“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Os melhores de 2014

      O ano de 2014 que agora termina foi um ano muito bom de cinema em Portugal. À cabeça porque foram estreados ou foram repostos em sala mais 2 (dois) filmes do japonês Yasujiro Ozu, 6 (seis) filmes do indiano Satyajit Ray, já no final do ano 2 (dois) filmes de Charles Chaplin, de quem passou em 2014 o centenário da actividade no cinema - a edição de 10 (dez) filmes+livros que o jornal Público lhe dedicou, embora eventualmente bem intencionada é mais comercial do que histórica pois deixa de fora as curtas-metragens iniciais -, enquanto a edição dvd de 17 (dezassete) filmes de Ingmar Bergman, depois do ciclo que com grande sucesso lhe foi dedicado em sala, foi outra boa ideia
       As estreias em sala foram marcadas por uma qualidade média invulgar, acima do habitual, o que é de saudar embora torne mais difícil a escolha dos melhores filmes do ano. Mas se há ano relativamente ao qual não tenho dúvidas na escolha dos melhores filmes do ano é 2014 - um ano assinalado pela morte dos cineastas Alain Resnais (1922-2014) e Harun Farocki (1944-2014), das actrizes Lauren Bacall (1924-2014), Virna Lisi (1936-2014) e Luise Rainer (1910-2014), dos actores Philip Seymour Hoffman (1967-2014) e Robin Williams (1951-2014), do crítico, historiador e programador, também argumentista e realizador finlandês Peter von Bagh (1943-2014), dos poetas Vasco Graça Moura (1942-2014) e Manoel de Barros (1916-2014).
                     
          Com a nota de que não vi tudo, eis a minha escolha dos 10 melhores filmes do ano:
          1. "Cavalo Dinheiro", Pedro Costa (2014);
          2. "Boyhood - Memórias de Uma Vida"/"Boyhood", Richard Linklater (2014);
          3. "A Emigrante"/"The Immigrant", James Gray (2014);
          4. "Ciúme"/"La jalousie", Philippe Garrel (2013);
          5. "Mapas para as Estrelas"/"Maps to the Stars", David Cronenberg (2014);
          6. "Amar, Beber e Cantar"/"Aimer, boire, chanter", Alain Resnais (2013);
          7. "O Acto de Matar"/"The Act of Killing", Joshua Oppenheimer (2012);
          8. "A Imagem que Falta"/"L'image manquante", Rithy Panh (2013);
          9. "Mr. Turner", Mike Leigh (2014);
         10. "Grand Budapest Hotel"/"The Grand Budapest Hotel", Wes Anderson (2014).
         De forma muito positiva, o ano de 2014 foi assinalado em Lisboa pela reabertura do Cinema Ideal com uma programação seleccionada e exigente, o que me cumpre aqui saudar e apoiar.
                                                Feliz Ano Novo de 2015 para todos.

