“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Quarentena

    Porque não estou de maneira nenhuma disposto a continuar a expor-me diariamente aos dislates e ao discurso odioso, desvairado, errático e politicamente muito perigoso, do candidato republicano às próximas eleições presidenciais americanas, que felizmente não conta com apoio de todos no partido respectivo, deixei de ver durante este mês de Agosto os canais de televisão em língua inglesa que costumava ver até ser conhecido o resultado eleitoral. A eles regressarei, se regressar, depois disso.
    Devido ao seu apoio vergonhoso a tal candidato, também não escreverei aqui sobre o mais recente filme de Clint Eastwood, com estreia em Portugal anunciada para a próxima semana, senão depois das eleições de Novembro, mesmo se penalizando assim injustamente Tom Hanks, que não o apoia. Se escrever.
                       Elisabeth Quin #arte #28minutes #gaspardyurkievichparis #chantaltvradar
     Fixo residência permanente no Arte, que tem noticiários curtos duas vezes por dia, grandes documentários, séries e filmes de ficção, um canal cultural onde trabalha gente inteligente como Élisabeth Quin, agora regressada ao 28 minutes, os seus "permanentes" e os seus convidados sempre muito bons, o que tem a vantagem suplementar de me poupar a questões estúpidas como as colocadas por uma "locutora profissional" da BBC World News a um seu colega da BBC Culture sobre a escolha, promovida por esta, dos 100 melhores filmes do século XXI por 177 críticos de cinema de todo o mundo: porque não consta dessa lista nenhum filme do Harry Potter? porque é considerado o melhor "um filme difícil" como "Mulholland Drive"? (de David Lynch, 2001 - ver "Tudo é ilusão", de 27 de Fevereiro de 2012). Também em Inglaterra, e até em especial pós-Brexit (depois de terem feito a escolha errada no referendo os ingleses ficaram todos muito nervosos), a televisão continua a ser "o reino da estupidez".
    Estou certo de que os eleitores americanos saberão mais uma vez dar provas do seu discernimento político, fundamental numa eleição em que são confrontados com os limites que à democracia é completamente interdito/forbiden/défendu/verboten transpor desde o ano de 1933 na Alemanha. As simple as that.

Quinta-feira, à mesma hora

    O Arte começou transmitir há três semanas a série policial sueca "Meurtres à Sandhamn"/"Morden i Sandhamn", baseada em "La reine du Baltique" e noutros livros de Viveca Sten, que tanto quanto sei não está traduzida em português. A série começou em 2010 e já foram transmitidas as duas primeiras épocas, com três episódios cada.
                     Meurtres à Sandhamn Saisons 2 à 5 sur Arte
       Falo disto porque sou fã do policial escandinavo também na televisão e porque esta série, que não conhecia, tem narrativas aliciantes - com Camilla Ahlgren e Hans Rosenfeldt como argumentistas -, grandes intérpretes - com Jakob Cedergren e Alexandra Rapaport nos protagonistas e outros grandes actores e actrizes em "papéis secundários" -, e conta com uma realização sempre superior, direi mesmo invulgar em televisão - maioritariamente a cargo de Niklas Ohlson e Mattias Ohlsson.
     Como é de uso neste tipo de narrativas, os crimes são hediondos e sucedem-se, as dificuldades para descobrir o autor deles avolumam-se acompanhadas por um suspense muito bem gerido, enquanto, na belíssima paisagem da ilha em que se situa Sandhamn e da Suécia, a sociedade sueca é minuciosamente escalpelizada.
                          
      "Meurtres à Sandhamn" é do melhor que tenho visto nos últimos anos para o pequeno ecrã. E anunciam-se episódios inéditos para Setembro.
       À quinta-feira no Arte, às 19H 55M (hora portuguesa).   

