“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 30 de abril de 2016

O sopro do amor

   O conhecido e prestigiado cineasta tailandês Apichatpong Weerasethakul esteve em Lisboa para um seminário do curso de Estudos Artísticos da Universidade Nova de Lisboa que decorreu na Cinemateca Portuguesa, na altura em que estreou em Portugal o seu último filme, "Cemitério do Esplendor"/"Rak ti Khon Kaen"  (2015).
                    'Cemitério do Esplendor'
    Mesmo para quem conheça já o seu sistema cinematográfico, enunciado de forma definida e superior em "O Tio Boonmee que se Lembra das Suas Vidas Anteriores"/"Loong Boonmee raleuk chat" (2010), este filme não deixa de constituir uma nova surpresa na obra do cineasta, pois além de numa primeira parte acompanhar a relação de uma vidente, Keng/Jaumipattra Rueangram, e de uma mulher mais velha casada com um americano, Jenjira/jenjira Pongpas, que por sua vez acompanham um militar tailandês hospitalizado com outros por sofrer da "doença do sono", Itt/Banlop Lomnoi, tudo passado num hospital que funciona onde existiu uma escola e detidamente tratado do lado de um outro mundo do espírito e dos espíritos como lhe é habitual, passada já mais de uma hora e o aparecimento das deusas do santuário em carne viva as coisas mudam subitamente.
    Numa sala de cinema passa o trailer de um filme e, uma vez este acabado, perante o ecrã vazio os espectadores levantam-se e ficam de pé frente a ele. Transição para as pás de ventiladores que giram no tecto do hospital e então aí a amiga mais velha, Jenjira, que tem uma perna mais curta do que a outra, aceita o convite da mais nova, Keng, para entrar na mente do doente e ver o que ele vê. Sucede-se o passeio de ambas pela floresta das orquídeas, junto a um rio, em que enquanto nós continuamos a ver a floresta elas vêm um rico e belo palácio que atravessam, descrevem e comentam - nomeadamente o cemitério real que teria existido debaixo do actual hospital.
                    Cemitério do Esplendor, de Apichatpong
    Esta brusca transição, acompanhada no hospital pelo aparecimento das luzes  artificiais contrastadas no seu início e no seu final, está excelentemente concebida, filmada e interpretada, dando-nos o sonho de todos, durante o qual momentos mais ligeiros alternam com outros mais emocionais e é cantada uma bela canção de amor. Findo o passeio ficam ambas sentadas à beira rio e reabrem-se os olhos para a realidade presente. Tudo muito simples e filmado ao nível do sono, do sonho, do pensamento e do amor. O final musical, já utilizado anteriormente pelo cineasta, constitui o único excerto com música do filme.
     O último filme de Apichatpong Weerasethakul que tinha fugazmente estreado em Portugal, "Mekong Hotel " (2012), muito bom embora não nos preparava para esta bela surpresa que "Cemitério do Esplendor" é (ver "A oriente um rio", de 21 de Junho de 2015). Sobre este seu último filme e sobre si próprio, aconselho vivamente a entrevista de Augusto M. Seabra ao cineasta publicada no Ípsilon do jornal Público de ontem, sexta-feira 29 de Abril.
                   
     Se os mortos-vivos deste filme e dos filmes de Apichatpong Weerasethakul estarão ou não próximos dos dos filmes de Pedro Costa é uma questão aí não abordadda que deixo ficar à vossa reflexão.

Paulo Varela Gomes (1952-2016)

    Respeitado historiador da arte e da arquitectura e professor universitário, tornou-se uma referência do jornalismo e da literatura, o que lhe grangeou muito justamente grande número de leitores e admiradores. A sua permanência em Goa terá sido especialmente marcante pelos laços que lhe permitiu estabelecer com a história de Portugal e com o Extremo Oriente, e tornou-o mais conhecido pelos excelentes documentários para televisão em que participou.
                                                          
    Foi uma personalidade muito importante e influente do Portugal contemporâneo. Junto-me neste momento a todos o que o recordam e homenageiam, lamentando a sua partida precoce, desejando que continue a ser lido e que, exemplares, a sua vida e a sua obra permaneçam e frutifiquem. Para todos. 
     À viúva, Patrícia Vieira, filhos e neto expresso o meu muito sentido pesar.