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Um ano em livros

    Num ano assinalado pela publicação do primeiro volume da "Obre Escrita", de João César Monteiro (Lisboa: Letra Livre, 2014), para que aqui chamei oportunamente a atenção (ver "Avé César", de 31 de Outubro de 2014), destacaram-se duas obras de referência: "O Lugar dos Ricos e dos Pobres no Cinema e na Arquitectura em Portugal", com coordenação de José Neves, que publica os debates ocorridos durante o ciclo que, promovido pelo Núcleo de Cinema da Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, teve lugar entre Outubro de 2007 e Março de 2008 (Porto: Dafne Editora, 2014); "Cinema e Filosofia - Compêndio", com organização de João Mário Grilo e Maria Irene Aparício, fruto do trabalho desenvolvido no âmbito do importante projecto Film & Philosophy: mapping an encounter, um projecto sediado no Instituto de Filosofia da Linguagem da Facudade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa com 4 anos de duração (Lisboa: Edições Colibri, 2013). Embora muito bons, salvo o primeiro estes eram livros devidos, por isso esperados.
     Para mim a surpresa foi, contudo outra: "Em Torno do Cinema - Visualizando a Modernidade: narrativas e olhares do ecrã", de Chritopher Damien Auretta (Lisboa: Edições Colibri, 2013), de um autor que de todo não conhecia e tem outros livros muito importantes sobre outros temas publicados na mesma editora.
                                      zoom 
        Sobre cinema português destacam-se a 2ª edição, revista e aumentada, do fundamental "O cinema português através dos seus filmes", com organização de  Carolin Overhoff Ferreira (Lisboa: Edições 70, 2014); "Manoel de Oliveira. Análise estética de uma matriz cinematográfica", com organização de Nelson Araújo (Lisboa: Edições 70, 2014); "Imagens Achadas - Documentário, Política e Processos Sociais em Portugal", com coordenação de Patrícia Vieira e Pedro Serra (Lisboa: Edições Colibri, 2014). Num percurso histórico muito interessante, salienta-se "O Cinema Ideal e a Casa da Imprensa - 110 anos de filmes", de Maria do Carmo Piçarra (Lisboa: Guerra & Paz, 2014). Com um objectivo mais didáctico, realce para "Tempo Memória Análise" de Jorge Seabra (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014). Na justa homenagem que lhe foi este ano prestada, importa chamar a atenção para "António da Cunha Telles - Continuar a Viver", com organização de Manuel Mozos (Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, 2014).
      A Orfeu Negro, uma editora que vivamente recomendo, prosseguiu a tradução do filósofo francês Jacques Ranciére com "A Fábula Cinematográfica" (Lisboa: 2014), enquanto já no final do ano saiu o muito aguardado terceiro volume, respeitante a 2006, dos excepcionais e fascinantes escritos de João Bénard da Costa: "Crónicas: Imagens Proféticas e Outras", com edição de Lúcia Guedes Vaz (Lisboa: Documenta 2014).                                                   
                                     
      Da exposição do cineasta João Botelho "Só acredito num deus que saiba dançar", que esteve patente no Centro Internacional das Artes José de Guimarães, saiu o respectivo e muito interessante catálogo (A Oficina e Sistema Solar - Documenta, 2014).
      No final do ano saíram dois importantes livros: "100 Anos de Fotografia Científica em Portugal (1839-1939). Imagens e Instrumentos", com coordenação de Fernanda Madalena Costa e Maria Estela Jardim (Lisboa: Edições 70, 2014), e "O Império da Visão. Fotografia no Contexto Colonial Português (1860-1969)", com organização de Filipa Lowndes Vicente (Lisboa: Edições 70, 2014)
                                     
     Mas obra que marcou este ano as artes visuais foi "Arte na Cidade - História Contemporânea", de Mário Caeiro (Lisboa: Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2014), sobre a arte em espaço público urbano, um livro de grande actualidade que me interessa muito e aqui recomendo pela sua perspectiva abrangente e exaustiva, também pela qualidade e pertinência das imagens incluídas. Pela sua grande qualidade, até na apresentação gráfica (é um livro muito bonito), constitui-se como uma referência sobre as astes visuais e a contemporaneidade, pelo que o considero o melhor livro de 2014 em Portugal
    Quero terminar chamando a atenção para um pequeno livro muito curioso: "O Lápis Mágico: Uma História da Construção da Fotografia", com edição de Carlos Sousa de Almeida e Carlos M. Fernandes e tradução do primeiro (Lisboa, IST Press, 2014). Uma boa ideia muito bem concretizada, pela qual felicito os seus responsáveis e o Instituto Superior Técnico.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