O vício dos livros

   A RTP2 começou a transmitir em 22 de Agosto uma série açoriana, "O Livreiro de Santiago" (2015), sobre Manuel Carlos George Nascimento (1885-1966), um natural do Corvo que no Chile se tornou editor de Gabriela Mistral e Pablo Neruda, entre muitos outros.
Gabriela MistralPablo Neruda entre muitos outros. 
                      http://diariodalagoa.com/wp-content/uploads/2016/07/filme-livreiro-Santiago.jpg
   Com música, argumento e realização do incontornável Zeca Medeiros, está muito bem feita, num exigente preto e branco, o que nem sequer espanta naquele que é o melhor realizador português de séries televisivas, que anteriormente adaptara com grande sucesso "Mau Tempo no Canal", de Vitorino Nemésio (1992), e "Gente Feliz com Lágrimas", de João de Melo (2002).
   Segundo esta série, Carlos Nascimento terá partido em 1905 do seu Corvo natal para os Estados Unidos, onde teve as primeiras notícias do cinematógrafo e onde estava quando do terramoto de 1906 em S. Francisco, seguindo depois para o Chile, onde se fixou, veio a saber do regicídio, da implantação da República e da I Guerra Mundial, e onde recebeu parte de uma livraria como herança do seu tio João Nascimento.
Gabriela Mistralpara os Estados Unidos, onde teve as primeiras notícias do cinematógrafo, rumou depois para o Chile, de onde acompanhou à distância o regicídio, a implantação da República e a I Guerra Mundial. Considerava-se a si próprio "um tímido aventureiro".                
                      livreiro 2
   Zeca Medeiros requinta na qualidade da realização, com um tratamento surpreendente dos cenários. O primeiro episódio começa como documentário que introduz a narrativa ficcional e no segundo episódio cita expressamente sequências célebres de filmes de Eisenstein, Jean Vigo e Orson Welles. Claro que ele abusa, como sempre, do insuportável "choradinho lusitano", mas é mesmo o único que sabe lidar com ele para equilibrar e calibrar cada um dos seus filmes.
    O terceiro episódio passa na próxima segunda-feira, 5 de Setembro, às 23H 30M na RTP2.

terça-feira, 30 de agosto de 2016

O diário de Cristina

      "Amor Impossível", o mais recente filme de António-Pedro Vasconcelos (2015), com argumento de Tiago Santos inspirado em factos reais, é cru e violento sobre o amor português tomado em personagens jovens. E é um dos seus melhores filmes pela precisão com que é construído e dirigido, revelando mais uma vez a mestria do cineasta.      
                       amorimpossivel
     A história localizada em Viseu é banal e telenovelesca, como um lugar comum das vidas portuguesas, mas transforma-se em tragédia, uma tragédia portuguesa com ressonância universal, nas mãos de um cineasta inteligente e culto que aqui volta ao seu melhor - "Os Imortais" (2003), por exemplo, aqui convocado pela sua semelhante construção formal, agora aperfeiçoada. 
   Desdobrada em dois tempos pelo diário de Cristina/Victoria Guerra que a agente Madalena/Soraia Chaves lê, a narrativa mantém o seu mistério intacto até ao fim, sem qualquer contemporização com as expectativas do espectador. Como um novelo que se desenrola, a história contada no diário é uma história de amores juvenis que se querem absolutos, mas vai ser Tiago/José Mata quem no final vai revelar o que de facto aconteceu depois do diário de Cristina.
                            
      Demasiado jovens para criarem um projecto de futuro para os seus amores, só ela escutara a conversa de Jacinto/José Martins sobre a morte da mulher, como só ela, que alimentava suspeitas sobre as circunstâncias da morte do pai, levara uma tareia da mãe, Amélia/Maria D'Aires, enquanto a ele lhe calhara as restrições do pai, a porrada durante um concerto, o vício do jogo e o ciúme. A morte do canário prenuncia o final.
     Não existe um plano a mais no último filme de António-Pedro Vasconcelos, já que tudo é minuciosamente preparado para resultar daquela maneira. O recurso ao fait divers, que por exemplo François Truffaut utilizou com grande felicidade ("La femme d'à côté", 1981), torna tudo mais impiedoso e sem sentido. A música dispersa tem um tom melancólico e desesperado, ela também. As referências literárias são justas e o cruzamento de Madalena com Cristina está bem visto. Sobre o cineasta ver "Lugar incomum", de 6 de Junho de 2015.
                                    http://static.fnac-static.com/multimedia/Images/PT/NR/89/94/0e/955529/1507-1.jpg
       