Carlos de Pontes Leça (1938-2016)

    Foi um musicólogo ilustre profundamente conhecedor do cinema, que estudou as relações entre ambas as artes com profundidade e grande saber. Como programador musical foi excelente, como estudioso da música excepcional. O estudo do cinema em Portugal fica a dever-lhe muito.
                                CPL_1-1
    Por isso o recordo aqui na hora da sua morte e lhe deixo ficar o meu respeito e a minha homenagem sentida, no reconhecimento da imensa dívida que todos temos com o seu saber e a sua erudição, de que não teve problemas em fazer um uso pedagógico sem abdicar do seu nível e do seu gosto pessoal.

sábado, 23 de abril de 2016

Uma boa lista

    Encontrei há uns dias na página Cultura do site da BBC uma lista dos 100 Melhores Filmes Americanos (entendidos como de produção americana), resultante da escolha de 62 críticos de cinema de todo o mundo: Reino Unido, Europa continental, América do Sul, Austrália, Índia, Médio Oriente e Estados Unidos. Cada um deles escolheu os seus 10 melhores, pontuados de 1 a 10. Parece-me ser uma boa escolha, pelo que, com a devida vénia, aqui a reproduzo (copy/paste) sem assumir a lista como minha.

100. Ace in the Hole (Billy Wilder, 1951)
99. 12 Years a Slave (Steve McQueen, 2013)
98. Heaven’s Gate (Michael Cimino, 1980)
97. Gone With the Wind (Victor Fleming, 1939)
96. The Dark Knight (Christopher Nolan, 2008)
95. Duck Soup (Leo McCarey, 1933)
94. 25th Hour (Spike Lee, 2002)
93. Mean Streets (Martin Scorsese, 1973)
92. The Night of the Hunter (Charles Laughton, 1955)
91. ET: The Extra-Terrestrial (Steven Spielberg, 1982)
90. Apocalypse Now (Francis Ford Coppola, 1979)
89. In a Lonely Place (Nicholas Ray, 1950)
88. West Side Story (Robert Wise and Jerome Robbins, 1961)
87. Eternal Sunshine of the Spotless Mind (Michel Gondry, 2004)
86. The Lion King (Roger Allers and Rob Minkoff, 1994)
85. Night of the Living Dead (George A Romero, 1968)
84. Deliverance (John Boorman, 1972)
83. Bringing Up Baby (Howard Hawks, 1938)
82. Raiders of the Lost Ark (Steven Spielberg, 1981)
81. Thelma & Louise (Ridley Scott, 1991)
80. Meet Me in St Louis (Vincente Minnelli, 1944)
79. The Tree of Life (Terrence Malick, 2011)
78. Schindler’s List (Steven Spielberg, 1993)
77. Stagecoach (John Ford, 1939)
76. The Empire Strikes Back (Irvin Kershner, 1980)
75. Close Encounters of the Third Kind (Steven Spielberg, 1977)
74. Forrest Gump (Robert Zemeckis, 1994)
73. Network (Sidney Lumet, 1976)
72. The Shanghai Gesture (Josef von Sternberg, 1941)
71. Groundhog Day (Harold Ramis, 1993)
70. The Band Wagon (Vincente Minnelli, 1953)
69. Koyaanisqatsi (Godfrey Reggio, 1982)
68. Notorious (Alfred Hitchcock, 1946)
67. Modern Times (Charlie Chaplin, 1936)
66. Red River (Howard Hawks, 1948)
65. The Right Stuff (Philip Kaufman, 1983)
