o não visitaram, a saber o que são concretamente as figuras desenhadas, gravadas na rocha que tanta celeuma levantaram em Portugal na última década do Século XX, o que elas significam e representam de interesse que excede o mero interesse nacional para se alargar ao de toda a humanidade.
                   A ARTE DA LUZ TEM 200.000 ANOS
     A arte rupestre existente em Espanha ou em França, por exemplo, estava já suficientemente estudada e esclarecida, o que foi muito importante, e independentemente de filmes científicos mais pormenorizados este filme de João Botelho sobre a existente em Portugal tem uma importância fundamental por ser feito por um português com portugueses que, tropeçando por vezes nas palavras, esclarecem sobre o significado de um mergulho na vertigem do tempo.  
    Seria de espantar que, existindo noutros locais, não existisse arte rupestre relevante em Portugal, e talvez que o Século XX português tenha culminado na sua descoberta, inserindo de uma vez por todas o país no mundo que descobriu e de que não se pode dissociar. A ligação ao cinema, que estava já explorada pela investigação paleo-antropológica noutros países (1), fica também aqui demonstrada, embora eu tivesse preferido imagens mais próximas e menos displicentes, descarregando o principal encargo demonstrativo nas palavras. 
                   A ARTE DA LUZ TEM 200.000 ANOS
      Seja como for, "A Arte da Luz Tem 20.000 Anos" de João Botelho é um filme indispensável para mostrar e demonstrar como a arte desde sempre acrescentou à realidade e à humanidade, justamente a questão que o cineasta trabalha com grande pertinência e actualidade, embora o enquadramento do final, das imagens que ficaram submersas, me tenha parecido forçadamente vistoso e menos esclarecedor (sobre João Botelho ver "Elogio do sensível", de 30 de Maio de 2013, "Grande fôlego", de 19 de Setembro de 2014, e "Agora completo", de 19 de Outubro de 2014).

Nota
(1) Cf. Marc Azéma, "La Préhistoire du cinéma - Origines paléolithiques de la narration graphique et du cinématographe..." (Paris: Éditions Errance, 2011).

Os olhos dela

       O filme do norueguês Erik Poppe "Mil Vezes Boa Noite"/"1000 Times Good Night"/"Tusen ganger god natt" (2013) é um filme estranho que vai contra hábitos ainda hoje instalados de filmes tensos, activos e nervosos, convocados mesmo pelos jogos de vídeo e pelo computador. 
                     'Mil Vezes Boa Noite' segue em cartaz, em Caxias MAresFilmes/Divulgação
     Centrando-se numa repórter fotográfica, Rebecca/Juliette Binoche, que desafiando situações perigosas mas que interessa que ela veja com a sua máquina fotográfica para que todo o mundo as conheça, não só é ferida, primeiro, como depois tem de conviver com o marido e as filhas que não favorecem o seu regresso ao trabalho, não obstante o que, ao regressar, ela pretende iniciar na profissão a filha mais velha,Steph/Chloë Annette.
      Pela interpretação de Juliette Binoche passa muito bem o envolvimento da protagonista com o seu trabalho, mas Erik Poppe faz a opção certa de não só manter um ritmo calmo, propício ao melodrama, como de por diversas vezes dar planos de pormenor dos olhos dela, o que é muito importante pois é com os seus olhos que Rebecca trabalha para os olhos de outros, de todo o mundo. 
                     Mil Vezes Boa Noite | 1,000 Times Good Night
     Em África ou no Afeganistão, no Médio Oriente ou em qualquer outro lugar em que há gente que sofre por causa de guerras evitáveis ou por outros motivos, o trabalho do repórter fotográfico como o do operador de imagem é hoje em dia fundamental para nos permitir a todos - mesmo se contra os interesses de um poder preocupado com o poder da imagem por causa da imagem do poder - saber o que se passa. E passa-se hoje em dia tanta coisa inacreditavelmente desumana que é preciso vermos para acreditarmos, e para isso é necessário que haja quem o capte para o mostrar.
    Devo dizer que em "Mil Vezes Boa Noite" de Erik Poppe (co-argumentista com Harald Rosenlow-Eeg além de realizador) não me prendem excessivamente os problemas familiares de Rebecca, hoje em dia comuns (embora reconheça que ser uma mulher em vez de um homem o protagonista torna tudo ainda mais claro), mas os olhos dela, os olhos de Juliette Binoche por todos os olhos do mundo, para todos os olhos do mundo.      