         Nota
      Para conhecer melhor o António-Pedro são fundamentais dois livros saídos este ano: "António-Pedro Vasconcelos: Um Cineasta Condenado a Ser Livre - Diálogo com José Jorge Letria" (Lisboa: Guerra & Paz, 2016) e "A Companhia dos Livros", de António-Pedro Vasconcelos (Lisboa: Sociedade Portuguesa de Autores Edições, 2016), este uma recolha de artigos seus.

O passo seguinte

   Depois do filme que Jorge António lhe dedicou, "Kuduro - Fogo no Museke" (2007), que introduziu a questão, "I Love Kuduro - From Angola to the World", de Mário Patrocínio (2014), dá o passo seguinte sobre esta música e dança angolana, mostrando a evolução entretanto verificada.
   Mais longo e com maior vivacidade que o anterior, este novo filme que só agora vi mostra-nos como essa mistura de house, techno e ritmos tradicionais angolanos, com uma parte de intervenção, uma parte de cultura e uma parte de sentimento, como diz uma das personagens, evoluiu para novas formas. Mas o kuduro é também alegria jubilatória, contagiante.
                       http://www.berlinda.org/pt/wp-content/uploads/2014/08/Jump-Kuduro-_Cr%C3%A9ditos_BRO.jpg
    Além de Luanda, onde no musseque nasceu o kuduro e que continua a ser a sua base, o documentário de Mário Patrocínio leva-nos também a Malange. A aparicão das mininas, passada mais de uma hora do filme, é curta mas significativa e culmina com um travesti.
    Mas o grande trunfo inicial do filme é acompanhar os kuduristas enquanto caminham no seu bairro, o que, juntamente com os depoimentos e os excertos de danças, aponta um caminho em frente, sempre em frente, em marcha acelerada. O que permite que o final muito bem visto, com retardador e acelerado, surja como contrastante.
                      
    Por sua vez, a inserção de imagens de vídeo neste "I Love Kuduro" está muito bem feita, estabelecendo a diferença e impedindo qualquer confusão.
    A internacionalização desta dança tem-se verificado sobretudo em África, do que nos são mostradas imagens de arquivo, o que se compreende embora fosse desejável que ela se verificasse também noutros continentes, pois neste momento é uma excelente apresentação dos angolanos a todo o mundo. Agora o desafio que se coloca é mesmo um filme musical com o kuduro.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Contra ideias feitas

    Com data de 25 de Agosto, o artigo de Manolha Dargis "The Race to Save the Films We Love", publicado na edição do The New York Times de 28 de Agosto e acessível no site do mesmo jornal em 
www.nytimes.com
a partir da experiência americana ocupa-se da importantíssima questão da preservação e recuperação do património cinematográfico.
                     TheFrontPage28
     Contra ideias feitas, a partir de casos concretos e do trabalho concreto de especialistas americanos, depois de fornecer informação relevante e proceder a reflexões importantes, nomeadamente ao perguntar-se "what is film?" ecoando o "what is cinema?" de André Bazin, a autora afirma nesse artigo que a preservação da película é mais fácil, menos dispendiosa e mais duradoura do que a preservação do digital. Cito Manolha Dargis: "The upbeat platitudes that have often accompanied the shift to digital tend to obscure pragmatic considerations, including that film is easier and less expensive to preserve than digital and isn’t plagued by the same obsolescence issues."   
    Leiam, apreciem e pensem nisso, para ver se pelo menos começam a sair da vossa assustadora pasmaceira de "parolos do digital".

O declínio do amor

     "A Comuna"/"Kollektivet", o mais recente filme do dinamarquês Thomas Vinterberg (2016), conta-se entre os melhores deste cineasta original, um dos fundadores do Dogma 95 com Lars Von Trier (sobre este ver "Uma luz nas trevas", de 24 de Março de 2012, e "Implacável", de 7 de Fevereiro de 2014).
                    