64. Johnny Guitar (Nicholas Ray, 1954)
63. Love Streams (John Cassavetes, 1984)
62. The Shining (Stanley Kubrick, 1980)
61. Eyes Wide Shut (Stanley Kubrick, 1999)
60. Blue Velvet (David Lynch, 1986)
59. One Flew Over the Cuckoo’s Nest (Miloš Forman, 1975)
58. The Shop Around the Corner (Ernst Lubitsch, 1940)
57. Crimes and Misdemeanors (Woody Allen, 1989)
56. Back to the Future (Robert Zemeckis, 1985)
55. The Graduate (Mike Nichols, 1967)
54. Sunset Boulevard (Billy Wilder, 1950)
53. Grey Gardens (Albert and David Maysles, Ellen Hovde and Muffie Meyer, 1975)
52. The Wild Bunch (Sam Peckinpah, 1969)
51. Touch of Evil (Orson Welles, 1958)
50. His Girl Friday (Howard Hawks, 1940)
49. Days of Heaven (Terrence Malick, 1978)
48. A Place in the Sun (George Stevens, 1951)
47. Marnie (Alfred Hitchcock, 1964)
46. It’s a Wonderful Life (Frank Capra, 1946)
45. The Man Who Shot Liberty Valance (John Ford, 1962)
44. Sherlock Jr (Buster Keaton, 1924)
43. Letter from an Unknown Woman (Max Ophüls, 1948)
42. Dr Strangelove (Stanley Kubrick, 1964)
41. Rio Bravo (Howard Hawks, 1959)
40. Meshes of the Afternoon (Maya Deren and Alexander Hammid, 1943)
39. The Birth of a Nation (DW Griffith, 1915)
38. Jaws (Steven Spielberg, 1975)
37. Imitation of Life (Douglas Sirk, 1959)
36. Star Wars (George Lucas, 1977)
35. Double Indemnity (Billy Wilder, 1944)
34. The Wizard of Oz (Victor Fleming, 1939)
33. The Conversation (Francis Ford Coppola, 1974)
32. The Lady Eve (Preston Sturges, 1941)
31. A Woman Under the Influence (John Cassavetes, 1974)
30. Some Like It Hot (Billy Wilder, 1959)
29. Raging Bull (Martin Scorsese, 1980)
28. Pulp Fiction (Quentin Tarantino, 1994)
27. Barry Lyndon (Stanley Kubrick, 1975)
26. Killer of Sheep (Charles Burnett, 1978)
25. Do the Right Thing (Spike Lee, 1989)
24. The Apartment (Billy Wilder, 1960)
23. Annie Hall (Woody Allen, 1977)
22. Greed (Erich von Stroheim, 1924)
21. Mulholland Drive (David Lynch, 2001)
20. Goodfellas (Martin Scorsese, 1990)
19. Taxi Driver (Martin Scorsese, 1976)
18. City Lights (Charlie Chaplin, 1931)
17. The Gold Rush (Charlie Chaplin, 1925)
16. McCabe & Mrs Miller (Robert Altman, 1971)
15. The Best Years of Our Lives (William Wyler, 1946)
14. Nashville (Robert Altman, 1975)
13. North by Northwest (Alfred Hitchcock, 1959)
12. Chinatown (Roman Polanski, 1974)
11. The Magnificent Ambersons (Orson Welles, 1942)
10. The Godfather Part II (Francis Ford Coppola, 1974)
9. Casablanca (Michael Curtiz, 1942)
8. Psycho (Alfred Hitchcock, 1960)
7. Singin’ in the Rain (Stanley Donen and Gene Kelly, 1952)
6. Sunrise (FW Murnau, 1927)
5. The Searchers (John Ford, 1956)
4. 2001: A Space Odyssey (Stanley Kubrick, 1968)
3. Vertigo (Alfred Hitchcock, 1958)
2. The Godfather (Francis Ford Coppola, 1972)
1. Citizen Kane (Orson Welles, 1941)