domingo, 19 de abril de 2015

A pequena bambu

     O "Conto da Princesa Kaguya"/"Kaguyahime Monogatari", do japonês Isao Takahata (2013), é mais um belíssimo filme de animação de um país que há várias décadas conta com uma das mais importantes escolas de cinema de animação do mundo (sobre Hayao Miyazaki ver "Uma animação principesca", de 30 de Março de 2012, e "Asas", de 22 de Março de 2015).
                    
      Senhor de um estilo de desenho animado muito próprio e original, Isao Takahata constrói este seu filme a partir de um conto tradicional japonês do Século X, "O Conto do Cortador de Bambu", o que permite melhor compreender as suas figuras tipificadas de camponeses pobres e de senhores poderosos. O acaso leva um cortador de bambu a encontrar uma criança entre as folhas e os caules, e ele vai educá-la com a sua mulher para ser uma futura princesa, enquanto os mais novos a tratam por Pequena Bambu.
     Não vou contar a história do filme, muito japonesa e muito antiga. Vou apenas chamar a atenção para o precioso desenho de Isao Takahata e da sua equipa, um trabalho talvez mais esquemático do que o de Hayao Miyazaki mas não menos expressivo que o dele - aliás ambos trabalham para o Estúdio Ghibli, de que foram co-fundadores em 1985. De facto, à semelhança dos seus filmes anteriores em "O Conto da Princesa Kaguya" o cineasta, também autor da história e co-argumentista, detém-se nos detalhes mais significativos, quer das personagens (rostos, cabelos, silhuetas, vestuário), quer do meio (os campos, os interiores das casas), com um traço preciso aberto nos contornos, criando uma dinâmica original e, com um extraordinário tratamento da cor, deixando sempre um pormenor inesperado no espaço vazio.
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    Resolvido o racconto contra as expectativas dos grandes senhores, incluindo do imperador, ele não vai favorecer Sutemaru, o amigo de infância da protagonista senão em sonho, já que a ela, mesmo se contra vontade um destino literalmente mais alto, selenita, a espera, deixando embora atrás de si o elogio da imperfeição humana, dos seus limites e dos seus pontos mais sólidos - justamente o que define os humanos.
    Este é um filme que, com uma música muito expressiva em seu favor, é para ser devorado com todos os sentidos e também com a inteligência, que ele desafia e convoca. Saúda-se aqui a súbita aparição em sequência de vários filmes do melhor da animação japonesa em Portugal. O fundamental "O Túmulo dos Pirilampos"/"Hotaru no haka" (1988) passa em 6 de Maio próximo ao princípio da noite no Arte.

Uma nova dinâmica

     Inédita comercialmente em Portugal, a  longa-metragem de estreia do alemão Jan Ole Gerster, "Oh Boy" (2012), é um filme a preto e branco muito bom e interessante, que dá conta de uma nova dinâmica no novo cinema novo alemão sem deixar por isso de encontrar pontos de referência no passado.
                  