    Nos anos 70 do século passado, um arquitecto abastado, Erik/Ulrich Thomsen, resolve com a mulher, Anna/Trine Dyrholm (uma interpretação notável que valeu à actriz o Urso de Prata no último Festival de Berlim), fundar uma comuna, um grupo de vida em comum, na antiga e vasta casa da sua família. As peripécias que se seguem são meras curiosidades sobre o meio assim criado, que serve de contexto, e cada um dos seus elementos, nomeadamente no que respeita à admissão de membros, à filha de ambos, Freja/Martha Sofie Wallstrom Hansen, e à vida em comum.
    A relação do casal vai, porém, mudar, com a chegada de Emma/Helene Reingaard Neumann, aluna de Erik que com ele estabelece uma relação paralela. Inicialmente, Anna parece não se opor, mas acaba por se humilhar no sonho que relata e por entrar num impasse emocional na sua profissão de apresentadora de televisão. Por fim parte, deixando o marido em lágrimas, num filme em que pelo menos um outro homem várias vezes chora. 
                    
    Com a grande escolha de duas personagens mais novas, Freja e Vilads/Sebastian Gronnegaard Milbrat, que sabe que vai morrer até aos 9 anos e efectivamente morre, Thomas Vinterberg, também argumentista com Tobias Lindholm que aqui com ele colabora pela terceira vez depois de "Submarino" (2010) e "The Hunt - A Caça"/"Jagten" (2012), juntamente com os excertos de noticiários televisivos consegue estabelecer elementos de justo distanciamento que confere uma outra dimensão ao filme.
      Diz o cineasta que se baseou em experiência da sua própria juventude, e de facto este "A Comuna" funciona como filme de época sobre um tempo ainda próximo muito feliz e conseguido porque questiona a vivência social, comunitária, o casamento e a sexualidade. Sobre Thomas Vinterberg ver "Contra a indiferença", de 17 de Março de 2013.

Estão todos bem

      Com argumento de Drew Goddard a partir do livro de Andy Weir, "Perdido em Marte"/"The Martian", o mais recente filme de Ridley Scott (2015), é uma ficção científica especulativa e aliciante que, a partir da extrapolação de conhecimentos científicos comuns, cria um ambiente de tensão e suspense ao gosto do grande público.
                     the martian
    Depois do filme histórico, com que não se dá tão bem - "Exodus: Deuses e Reis"/"Exodus: Gods and Kings" (2014), em que especulava sobre um passado bíblico - embora seja um género em que já fez bons filmes, o cineasta regressa pelo menos ao meio em que ficou conhecido com "Alien - O 8º Passageiro"/"Alien" (1979) e "Blade Runner: Perigo Iminente"/"Blade Runner" (1982), e fá-lo de modo mais feliz do que em "Prometheus" (2012) porque encara a conquista do espaço do lado do unanimismo.
    Um astronauta americano, Mark Watney/Matt Damon, é abandonado por morto em Marte pela missão comandada por Melissa Lewis/Jessica Chastain antes de regressar à Terra, e aí ele vai ter de sobreviver até que possa vir a ser resgatado - e essa é a melhor parte do filme, a experiência da solidão planetária e da resistência. Falhada a tentativa de o recuperar a partir da Terra, como cedo se antevira é a própria estação espacial em regresso que acaba por ser encarregada de o fazer a partir dos cálculos de um jovem desconhecido, Rich Purnell/Donald Glover (a propósito, não foi a Apollo 9 mas a Apollo 8 que fez o primeiro voo circunlunar, em Dezembro de 1968).
                     the martian matt damon
      Cansativo na sua longa duração, "Perdido em Marte" cumpre mesmo assim um programa aliciante e gratificante, embora Mark Watney seja uma espécie de MacGyver da exploração do espaço pelo seu engenho de astronauta e biólogo, o que é acentuado pela interpretação toda em leveza de Matt Damon. Nem sequer surpreende a mestria com que tudo é encenado, mas percebe-se que o filme está todo do lado das grandes audiências, que é o espaço preferido do cineasta (no que não existe problema nenhum), pela maneira como desenvolve a sua narrativa fílmica. E no final estão todos bem, para que a conquista do espaço possa prosseguir como todos desejam que aconteça, num filme muito americano, o que até lhe fica bem.
     Não terei dúvidas em conceder que se trata de um bom filme (Ridley Scott é sempre tecnicamente irrepreensível e muito vistoso embora com alguma tendência para a grandiloquência) sem ser um grande filme - não está ao nível de "Interstellar", de Christopher Nolan, 2014 (ver "O outro lado", de 16 de Novembro de 2014) -, mas espera-se pelo próximo anunciado "Alien: Covenant". Até lá, o melhor filme do cineasta neste século é a meu ver "Robin Hood" (2010). 
                   The Martian promotional stills (FOX)
     Mas se bem interpreto os sinais dos tempos, um destes dias os Cahiers dedicam-lhe a capa e uma extensa entrevista ou mesmo um livro, e então ele será herói independente do IndieLisboa com direito a retrospectiva integral nas cinematecas - sobre  Ridley Scott ver "Um mito das origens", de 11 de Julho de 2012, e "Luxo estéril", de 24 de Novembro de 2013.