O pequeno excesso

    O inglês Mike Leigh tem sido relacionado com a tradição realista do cinema inglês, de que o nome mais próximo no tempo é Ken Loach. É por isso com alguma surpresa que o vemos abordar o filme de época em "Mr. Turner" (2014), à semelhança, aliás, do que já fizera em "Topsy-Turvy" (1999). Sem ser por isso total, a surpresa é mesmo assim grande e o espanto maior. 
                     Oscar2015MrTurner03        
    Joseph Mallord William Turner (1775-1851) é, contudo, o desafio de uma vida para o cineasta, que ao ocupar-se dos últimos anos da sua vida dele dá uma imagem realista, é certo, mas que, com a implicação da sua criação pictórica, obviamente excede o mero realismo. De facto, Mike Leigh não poupa em mordacidade no tratamento de uma personalidade de referência da cultura e da arte do seu país, mas ao fazê-lo procura e consegue captar o pequeno excesso do pintor que justifica e permite compreender o seu génio pessoal.
   Com o contributo decisivo do actor Timothy Spall, "Mr. Turner" constitui-se como um filme decisivo sobre a pintura, ao nível do que antes fizeram Vincente Minnelli ("A Vida Apaixonada de Van Gogh"/"Lust for Life", 1956), Jacques Rivette ("A Bela Impertinente"/"La belle noiseuse", 1991) e Maurice Pialat (Van Gogh", 1991). Há neste filme um tratamento do protagonista no seu lado rude, quase grotesco, que capta muito bem a pulsão criadora que no seu caso acima de tudo interessa. 
                   News video: Mike Leigh's "Mr. Turner" has Cannes critics salivating
      Dessa pulsão é indissociável a vida do pintor, pelo que de perto a acompanhamos: durante a primeira hora ainda em vida do seu pai, William Turner/Paul Jesson, até à morte deste; na segunda hora desde a sua visita à jovem prostituta até ao seu primeiro contacto com o daguerreótipo; no final nos últimos dias da sua vida. Por si mesmo este percurso implica e explica, na interpretação notável de Timothy Spall, a pulsão criadora de Turner, que os episódios mais conhecidos da sua vida - nomeadamente a sua disputa com John Constable/James Fleet, o fazer-se amarrar ao mastro de um navio e a discussão com John Ruskin/Joshua McGuire - completam decisivamente.
    Claro que tudo passa de forma delicada e soberba pelas mulheres, em especial Sarah Danby/Ruth Sheen e Sophia Booth/Marion Bailey, de forma a que o sexo, entre a morte do pai e a do filho, preceda e antecipe a morte de J. M. W. Turner, antes da qual uma criação feroz, aparentemente impulsiva e compulsiva, decorrera. Com recurso aos quadros originais e à simulação da sua criação, uma muito feliz e alusiva fotografia de Dick Pope e a música de Gary Yershon sempre justa, Mike Leigh vai tão longe neste seu "Mr. Turner" quanto a personagem exigia, tornando-o mais do que um filme de época e um filme sobre um pintor e a pintura, uma obra sobre a crítica de uma época e de uma arte feita numa arte posterior, que proporciona toda a proximidade e toda a distância exigíveis. 
                    
      "O Sol é Deus" são as últimas palavras de J. M. W. Turner, pintor romântico da luz que antecipou os impressionistas, um artista culto e desenvolto, sempre à altura quando atacado e implacável quando passava ele próprio ao ataque, presa do fogo interior que o animava e lhe permitiu descobrir os seus motivos (o mar, o naufrágio, o poente) e inventar o seu estilo pessoal e inconfundível. A sobriedade inteiramente controlada da mise en scène de Mike Leigh só faz bem ao seu tema e ao respeito devido ao seu protagonista e, consequentemente, beneficia o filme, que será em especial apreciado pelos conhecedores e admiradores da arte de Turner, entre os quais me conto.

O lugar do outro

    A minha aproximação de "O Acto de Matar"/"The Act of Killing", de Joshua Oppenheimer (2012), começou por ser cautelosa, por considerar que a perspectiva dos torcionários e assassinos não me interessa. Acabei por vê-lo em dvd já quase no fim do ano e é um filme extraordinário sobre o genocídio indonésio, em Sumatra, nos anos 60 do Século XX, que passa pela memória e a palavra, mas também a representação e a imagem, até chegar à consciência física do horror cometido.
                    