     Sem comentários e com o respeito devido, numa escolha bem informada, culta e diversificada como esta do cinema americano devem ver pelo menos uma vez os filmes que não conhecerem e ver mais uma vez aqueles que já conhecerem. E continuo a aconselhar a BBC e o respectivo site.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

O caminho dos mortos

   "Rumo à Outra Margem"/"Kishibe no tabi", de Kiyoshi Kurosawa (2015), é um filme supreendente, radical e muito bom. Surpreende pela sua radicalidade de trazer um morto, Yusuke/Tadanobu Asano, para junto dos vivos, a sua mulher Mizuki/Eri Fukatsu, com desembaraço e grande pertinência narrativa.
     O que está em causa é o regresso normal de um morto para junto dos que lhe foram próximos e ainda o não esqueceram três anos após a sua morte. A mulher aceita-o e, apesar de inicialmente não poder fazer com ele "aquilo", condu-lo pelo caminho da memória pessoal em que ele próprio se empenha.
                    Rumo à Outra Margem
      O filme não tem grandes artifícios ou efeitos formais, salvo quando eles finalmente vão fazer "aquilo" (o que é muito bem resolvido em contracampo para as costas deles), e resolve-se com grande simplicidade na narrativa das questões mais difíceis. Está muito bem o encontro dela com a antiga amante dele, Tomoko Matsuzaki/Yû Aoi, tal como está muito bem o regresso dele a uma aldeia onde tinha ensinado e volta a ensinar - sobre o zero e o infinito. Mais complicado, mesmo formalmente, é o regresso de um outro morto, o pai de Ryota/Daiki Fujino, o rapaz da queda de água e da sua tradição, "o caminho dos mortos", um morto não apaziguado.
     O motivo musical do "Anjo da Harmonia" está muito bem resolvido - "procura o teu próprio som" - e a resposta da antiga amante de Yusuke à mulher dele, Mizuki, "que mais se pode querer", encerra toda uma filosofia da vida.
                    Rumo à Outra Margem
      Em espaços pouco povoados, espaços vazios e espaços muito preenchidos, em interiores e em exteriores, com seriedade excessiva que corresponde ao seu tema este "Rumo à Outra Margem" de Kiyoshi Kurosawa confirma o cineasta como um dos grandes nomes do cinema japonês contemporâneo, o que, contra o seu início, o final do filme, em que tanto Yusuke como Mizuki saem do espaço do plano e do filme, plenamente certifica na linha do seu anterior "Sonata de Tóquio"/Yokyo Sonata" (2008).  
      Entre fantasma e fantasia, neste filme está presente de forma explícita uma antiga tradição de uma cultura muito antiga. Embora por enquanto o cineasta não esteja, como não podia estar, à altura dos grandes clássicos do cinema do seu país (Kenji Mizoguchi, Yasujirô Ozu, Mikio Naruse, Akira Kurosawa), devemos recebê-lo e aceitá-lo e apreciá-lo por aquilo que é e faz.      

Fazer justiça

     "Amadeo de Souza-Cardoso: O Último Segredo da Arte Moderna", de Christophe Fonseca, ante-estreado pela RTP1 na passada quarta-feira, é um documentário de divulgação sobre a vida e a obra do grande pintor modernista português, sobre o qual foi agora inaugurada uma importante exposição no Grand Palais, em Paris.
      Este evento vai permitir situar o pintor no seu tempo, na arte do seu tempo em que ocupou um lugar de grande relevo que se trata agora de justamente tornar conhecido, fazendo-lhe justiça. Por esse motivo, o documentário agora apresentado destina-se a enquadrar e divulgar essa grande exposição.
                     ESTREIA Amadeo de Souza Cardoso o Último Segredo da Arte Moderna 
   Amadeo tem sido estudado em profundidade nos últimos trinta anos por iniciativa e sob o impulso da Fundação Calouste Gulbenkian, num percurso apaixonado e apaixonante que este filme, em paralelo com a história do pintor precocemente desaparecido com 30 anos em 1918, com recurso aos depoimentos de historiadores e especialistas nos dá a conhecer.
    Agora do mesmo passo que acolho muito bem este documentário bem feito e de circunstância, incentivo todos a irem a Paris ver a exposição que está no Grand Palais para plenamente perceberem o que, em termos artísticos e de história da arte, de pessoal e original aqui está em causa .

domingo, 17 de abril de 2016

Furiosa ou o último filme de acção

   Só agora consegui ter tempo para ver "Mad Max: Estrada da Fúria"/"Mad Max: Fury Road", do australiano George Miller (2015), depois de o filme ter sido reconhecido em todo o mundo como o melhor desta série e consequentemente galardoado. 
                   Mad-Max-Citadel
    Assombrado por aqueles que não ajudou no passado, Max Rockatansky/Tom Hardy junta-se a Imperator Furiosa/Charlize Theron na fuga desesperada de um ditador, Immortan Joe/Hugh Keays-Byrn, que em tempos de água escassa regula o seu fornecimento e dessa forma domina em era pós-apocalíptica. Acompanham-nos na sua demanda da terra perdida, o Lugar Verde, um grupo de mulheres sob o domínio pessoal do ditador, as suas procriadoras, e Nux/Nicholas Hoult, aquele que mudou de lado e se vai sacrificar.
    O que me impressiona mais é a proximidade deste esquema narrativo e da maneira como, em paisagem desértica, é desenvolvido do western clássico americano, de que conserva o sopro e o espaço num tempo futuro em que ainda se recorda um passado em que não era preciso matar, muito embora as proximidades e influências gráficas da banda desenhada devam ser igualmente sublinhadas.
                   The Furiosa Comic Undoes Everything Great About Mad Max: Fury Road
     Com todos os aspectos técnicos perfeitamente dominados, as questões que se levantam são a da credibilidade humana das personagens e a da energia da acção, desesperada apesar da esperança invocada pela Furiosa. Depois de ter deixado que ela apoie a arma sobre o seu ombro para o tiro final, vai ser Max a dar a melhor indicação sobre o caminho a seguir, o regresso à Cidadela, e a salvá-la. Depois da vitória e do regresso, a despedida de ambos é perfeita.
     Os actores estão todos muito bem, com destaque para Tom Hardy e Charlize Theron, ela que com o cabelo rapado e a testa pintada de preto, sem um braço e no final sem um olho permanece a actriz mais bonita da actualidade no cinema americano.                
                   FURY ROAD
    Além de ser o melhor filme da série "Mad Max" que George Miller desde o início tem realizado, este "Mad Max: Estrada da Fúria" é um dos melhores e últimos grandes filmes de acção que nos têm chegado recentemente de Hollywood. Com realização precisa e muito boa, actores certos, efeitos especiais excelentes e uma dinâmica imparável, este foi um dos melhores filmes de 2015.        