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Uma família americana, ou várias

     O mais recente filme do veterano Jonathan Demme, "Ricki e os Flash"/"Ricki and the Flash" (2015), não surpreende nem agrada em especial, embora não desmereça de todo na obra do autor de "O Silêncio dos Inocentes"/"The Silence of the Lambs" (1991) e "Filadélfia"/"Philadelphia" (1993). Veículo para uma Meryl Streep sexagenária no papel do título, conta com o aliciante da participação da filha da actriz, Mamie Gummer, no papel de Julie, a filha de Ricki.
                     Meryl Streep in 'Ricki and the Flash'

      A protagonista dedica-se com a sua banda a concertos de música rock como instrumentista e vocalista quando é chamada pelo ex-marido, Pete/Kevin Kline, por causa do divórcio de Julie e das suas consequências para ela, o que vai ser ocasião para Ricki reencontrar também os dois outros filhos, Josh/Sebastian  Stan e Adam/Nick Westrate, e para conhecer a nova mulher de Pete, Maureen/Audra McDonald.                
     Pese embora o bom trabalho dos actores principais, tudo narrativamente decorre no maior conformismo, contra o pretenso inconformismo de Ricki, que apesar de tudo por contraste se afirma. Mas torna-se previsível e por isso menos interessante a partir do momento em que os contrastes, que funcionam por clichés até nos diálogos, são estabelecidos. E o final, com o casamento de Josh, faz dela "a mãe do noivo" - alusão ao fiilme de Vincente Minnelli "O Pai da Noiva"/"The Father of the Bride" (1950), com Spencer Tracy e Elizabeth Taylor - para tornar tudo mais redondo e bem comportado.
                    Julie (Mamie Gummer) and Ricki (Meryl Streep) in TriStar Pictures' RICKI AND THE FLASH.
    Mesmo assim o filme tem o mérito de encenar vidas americanas, e desse ponto de vista torna-se um melodrama razoável embora muito aquém do melhor que no género se faz para televisão. Apesar de Greg/Rick Springfield, que a acompanha na banda e é seu namorado, mas também por causa dele, percebe-se que este "Ricki e os Flash" tinha mais hipóteses como musical, lado que, apesar das boas músicas que inclui, não explora.
     Jonathan Demme mostra mais uma vez que é um bom realizador, capaz de pegar em qualquer material sem o estragar, mas este filme fica como mera curiosidade na sua obra. E fica-se sobretudo com curiosidade quanto aos documentários que nos últimos anos ele tem feito. 