    Estreado em Portugal no mesmo ano de "A Imagem Que Falta"/"L'image manquante", de Rithy Panh (2013) - ver "Testemunho exemplar", de 7 de Abril de 2014 - o documetário de Joshua Oppenheimer com ele rima inevitavelmente, mas enquanto o cineasta cambodjano usava uma certa distância, que a sua presença durante os acontecimentos aconselhava, Oppenheimer chega-se ao âmago do genocídio através da palavra dos próprios torcionários e assassinos.
    Orgulhosos de si mesmos e do que fizeram no início, chegando a gabar-se de maior crueldade que os nazis ou os comunistas (estes que foram, contudo, as suas vítimas) - e toda essa parte do filme é notável pelo contentamento despudorado dos antigos torcionários impunes, que se cobrem com a própria imagem que eles fazem do cinema -, um deles é escolhido para ser acompanhado na parte final do filme. Após a reconstituição e a representação teatral terem criado uma certa distância para todos, os envolvidos e os espectadores, vai ser a filmagem de Anwar Congo no papel de vítima que vai despertar gradualmente a sua própria consciência - e também a nossa. Depois de ter visto essa sua imagem - uma imagem do cinema em que ele ocupa o lugar do seu outro, da vítima - na companhia dos netos, ele percebe fisicamente, até à repugnância, o horror do que cometeu, e é esse percurso que resgata o filme da mera denúncia, que já por si não seria pouco.
                      Film Crit Hulk Smash: THE ACT OF KILLING AND THE REAL MEANING OF IMPACT
     Não penso muito nos torcionários e assassinos responsáveis por genocídios - e foram tantos durante o século XX - a não ser para os condenar. Ora o "Acto de Matar" de Joshua Oppenheimer, sem de maneira nenhuma os absolver ou desculpabilizar, leva-me sobretudo a pensar o lugar desse outro, que acaba no filme vítima dos seus próprios actos e da sua própria memória deles, actualizada na experiência física e na imagem.
    Terrivelmente perturbador na sua descrição oral e na sua encenação do terror, raramente mostrado em actualidades de época, este filme transforma-se numa experiência violenta e inolvidável sobretudo por nos levar à consciência de si mesmo do torcionário através do corpo e da imagem, que nele despertam, viva, a memória. E a reconhecê-lo paradoxalmente como humano no inevitável plongé final. 
                     
     Na sua completa subversão de ideias feitas, mantendo-as contudo no essencial e até com novos argumentos dados pelos próprios, "O Acto de Matar" desafia honradamente a nossa bem instalada boa-consciência, mesmo na reflexão sobre a imagem do cinema saída da boca dos torcionários e usada por eles na actualidade, que assim também questiona e pensa. Um filme notável, um documentáro com consciência de si próprio que, comentado embora por belas imagens turísticas da actualidade, nos aterra e desinquieta a todos.  

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Ainda não

    O novo e premiado filme do jovem prodígio canadiano Xavier Dolan, "Mamã"/"Mommy" (2014), volta a situar-se muito abaixo das expectativas criadas. Pretendendo rimar com a sua primeira longa-metragem, "J'ai tué ma mère" (2009), lida de facto com a mumificação da figura materna que parece obcecá-lo.
   Vamos por partes. Pretendendo-se baseado num caso real, o it boy canadiano trabalha especulativamente sobre os distúrbios (Attention Deficit Hyper Disorder) do filho de Diane Després/Anne Dorval, Steve/Antoine Olivier-Pilon, que lhe deviam merecer um outro respeito. Mas a ele o que lhe interessa é o que de espectacular possa retirar do seu tema, o que faz sem pudor, explorando os sentimentos dos envolvidos, nomeadamente o seu sofrimento.   
                    Mommy_2∏Shayne Laverdiere
     A cumplicidade afectiva entre Steve e a sua mãe está explorada do lado do comum melodrama da emoção e do espectáculo (do espectáculo da emoção) do cinema americano e a intromissão de Kyla/Suzanne Clément, a vizinha, é muito forçada, finalmente de escassa e previsível utilidade. Espertalhão, jogando no espectáculo Xavier Dolan utiliza os diferentes formatos do ecrã para surpreender e encantar os espectadores incautos que, a partir de uma boa recepção crítica, lhe têm dado e continuam a dar crédito. O artifício resulta mas como parte do espectáculo em que o filme transforma o drama.
     Decididamente não me interessa este tipo de espectáculo despudorado, que não me diz nada nem acrescenta nada ao seu tema ou à obra do cineasta a não ser a fixação materna. Apesar de o final, a partir do flash-forward imaginado de Diane, estar bem resolvido, o rapaz tem de sair dos seus limites narrativos e formais para dar verdadeira conta do autêntico talento cinematográfico que parece ter. Tal como é, apesar das suas múltiplas piscadelas de olho em todas as direcções "Mamã" é um filme maçador e entediante.
                     http://i.ytimg.com/vi/Q1MfXQ6ZpqY/maxresdefault.jpg
       Um dia, no futuro, olhando para trás talvez se perceba melhor o sentido dos filmes iniciais de Xavier Dolan. Por enquanto, quando as próprias figuras femininas, unidimensionais apesar de alguns lampejos conseguidos, são falhadas e oportunisticamente utilizadas, ainda não (sobre o cineasta ver "Um novo autor", de 17 de Agosto de 2013, e "Impasse", de 6 de Junho de 2014).