sábado, 16 de abril de 2016

Revisto e actualizado

   Baseado na peça de Henrik Ibsen datada de 1892, "Solness, le constructeur"/"Solness" de Michael Klette (2015) é um filme sóbrio e soberbo que, com grande economia de meios, nos transporta ao drama íntimo e exterior de um arquitecto, Solness/Thomas Sarbacher, em perseguição da obra perfeita que ainda lhe falta, se faltar.
   Procurando ânimo em Hilde/Julia Schacht, estudante de arquitectura muito mais nova do que ele, depois da morte dos seus dois filhos, o protagonista percorre a sua carreira e obra ao preparar um futuro que não se quer definido à partida. Também autor do argumento e da adaptação, o realizador, encenador de teatro com grandes provas dadas, consegue resolver em termos espaciais e arquitectónicos um filme que preserva toda a força e o impacto do original teatral.     
                        Solness
    Michael Klette explora todos os espaços em profundidade, em altura vistos de baixo e de cima, interiores e exteriores, em que se move o protagonista, com uma segurança e uma sageza impressionantes, por forma a tornar este "Solness" uma lição do tratamento do espaço e da arquitectura no cinema - e do mais graças a uma montagem seca e curta mas inspirada ela também.
   Com um protagonista forte e cheio de certezas que a dúvida atravessa interpretado por um excelente Thomas Sarbacher, este um filme exemplar sobre a ambição, a criação e a decadência, situado num tempo, a actualidade, em que todas estas questões se defrontam e digladiam. Com apenas alguma experiência de trabalho como argumentista para televisão, o realizador aproveita a sua experiência teatral para, nesta sua primeira longa-metragem, em termos cinematográficos ter tudo, conflitos pessoais e geracionais incluídos, no seu lugar certo num espaço filmicamente tratado de forma superior.
    Passou esta semana no Arte.

terça-feira, 12 de abril de 2016

Inesperado e muito bom

     Recuperando as personagens da sua terceira longa-metragem, "Comment je me suis disputé... (ma vie sexuelle)", 1996, Arnaud Desplechin regressa à sua Roubaix natal para "Três Recordações da Minha Juventude"/"Trois souvenirs de ma jeunesse" (2015), desta feita com Julie Peyr como co-argumentista. O resultado é notável como passo a explicar.
                     Três Recordações da minha juventude
     De regresso na actualidade de uma missão diplomática no estrangeiro, Paul Dédalus/Mathieu Amalric é levado a duas recordações breves, uma da infância a outra da adolescência, e uma longa, sobre os seus amores com Esther/Lou Roy-Lecollinet quando jovem de 19 anos/Quentin Dolmaire. Salvo o apontamento muito curioso com Claverie/André Dussollier no segundo episódio, "Minsk", é o terceiro, "Esther", o que maior interesse apresenta.
     Recuperando o estilo das viagens entre uma cidade de província e Paris, que segundo Gilles Deleuze caracterizou a nouvelle vague francesa, este longo terceiro episódio de "Três Recordações da Minha Juventude" conduz-nos ao coração de uma relação permanentemente interrompida, permanentemente recomeçada, enquanto Paul e Esther prosseguem os seus estudos e, quando separados - ele em Paris, ela em Roubaix -, seguem cada um o seu rumo sentimental e sexual embora continuem a corresponder-se por carta.
                    Cena do filme 'Três Lembranças da Minha Juventude'
     Se estão bem vistos os estudos em antropologia dele, as relações na pequena comunidade de origem são especialmente interessantes e bem dadas, embora a meu ver o melhor seja a leitura das cartas de cada um deles para a câmara, muito sugestiva e conseguida. A elisão da morte da professora de Paul está muito bem, como estava no primeiro episódio, "Infância", a elisão da morte da sua mãe, e a cena no cemitério em que ele visita a campa desta não destoa. 
    Além disso, este terceiro episódio, coincidente no tempo com a queda do muro de Berlim, apresenta, no seu esquema sentimental e até estético, e sobretudo quanto mais se aproxima do seu termo, manifestas influências godardianas dos anos 60.
                   