O amor da música

       O  prestigiado documentarista americano Morgan Neville ganhou o Oscar para o melhor documentário de longa-metragem em 2014 com um filme invulgar e notável, "A Dois Passos do Estrelato"/"Twenty Feet from Stardom" (2013), que só agora tive oportunidade de ver. 
                     Since Ray Charles already got an Oscar-winning biopic, "Twenty Feet from Stardom" turns our attentions to the background singers, who unusually occupy the foreground of this television shot.
     E este é um grande documentário porque é dedicado às backupsingers, maioritariamente negras, que têm acompanhado grandes cantores sem serem na maior parte dos casos individualmente conhecidas nem verem reconhecido o seu valor próprio. Ora este filme põe-nas a falar de si próprias, a contar a sua história de cantoras, acompanhadas pelo depoimento dos cantores vivos com os quais cantaram, que se contam entre os maiores nomes da música moderna dos últimos 50 anos, que fazem o seu elogio total - e são eles quem melhor as conhece.
      Mas o filme de Morgan Neville não se fica por aí - com espantosos contracampos, aliás -, pois inclui material de arquivo de concertos deles em que elas participaram por forma a permitir-nos apreciar hoje as vozes excepcionais delas, com um fundo de gospel e grande capacidade de adaptação, e o modo como valorizaram as performances dos grandes cantores conhecidos, as "estrelas" da música rock e pop. 
                   
    Embora possa surgir como tardia, esta homenagem do cinema às  backupsingers assume uma feição pouco frequente no documentário, a de musical, a que só chegam os filmes de grandes realizadores (Godard, Scorsese) sobre grandes grupos musicais. Ora tal fica a dever-se a uma excepcional montagem, que nos faz percorrer as últimas décadas sem perder a noção da cronologia.
    Com uma energia que não dispensa o humor nem a emoção, "A Dois Passos do Estrelato" cumpre uma função fundamental ao fazer justiça àquelas que mostra e ouve, deixando-se embalar pelo seu talento e pelo seu amor à música, aqui exuberantemente demonstrado. Vê-se como um sonho que passa depressa mas marca e fica. E fixem os seus nomes porque elas vão ficar.

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Furar os limites

    "Mustang" é a primeira longa-metragem da franco-turca Deniz Gamze Ergüven (2015), com argumento seu e de Alice Winocour que implicou vários anos de preparação - começou a ser escrito em 2011 -, um filme de produção germano-franco-turca multipremiado que desperta a nossa atenção por diversos bons motivos.
                    Turkish actresses (clockwise from left) Tugba Sunguroglu, Ilayda Akdogan, Gunes Sensoy, Elit Iscan and Doga Zeynep Doguslu pose during a photocall for the film "Mustang" on the sidelines of the 68th Cannes Film Festival in Cannes, southeastern France, on May 19, 2015. (Loic Venance/AFP/Getty Images)
    Na Turquia os tempos não correm fáceis para ninguém, muito menos para as mulheres jovens numa aldeia perdida do interior. Cinco irmãs orfãs vêem-se acossadas pela família, a avó/Nihal G. Koldas, e um tio, Erol/Ayberk Pekcan, que as fecham em casa e lhes proíbem todos os contactos com o exterior, enquanto a primeira lhes prepara "casamentos arranjados" contra a vontade delas que a elas são supostas chegar virgens. Em poucas palavras, duas aceitam esses casamentos, Sonay/Ilayda Akdogan e Selma/Tugba Sunguroglu, uma mata-se, Ece/Elit Iscan, e as duas últimas, Nur/Doga Zeynep Doguslu e Lale/Günes Sensoy, a mais nova que é a narradora, conseguem fugir. 
    Muito bem trabalhado em termos fílmicos, este "Mustang" merece a nossa melhor atenção pelo retrato justo a partir do concreto - género e idade - de uma sociedade dividida - o discurso oficial sobre a mulher que as personagens ouvem na televisão - e por saber lidar com um momento fugidio e não esclarecido entre o tio e a sobrinha mais nova, já próximo do seu final, que Lale resolve com um copo de água na cozinha.  
                    Image result for mustang movie images
    A música é apropriada e está bem utilizada neste filme estreado este ano em Portugal que manifesta um desembaraço invejável em termos de cinema que é raro encontrar numa primeira obra, embora seja notória a influência de "As Virgens Suicidas"/"The Virgin Suicides", de Sofia Coppola (1999), que foi também um excelente primeiro filme.  
   Com a melhor construção formal e actrizes e actores sempre justos em papéis ingratos, "Mustang" de Deniz Gamze Ergüven tem o mérito especial de colocar todas as possibilidades de que a última, a fuga para Istambul liderada pela narradora, surge como a preferível e mais razoável, porque fura o cárcere e o sistema na procura de uma vida livre e melhor.