      Visto no Arte na semana em que morreu Günter Grass (1927-2015), o filme apresenta um olhar novo e descomprometido mas justo sobre Berlim na actualidade entre os mais novos, eles e elas presas das suas próprias obsessões de momento que, marcando-os, os levarão a um tempo futuro. Aqui nada de vistoso, de espectacular, apenas uma juventude comum, batida e credível, que encontra nos mais velhos obstáculos que tem de vencer, até que Nico Fischer/Tom Schilling, o protagonista, encontra no final um "old timer" que, ao balcão de um bar, entre memórias avulsas lhe diz: "Eu não vos compreendo".
     O preto e branco está muito bem explorado e trabalhado, nomeadamente na luz e no tratamento de personagens jovens, esbeltas e bonitas, que contrastam narrativamente com Julika Hoffmann/Friederike Kempter, antiga colega de Nico num tempo em que era conhecida por "a gorda". Tão à deriva como as personagens de "Ao Correr do Tempo"/"Im Lauf der Zeit", de Wim Wenders (1976), sem o cinema ambulante mas com o teatro presente Nico percorre em 24 horas Berlim como eles percorriam a Alemanha, à procura do que não encontra senão de passagem.  
                    Oh Boy! by Jan Ole Gerster (Trailer)
    Os tempos correm céleres também na Alemanha actual, de certa maneira os problemas repetem-se mas sempre com gente nova que pensa vivê-los pela primeira vez - e de facto os vive pela sua própria única vez. Também autor do argumento, como Wenders o era naquele seu grande filme inicial também ele a preto e branco, Jan Ole Gerster dá muito boa conta de si com uma dinâmica visual justa, entre o estático e o móvel, entre o próximo e o distante, com uma excelente composição do plano e uma música sempre justa.
     De tal forma que existe algo de comovente nas personagens jovens do filme e na separação final de Nico do "old timer" que já não os compreendia. Tudo seco, limpo e límpido, como quando se olha pela primeira vez, com actores em estado de graça como Rüdiger Vogler e Hanns Zischler jovens eram no citado filme de Wim Wenders. E de repente tudo faz sentido no novíssimo cinema alemão.

Dignidade

    Devo começar por dizer que enfrentei "Selma: A Marcha da Liberdade"/"Selma", de Ava Duvernay (2014), com alguma prudência, pois esperava o simples elogio póstumo, para a história, do herói dos direitos cívicos nos Estados Unidos ao estilo hagiográfico a que o cinema americano nos habituou. Felizmente estava enganado. 
                     Selma, Oprah Winfrey
  Sem se centrar exclusivamente em Martin Luther King/David Oyelowo, o filme segue-o num episódio fundamental, decisivo da luta dos negros americanos pelos seus direitos cívicos. A forma quase jornalística como o filme se constrói, dando espaço ao protagonista mas também aos seus interlocutores mais próximos e até aos seus adversários, permite uma visão clara da época, da questão, de como ela se desenvolveu e foi resolvida, deixando de fora o episódio final trágico do seu assassinato.
   Afastado assim o lado martirológico do protagonista, "Selma: A Marcha da Liberdade" centra-se nos acontecimentos, a célebre marcha de Selma para Montgomery, naqueles que a organizaram e a viveram. E aí o filme faz a opção certa de só desenvolver em termos pessoais a relação do protagonista com a sua mulher, Coretta Scott King/Carmen Ejogo, deixando embora espaço para outros militantes dos direitos cívicos em termos de relações militantes. 
                    'Selma' Marches Into Oscar Race With
     Com um ritmo calmo e um grande equilíbrio formal, o filme conta-nos tudo o que de relevante então aconteceu, incluindo os diálogos de Martin Luther King com o Presidente Lyndon B. Johnson/Tom Wilkinson e a intervenção do Governador George Wallace/Tim Roth. E de tal modo o integra na marcha e no movimento que "Selma: A Marcha da Liberdade" se torna um documento fílmico exemplar sobre um líder, os seus seguidores e opositores, as suas decisões de acordo com a leitura que em cada momento faz dos melhores interesses da causa que defende e daqueles com os quais por ela luta, sem deixar aos adversários mais do que o lugar secundário que eles historicamente merecem.
     O filme explora bem os momentos de maior emoção, como as mortes e o confronto na ponte, e de maior solidão de Martin Luther King, como quando ele dialoga com a mulher ou quando ele lhe escreve, o que distribui pontos nevrálgicos no seu desenvolvimento, deixando sempre um rasto de determinação e de luta que vai abranger gente de outras cores. Por seu lado, a presença de Tom Wilkinson, Tim Roth, Oprah Winfield como Annie Lee Cooper e Martin Sheen como juiz conferem a "Selma: A Marcha da Liberdade" um garbo e uma dignidade que lhe ficam muito bem.      
                     selma-bridge
      Para o Presidente Lyndon Johnson era importante o que se pensasse 20 anos depois. "Selma: A Marcha da Liberdade" de Ava Duvernay diz-nos com grande apuro (muito bom o uso dos planos mais próximos em contraste com o plano geral e o plano médio) e dignidade o que se pensa 50 anos depois. Anoto que Brad Pitt figura como produtor executivo, o que o confirma como um dos homens mais inteligentes a trabalhar neste momento no cinema americano (ver "O dinheiro", de 29 de Março de 2014), num filme que conta com Oprah Winfield, uma das americanas mais inteligentes e populares da actualidade, na produção.