     O epílogo está bem visto e muito bem interpretado por Mathieu Amalric, embora aqui deva destacar os excelentes desempenhos de Lou  Roy-Lecollinet e Quentin Dolmaire em todo o terceiro episódio. A fotografia de Irina Lubtchansky é muito boa, ela também, enquanto a música e as escolhas musicais de Grégoire Hetzel e Mike Kourtzner se revelam sempre justas. Arnaud Desplechin continua a ser um cineasta sério e muito bom, que me interessa e aconselho (sobre ele ver "Um cinema da exigência", de 11 de Fevereiro de 2012, e "Mal da alma", de 15 de Julho de 2014).

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Sair depressa

     "À Sombra das Mulheres"/"L'Ombre des femmes", o mais recente filme de Philippe Garrel (2015) que agora estreou entre nós, é mais uma obra assombrosa do cineasta sobre uma questão a que já nos habituou: os encontros e desencontros, o desfazer e o refazer de um casal, um homem e uma mulher, com as peripécias de cada um deles com outro parceiro pelo caminho.
                    Film              
     Pierre/Stanislas Merhar é um jovem realizador de cinema que prepara um documentário sobre a Resistência em França durante a II Guerra Mundial com a ajuda de Manon/Clotilde Courau, sua assistente e script, com quem vive. Ele vai encontrar Elisabeth/Lena Paugam - e a própria circunstância em que se encontram, de carregarem bobinas de filmes no Pont d'Alma, dá muito bem conta da clandestinidade resistente do próprio cinema -, com a qual passa a ter encontros clandestinos regulares sem Manon saber, enquanto esta já se encontrava antes com um outro homem, o seu amante/Mounir Margoum, sem que Pierre soubesse.
     Elisabeth descobre-o e revela-o a Pierre, e assim está desencadeado o jogo típico de Philippe Garrel de tentar perceber as mulheres e os homens, um jogo em que filme a filme perde mesmo quando parece ganhar mas de que não desiste - com as mulheres perde-se sempre mesmo quando parece ganhar-se, somos sempre mais o amante que o companheiro fixo, e a escolha pela que está/estava é conformista e conforme, pela "segurança". A voz-off de Louis Garrel, que narra e comenta, está muito bem achada e resolvida, e quanto mais crítico das mulheres melhor Philippe Garrel as escolhe e filma.
                    In The Shadow Of Women
       Filmada a preto e branco por Renato Berta, Paris continua a ser no cinema do cineasta uma cidade de encanto, única, conhecida e misteriosa, a cidade dele, enquanto a participação de Jean-Claude Carrière, Caroline Deruas-Garrel e Arlette Langmann no argumento e nos diálogos com o próprio realizador é tudo menos indiferente, elas as duas provenientes já de filmes anteriores de Garrel e ele, Carrière, certamente com uma palavra a dizer sobre o lado mais venenoso dos diálogos e do filme.
      Deste "À Sombra das Mulheres" filmado em película (35mm) por Philippe Garrel, que é um filme sobre o cinema em que nem o passado do falso herói da Resistência nem o futuro do cinema são certos, deve-se sair depressa, porque algum amigo morto ou alguma mulher amada nos espera e para tentarmos chegar a tempo do próximo filme do cineasta.
                     Photo de Philippe Garrel à propos du  film cinéma Philippe Garrel et publiée le 15 Avr. 2015 à 13:21:14
    Se não tiverem visto ou revisto recentemente "Este Obscuro Objecto do Desejo"/"Cet obscur object du désir", de Luis Buñuel (1977), com argumento de Jean-Claude Carrière baseado em Pierre Louys, vejam ou revejam que percebem melhor este último filme de Philippe Garrel que, noto, há uns cinquenta anos se mantém fiel no cinema ao mesmo tipo feminino (sobre ele ver "Sair devagar", de 4 de Agosto de 2014).