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Uma noite em Havana

    Ainda hoje sobretudo conhecido por "A Turma"/"Entre les murs" (2008) embora conte outros filmes estimáveis, o francês Laurent Cantet voltou a Havana para "Regresso a Ítaca"/"Retour à Ithaque" (2014) depois de aí ter feito já um dos episódios de "7 dias em Havana"/"7 días en la Habana" (2012) - ver "Havana 2012", de 21 de Setembro de 2012.
    Para este seu último filme parte da adaptação livre de uma novela de Leonardo Padura, que com ele participa no argumento. É, assim, sem surpresa que deparamos, nos diálogos entre cinco amigos que um deles define no início como "um clube da terceira idade", com todas as referências à Cuba actual dos romances e novelas do grande escritor cubano. 
                     zzitaca2 - 720
     Sem meias tintas nem piedosas ambiguidades, aquela é a Havana contemporânea, capital de um país contemporâneo que se tornou famoso devido a uma revolução que instituiu um regime comunista que ainda hoje, passados mais de 50 anos, se mantém. Amadeo/Néstor Jiménez regressa a Havana depois de ter estado 16 anos em Espanha, e os diálogos reflectem o que foi a vida de cada um deles durante esse tempo e mesmo antes.
    Há a Miami distante mas tão próxima onde vivem os filhos de Tanía/Isabel Santos, há a vida frustrada de pintor de Rafa/Fernando Hechavarria como frustrada na literatura embora de forma diferente foi a do regressado, há o homem que acreditou, Aldo/Pedro Julio Días Ferran, que tem um filho a quem já nada daquilo diz seja o que for, e há o homem integrado, peça do sistema, Eddy/Jorge Perugorría, que se depara ele também com problemas, todos eles amigos desde sempre que se reunem uma noite, num terraço, para celebrar o regresso de Amadeo entre o final de um dia e a madrugada do dia seguinte.   
                     zzitaca8
     O que se torna muito curioso é que a realização sóbria de Laurent Cantet, com boa utilização do espaço, grande proximidade dos rostos e grandes actores, se centra em diálogos que fazem sentir um país de que revelam o passado recente e o presente - como nos livros de Padura com Mario Conde, nomeadamente. E admito mesmo que quem não conhecer os livros deste grande escritor tenha acesso menos facilitado a este filme exigente e muito bom - sobre Padura ver "A hora e a vez", de 25 de Junho de 2015.
     Por entre a frustração e o medo prevalece a amizade, que Fela/Carmen Solar, a mãe de Aldo que lhes prepara a refeição, lhes propõe e  o relato final de Amadeo demonstra, dizendo que entre eles não houve nem haverá "última ceia".

terça-feira, 16 de agosto de 2016

A poética do arquivo

    Os italianos Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi são dois cineastas fundamentais dos últimos 40 anos da história do cinema que, na curta e na longa-metragem, vêm trabalhando as imagens documentais de arquivo com grade originalidade e pertinência.
    Depois da retrospectiva integral que o Centre Pompidou, em Paris, lhes dedicou entre 25 de Setembro e 15 de Novembro de 2015, o Arte transmitiu na noite passada o seu mais recente filme, "Pays barbare" (2013), que a partir de imagens do fascismo italiano, sobretudo na sua vertente colonial embora comece com a morte do ditador, nos dá um magnífico exemplo do método de trabalho deles.
                                               