sábado, 20 de dezembro de 2014

Adição e subtracção

     Aconteceu-me esta semana numa venerável livraria em que poucas vezes entro passar por mim um casal muito jovem que comentou "aqui é poesia, não interessa" e passou para a estante do sector seguinte. Não me chocou, estas coisas vão no sentido dos tempos que correm, e no sector de poesia da venerável livraria mais uma vez não encontrei o que procurava.
      Foi, contudo, esta semana que li quatro grandes livros de poesia, dois deles de uma poesia muito especial que aprecio muito, "Nocturno Europeu" (Lisboa: Relógio D'Água, 2014) e "(ou, transigindo, de que lado passarás a morrer, a clarear)?" (Lisboa: Língua Morta, 2014), de Rui Nunes, os outros dois de um poeta inacessível nas grandes editoras mas que admiro muito, "Sistina" (Porto: edita-me, 2014) e "Um Pouco Acima da Miséria" (Lisboa: & etc, 2014), de Amadeu Baptista
                                      
      Poeta de projectos insensatos sobre a arte, em especial a pintura, Amadeu Baptista dedica "Sistina" a toda a Capela Sistina do Vaticano, painel por painel, do chão ao tecto. Tendo-o acompanhado desde o seu início, em 1982, pude aperceber-me de que (mais um sinal dos tempos) deixou de ter editora fixa, pelo que passou a concorrer a prémios de poesia que sistematicamente ganha e lhe permitem editar os livros que escreve. "Um Pouco Acima da Miséria" devolve-nos o poeta torrencial que aborda os grandes temas, no caso os horrores do Século XX, pelo seu lado menos acessível e mais sensível. Nestes dois livros temos o poeta no seu melhor, em que procede por adição.
      Mais velho que Amadeu Baptista, Rui Nunes, que publicou o seu primeiro livro em 1968, tem uma muito depurada prosa poética, tacteante, repetitiva, obsessiva, que inventa as palavras certas, que procura, para dizer exactamente o que tem a dizer. Em "Nocturno Europeu" retoma muito bem o anterior e premiado "Viagem de Outono" (Lisboa: Relógio D'Água, 2013) e, com fotografias de Paulo Nozolino, acrescenta-lhe "Outras Viagens". São os escombros da Europa, os seus massacres, os seus mortos. Já depois deste surpreende com um novo, pequeno livro, "ou, transigindo, de que lado passarás a morrer, a clarear)?", em que enreda e desenreda a sua escrita, sempre fragmentária e sempre por subtracção, para mais e melhor nos assombrar e desafiar.
                                       
    Hoje em dia poucas coisas, em qualquer arte ou forma de expressão, me movem e me comovem como os últimos livros de Amadeu Baptista e Rui Nunes. Nem um nem o outro alguma vez transigiu na sua criação, numa palavra sequer da respectiva criação literária e poética.
       Descobri agora que o Amadeu Baptista tem um blog, consultável aqui
http://amadeubaptista.blogspot.pt/
que obviamente recomendo.
      "(...) O tempo afasta-nos sempre, o tempo nunca aproxima, o tempo revela como se perde. (...)" - Rui Nunes, in "Outras Viagens", incluído em "Nocturno Europeu", páginas 53-54.