domingo, 12 de abril de 2015

O poder da imagem

    Talvez não tenhamos ainda a noção plena de que Wim Wenders, um dos fundadores do Cinema Novo Alemão dos anos 60 (ver "Fassbinder e o futuro", de 17 de Junho de 2012, e "Palavra e pensamento", de 12 de Outubro de 2013), tem uma importante vertente documental na sua já impressionante obra. "O Sal da Terra"/"The Salt of the Earth", co-realizado com Juliano Ribeiro Salgado (2014), vem recordar de maneira feliz o seu lado documentarista no cinema, pois permite-lhe uma reflexão dupla sobre a imagem, a do cinema e sobretudo a da fotografia por intermédio da personagem central e motora, o famoso fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado.
                    Movie Review – ‘The Salt of the Earth’
   Vamos por partes. Depois de filmes iniciais justos e muito bons, Wim Wenders dispersou-se um tanto na beleza das imagens por si própria, sem grande recuo, o que, aliás, fez o sucesso dos seus filmes desde "As Asas do Desejo"/"Der Himmel über Berlin" (1987), justamente um filme notável pela ligação que estabelece entre imagens e sons. Pese embora a minha admiração por esse e outros filmes subsequentes, não devo esconder que é nos seus filmes iniciais que ainda hoje descubro o seu melhor.
   Posto isto, "O Sal da Terra" agora estreado entre nós é um projecto consequente com o seu anterior "Pina" (2011), sobre a famosa e entretanto desaparecida bailarina e coreógrafa Pina Bausch (1940-2009), pois se trata de um filme sobre um criador artístico visual, um fotógrafo, e um fotógrafo famoso. O assunto permite ao cineasta, acolitado pelo filho mais velho do fotógrafo, ao recapitular com este a sua vida e a sua obra produzir sobretudo pela palavra do fotógrafo uma reflexão muito produtiva sobre a imagem da fotografia na história e sobre a própria história.     
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     De facto, Sebastião Salgado foi uma testemunha privilegiada dos últimos 40 anos da história mundial, presente com a sua máquina fotográfica nos locais e momentos em que a história recente mais doeu: no Sudeste Asiático, em África (pela qual não esconde a sua preferência), na ex-Jugoslávia, na América Latina, mas também na Sibéria, na fronteira com o Ártico, no seu próprio país, o Brasil. Conhecendo já a obra do fotógrafo, o que mais me interessa no filme é o que ele nele diz sobre si próprio e em especial sobre as suas fotografias, o espaço, o tempo e as circunstâncias em que foram tiradas.
     Arte visual, a fotografia é uma "arte muda" (se me é permitida a redundância), e o que o filme de Wim Wenders e Juliano Ribeiro Salgado permite e procura é a palavra do fotógrafo Sebastião Salgado sobre as suas fotografias, as suas séries temáticas. Casando bem a vida profissional e a vida pessoal do protagonista, o filme destaca-se sobretudo por ser uma lição de fotografia e sobretudo de história sobre os conturbados anos que a Sebastião Salgado foi (como a nós) dado viver.  
                     Salt_of_the_Earth
    Ora esta reflexão, este esclarecimento do fotógrafo sobre o seu trabalho, é acompanhado por um bom exercício cinematográfico dos realizadores que, estabelecendo de maneira muito clara a diferença entre a fotografia e o cinema, permite através deste questionar aquela. Pese embora uma ou outra ingenuidade, como a dobragem com som ambiente de fotografias antigas, "O Sal da Terra" cumpre bem uma função reflexiva de segundo ou terceiro grau, dando à pessoa física do fotógrafo o destaque visual e sonoro que ele merece sem se coibir (pelo contrário) de mostrar as suas fotografias e de, a esse propósito, explorar o contraste do preto e branco e da cor.
    Que dessa forma nos seja permitido recapitular 40 anos de história, e da história mais trágica da humanidade, não dissociando o local do global, é um dos méritos principais do filme, em especial para uma época que, pressionada pelo presente, tende a esquecer o passado mais próximo, contudo dele indissociável. Por ser ele próprio fotógrafo, e fotógrafo de mérito, Wim Wenders sai-se bastante bem neste filme em que não receia mostrar-se a si próprio em diálogo com o protagonista. Que em conclusão se expresse confiança no ser humano, contudo responsável por tantas e tão selvagens destruições, sem convencer fica bem.