   Trata-se de imagens de época, hoje de arquivo, que no seu carácter de testemunho histórico são submetidas ao retardador, à colorização, à exposição em negativo, à montagem e à sua consequente estetização, por forma a por mais tempo insistentemente permanecerem diante de nós como imagens do filme.
   E isto é exemplar do trabalho artístico e vanguardista de Gianikian e Ricci Lucchi, tanto mais interessados no mais antigo quanto ele estiver já degradado por forma que, por vezes, temos apenas fragmentos de imagem já parcialmente delidos, que o contraste, a negativização e a colorização trabalham.    
                   'Pays Barbare' Photocall - 66th Locarno Film Festival                                  
      "Pays barbare" de Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi é um excelente exemplo do melhor que se pode fazer hoje em dia no documentário contra todos os seus cânones e dogmas mas respeitando sempre a regra de ouro de só usar imagens documentais. Em comentário, as vozes deles chamam a atenção para a actualidade de tudo aquilo, que não deve cair no esquecimento antes ser mostrado e recordado para nossa lição e proveito - se formos disso capazes.
      A Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema dedicou-lhes uma importante retrospectiva em 2001 que seria oportuno actualizar agora, já que a dimensão dos dois cineastas não tem parado de crescer e justifica-o.

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Para crianças, com engenho

    Pessoalmente não estava à espera de "O Amigo Gigante"/"The BFG", o mais recente filme de Steven Spielberg (2016). Feito para a Disney, conta com argumento de Melissa Mathison sobre livro de Roald Dahl (o mesmo que esteve na origem de "Charlie e a Fábrica de Chocolate"/"Charlie and the Chocolate Factory", de Tim Burton, 2005) e é declaradamente um filme para crianças.      
                     Disney's The BFG Trailer #3 Brings a Literary Giant to Life
    Aos adultos que as acompanharem numa manhã de Domingo ficará bem apreciarem o engenho cinematográfico com que tudo  - a menina, o bom gigante/Mark Rylance e os gigantes maus, até uma rainha boa/Peneelope Wilton, as ameaças e os sonhos de Sophie/Ruby Barnhill - é feito. O filme teve um grande sucesso nos Estados Unidos, o que é compreensível. 
    Sobre Steven Spielberg ver "Do lado de Agatha", de 8 de Abril de 2012, "Spielberg 2011", de 30 de Setembro de 2012, "A história e a lenda", de 12 de Fevereiro de 2013, e "Dois por um", de 10 de Janeiro de 2016.

A desmedida

    Com argumento de Aaron Sorkin a partir de livro de Walter Isaacson, "Steve Jobs" de Danny Boyle (2015) é um filme que permite aceder à vida do seu famoso protagonista (1955-2011) a partir de duas apresentações públicas suas, uma em 1988 e a outra em 1998, a do iMac, de que são mostrados os momentos anteriores sem que elas próprias, apresentações, o sejam.
                     
    Daqui resulta que o filme seja um concentrado da vida de Steve Jobs, em que se misturam elementos profissionais ligados à sua actividade febril e em concorrência na criação de novos computadores e a sua vida privada, da sua paternidade à sua filiação.
     Passa, assim, por diálogos vertiginosos nos bastidores das duas apresentações, salvo no final com a filha Lisa Brennan/Perla Haney-Jarrdine em interiores, e também por flashbacks que recuperam situações passadas entre as mesmas personagens do presente. Os diálogos tornam-se confrontos entre personagens, sempre muito bem tratados em termos espaciais por Danny Boyle e com grandes interpretações. Notável é o confronto entre Michal Fassbender como Jobs e Kate Winslet como Joanna Hoffman, a sua fiel assistente, que o acompanha de princípio a fim, cuidando dele mas sem o poupar no final. 
                     
     Personalidade muito importante e controversa, Steve Jobs foi decisivo na revolução digital que teve início no final do Século XX, mudou o mundo e a vida de todos nós  e cujos efeitos se continuam a fazer sentir mesmo depois da sua morte. 
     Com uma boa construção formal e narrativa, apesar das suas indiscutíveis qualidades penso que este filme de Danny Boyle se perde excessivamente em labirínticos conflitos de bastidores sem chegar a atingir o nível que o biografado poderia justificar, embora dos seus conflitos nasça alguma luz sobre ele enquanto ser humano, no que talvez se esgote este projecto, nessa justa medida conseguido já que preserva o génio rebelde deste americano comum.