Tempo português

   É aí a terceira vez que vejo "Ruínas", de Manuel Mozos (2009), e a cada nova vez aumenta o meu deslumbramento com o filme. De facto, trata-se do mais inesperado, improvável dos documentários, feito sobre o passado em sons, palavras de época sobre imagens actuais do que do passado sobrou degradado, arruinado, já quase só como vestígios de um outro tempo.
                    
   O documentário de época, cinematográfico ou televisivo, tende normalmente para as vinhetas do passado e as palavras no presente dos sobreviventes. Instaurando uma nova prática contra velhos hábitos, "Ruínas" de Manuel Mozos consegue muito bem, de forma superlativa jogar em dois tempos dissociados, o da imagem presente do que restou do passado, salvo no início desabitada de gentes, e o do som, com palavras retiradas de textos passados (identificados no genérico de fim) lidos no presente por vozes actuais.
   Para além das palavras escritas em placas e cartazes nas imagens do filme, as que são lidas pelas vozes actuais inculcam uma diacronia, a do tempo em que foram escritas e a do tempo em que são agora ditas, o que faz com que as imagens, de uma desoladora e estarrecedora beleza, ocupem um lugar sincrético como o que sobrou em ruínas desse tempo passado mas também de tempos anteriores e posteriores.
                    
   A predominância do plano fixo das imagens cruas e desabitadas impõe a ideia de um tempo que parou, de um tempo hoje cristalizado para o futuro, e da sua mistura com as palavras, escassos ruídos e uma música quase em surdina resulta a dissociação de um passado e um presente, em que neste são mostradas e tornadas presentes uma arquitectura portuguesa típica de meados do Século XX, estruturas industriais e outros equipamentos desactivados em que se movem elementos naturais - bandeiras, pássaros, ramos de árvores (em movimentos por vezes quase imperceptíveis) - ou humanos - gente vária num cemitério, uma voz na instalação sonora, automóveis na noite -, o que tudo confere ao filme um tom sepulcral, fora do tempo já.
   Neste jogo com os espaços e com o tempo "Ruínas" de Manuel Mozos atinge um elevado grau de precisão quase clínica, entomológica, que não significa ausência de emoção, em que espaços e tempos deslizam uns sobre os outros como se criando um espaço-tempo abstracto, outro, em que tudo e todos no passado e no presente se encontram, esclarecem e anulam em campo raso - em campa rasa, já que todas as palavras têm autor e são ditas por outros e todas as imagens desabitam o tempo das palavras para o tornarem presente como espaços vazios, desoladoramente abandonados. 
                     
   Em tempos compósitos e espaços que se desdobram nos seus diferentes, sedimentados  tempos, em que vozes dizem palavras de estarrecedora e eloquante frieza de arquivo, mesmo as que têm origem na poesia portuguesa, em cantigas ou cantos, decididamente que Manuel Mozos é um dos nomes mais importantes a levar em conta no cinema português contemporâneo, mostrando em "Ruínas" que a promessa contida nomeadamente em "Xavier" (1992) não era vã.

domingo, 5 de abril de 2015

Poética de Manoel de Oliveira

    Escrevi aqui há pouco sobre Manoel de Oliveira ("Por Manoel de Oliveira", de 15 de Março de 2015) e volto a fazê-lo agora que ele chegou ao fim da sua vida. Uma vida longa e muito prolífera, que o situa entre as maiores e mais universais personalidades da cultura portuguesa de sempre, o primeiro nessa arte nova e moderna que foi e ainda é o cinema.
                    
   Depois de ter sido  boémio e desportista de mérito na juventude, ele teve uma vida indissociável da sua actividade criativa como cineasta, sempre envolvido pelo que o rodeava tanto na vida como na cultura, sem fronteiras que não fossem as da própria criatividade humana no que ela, nacional e internacionalmente, teve de mais importante. Mesmo a Deus, em que acreditava, interpelou-o sempre para interpelar o seu tempo. A História de Portugal procurou-a onde ela é mais difícil de encontrar, onde ela mais dói e se torna mais significativa. Na literatura acompanhou o seu tempo, o do segundo modernismo português, o da revista Presença, e, tendo-o em conta, as suas escolhas nem sequer são surpreendentes mas de uma grande coerência. E aí nunca transigiu na sua integridade pessoal como criador original, que faz os seus filmes em seu nome pessoal. 
   Com ele morreu uma das últimas testemunhas do cinema mudo (como o cinema nasceu), que assistiu em tempo real aos primeiros filmes de Charles Chaplin, por exemplo, aos filmes do expressionismo alemão e da vanguarda soviética e francesa dos anos 20 do Século XX. O acolhimento reservado em Portugal à sua primeira curta-metragem, ainda muda, "Douro, Faina Fluvial" (1931), um documentário excepcinal que veio a ter duas versões sonoras, marcou o tom para a escassa popularidade da sua obra entre nós. Tendo escolhido as suas influências entre os maiores nomes do cinema do seu tempo (Carl Th. Dreyer, John Ford, Robert Bresson, embora ele próprio referisse pontos de contacto com Jean Renoir e Jean Vigo, Yasujiro Ozu e o cinema japonês clássico, Roberto Rossellini e Luis Buñuel, mais tarde Jean-Marie Straub/Danièle Huillet), teve uma vida difícil durante o Estado Novo, com o qual nunca escondeu a sua oposição e pelo qual foi largamente prejudicado em concretos termos censórios e perseguido, sem embargo do que antecipou várias coisas em "Aniki-Bóbó" (1942), a cor em "O Pintor e a Cidade" (1956), e foi um dos nomes fundadores do Novo Cinema Português dos anos 60 como referência ética e estética e com "Acto da Primavera" (1963) e "A Caça" (1964).
                       Oliveira, actor burlesco no «Lisbon Story», de Wim Wenders
    O seu cinema encaminhou-se depois para a "tetralogia dos amores frustrados" e mais tarde para obras fundamentais do cinema dos últimos 40 anos sob a égide do "Non", que preenchem uma obra rica e multifacetada, contudo sempre moderna e fiel ao seu próprio entendimento do mundo e de Portugal, liminarmente presente nos seus primeiros filmes. Aí avultam as suas relações com a literatura portuguesa - José Régio, Camilo, Agustina, Eça de Queirós, Raul Brandão - mas também internacional - Paul Claudel, Samuel Beckett, Dostoievski, Nietzsche, Madame De La Fayette, a Bíblia. Na História de Portugal "Non, ou A Vã Glória de Mandar" (1990), "Palavra e Utopia" (2000), "O Quinto Império - Ontem como Hoje" (2004) são pontos de referência, marcos decisivos. 
     De tal modo que se existe uma poética do cinema português ela é indissociável do seu nome. Uma poética irreverente, rebelde, simultaneamente respeitadora e crítica, sempre fiel a si próprio e à sua ideia do cinema, do seu tempo e dos seus meios, por isso eventualmente localizada e minoritária, que o encaminhou para uma estética persistente do plano longo e da palavra dita, recitada como numa prece, que a música vem esclarecer, completar e enriquecer. Este elemento, o da palavra dita, ainda que indossociável da imagem, do plano, do espaço do plano, embora eventualmente contra ele, terá sido aquele a que mais resistiu um público habituado no cinema à imagem-tipo do cinema, simultaneamente o elemento em que Manoel de Oliveira, sempre autor do argumento, da adaptação e dos diálogos dos seus próprios filmes, mais fundamente questionou o próprio cinema e a sua linguagem standartizada e sustentou a sua poética própria. 
                   "Cristovão Colombo - O Enigma" de Manoel de Oliveira (Portugal/França)
   Pelo caminho tornou-se um dos mais importantes cineastas de toda a história do cinema mundial e um dos mais influentes, nomeadamente no cinema português, em que continuou como figura de referência para todos os mais novos, alguns dos quais, como António Reis (1927-1991), Paulo Rocha (1935-2012) e João César Monteiro (1939-2003), partiram antes dele. Sem poupar palavras, e sem conhecer "Visita ou Memórias e Confissões" (1982), o seu filme para ser visto só agora, depois da sua morte, Manoel de Oliveira foi um cineasta indissociável do cinema e do seu tempo, e um cineasta de excepção que apenas a graça, no sentido grego e cristão (1), poderá explicar ter sido português. 
    A escassa popularidade que o acompanhou em Portugal, em sentido inverso do que aconteceu noutras partes do mundo, deve-se fundamentalmente à sua radical intransigência criativa mas também à escassa divulgação da sua obra em termos sistemáticos e acessíveis - os vários e valiosos especialistas (entre os quais me conto), como acontece aos especialistas sempre falaram mais entre si do que para fora, para o espectador comum, com outros hábitos e habituado a um outro, mais comercial tipo de filmes.
                   Happy 106th birthday to the great Manoel de Oliveira!
   Em termos pessoais, do Manoel fica-me a imagem da sua boa disposição e da sua vivacidade, indossociáveis para mim da sua inteligência e da sua argúcia. Sentindo muito a sua partida, que ele próprio contudo invitavelmente esperava, no seu nome e na sua obra aqui reafirmo a minha confiança no cinema como arte maior. À família, encabeçada por Maria Isabel, e aos companheiros da vida cinematográfica, nas pessoas dos actores Luís Miguel Cintra e Leonor Silveira, apresento a expressão do meu grande pesar e do meu maior respeito. 
   "Não sei explicar. Faço um filme como se cometesse um crime. É a minha sensação. Talvez se não fizesse filmes fosse um criminoso. É tudo o que posso dizer." (2)  "(...) A atracção pelo abismo faz esquecer o perigo da morte que é, dentre as coisas prometidas pela vida, a única que está garantida." (3). Talvez que a ideia da morte, a sua inevitabilidade e proximidade, a sua materialidade mesma, em especial a morte da mulher, seja a melhor chave para o cinema de Manoel de Olveira e a sua poética (4). O que, se for verdade, na esteira de "Francisca"(1981) e de "Vale Abraão" (1993) torna "O Estranho Caso de Angélica" (2010), recuperação tardia de um projecto dos anos 50 do Século XX, o seu decisivo filme-testamento.
                    
     Viver a sua vida e construir a sua obra em convívio e em conflito com o seu tempo terá sido a sua grande herança, em que me reconheço. Continuo, Manoel de Oliveira, continuamos todos à espera do seu próximo filme. Enquanto exigimos da distribuição cinematográfica uma reposição da sua obra à altura das precedentes (Yasujiro Ozu, Ingmar Bergman, Satyajit Ray) e da decorrente (Roberto Rossellini), mas mais completa, das cinematecas, fundações e associações culturais que continuem a cumprir a sua obrigação para com o cinema e para consigo.

      Notas
(1) Cf. "Sobre graça e graciosidade", de Claudia J. Fischer, com Prefácio de Miguel Tamen (Lisboa: Verbo, 2015).
(2) Manoel de Oliveira in "Conversas com Manoel de Oliveira", de Antoine de Baecque e Jacques Parsi (edição portuguesa Porto: Campo das Letras, 1999, pág. 60).
(3) Manoel de Oliveira a propósito de "Le Soulier de satin", ibidem, pág. 82.  
(4) Num sentido próximo, cf. "A Filosofia da Composição", in "Poética (Textos Teóricos)", de Edgar Allan Poe - edição portuguesa com tradução, introdução, cronologia e notas de Helena Barbas (Lisboa: Fundação Calouste Gubenkian, 2004, páginas 29-52, em especial pág. 42).