Uma outra dimensão

     "Duran Duran - Unstaged" (2011) é a primeira loga-metragem de David Lynch depois de "Inland Empire" (2006) que conheço e é um filme extraordinário, feito a partir da transmissão em directo para a internet de um espectáculo musical. 
                      Gerard Way, Simon Le Bon
     Havia o filme de Jean-Luc Godard "Simpathy for the Devil" (1968) e o filme de Martin Scorsese "Shine a Light" (2008), ambos com os Rolling Stones, mas nenhum deles se compara com esta extraordinária experiência em que o experimental se alia ao abstracto numa fantástica montagem audiovisual, que se entende todo o sentido que faz na obra do cineasta.
    Aqui Lynch is on fire, sem as entrevistas habituais neste tipo de documentário e com uma prodigiosa montagem de números completos durante um espectáculo no Mayan Theater, em downtown LA, em 2011, com recurso a sobreimpressões diversas, de formas geométricas e objectos vários (de um helicóptero a pequenos bonecos), e uma diversidade de outras formas e meios. A partir de um preto e branco de base o cineasta constrói o seu documentário com colorizações parciais que o enriquecem e tornam mais apelativo e misterioso.
                      Duran Duran: Unstaged
     Numa outra dimensão para que, como de costume, nos arrasta, David Lynch surpeende de novo e volta a fascinar sem o recurso ao cinema narrativo, das peripécias. Sempre a abrir ao ritmo da música, com grande imaginação ele coordena imagens acrescentadas com esta, de forma a tornar o documentário "Duran Duran - Unstaged" uma experiência sensorial extraordinária.
   Não sei quem como ele... É difícil descrever o que se sente durante este filme, um extraordinário documentário musical que marca uma época e como inventiva visual faz lembrar os surrealistas (sobre David Lynch ver "Tudo é ilusão", de 27 de Fevereiro de 2012).

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Eu hei-de amar uma pedra

    Apresentado com outras três curtas-metragens de Manoel de Oliveira, "O Velho do Restelo" (2014) passa melhor como reflexão sobre a história. Fundamentalmente uma colagem de textos, de filmes e de composições musicais, o último filme em data do centenário cineasta português surge como um novo culminar de uma obra muito rica e diversificada, e por isso penso que devia ser o último a ser apresentado nesta sessão. Porque explica os outros, grandes filmes aí exibidos: "Douro, Faina Fluvial", na versão de 1994 com a montagem de 1999, "O Pintor e a Cidade" (1956), fabuloso documentário em cores exuberantes, e "Painéis de São Vicente de Fora - Visão Poética" (2010).
                     O Velho do Restelo : Foto     
   Conto-me entre aqueles que acreditam que o génio não tem idade e por isso não tenho objecções nem condições a colocar a "O Velho do Restelo", que vale pelo seu discurso próprio, construído pelo cineasta sobre o de quatro grandes escritores - Luís de Camões/Luís Miguel Cintra com "Os Lusíadas", Miguel de Cervantes com o seu D. Quixote/Ricardo Trêpa, Camilo Castelo Branco/Mário Barroso e Teixeira de Pascoaes/Diogo Dória -, e sobre quatro dos seus filmes - "Amor de Perdição" (1978),  "Non ou A Vã Glória de Mandar" (1990), "O Dia do Desespero" (1992) e "O Quinto Império - Ontem como Hoje" (2004) - mais o "Dom Quixote" de Grigori Kozintsev (1957), e vale pela sua lição de montagem. 
                     O Pintor e a Cidade
    Pensar nunca fez mal ao cinema e Manoel de Oliveira continua a pensar admiravelmente em cinema, com grande lucidês, desassombro e brio. Juntar a este os outros três grandes filmes de curta-metragem foi uma boa ideia, pois aí ele pensa também em cinema num formato que sempre dominou na perfeição - "Douro Faina Fluvial" a preto e branco e em terceira versão, "O Pintor e a Cidade" o filme decisivo sobre a criação pictórica no espaço e no tempo em que acontece, com o pintor António Cruz (1907-1983), "Painéis de São Vicente de Fora - Visão Poética" uma grande reflexão sobre um quadro histórico e enigmático (sobre o cineasta, ver "Sob o mesmo signo", de 12 de Fevereiro de 2012, "Regresso às origens", de 27 de Fevereiro de 2012, "A morte do fotógrafo", de 14 de Abril de 2012, "Oliveira filosófico", de 28 de Outubro de 2012, e "Um filme histórico", de 15 de Março de 2014).
     Aproveito para deixar aqui uma palavra de muito apreço pelo livro de Júlia Buisel "Antes Que Me Esqueça" (Il Sorpasso/Guimarães 2012 - Capital Europeia da Cultura), um depoimento fundamental e muito esclarecedor, que faz todo o sentido da parte fiel colaboradora de Oliveira, testemunha privilegiada dos últimos 50 anos do cinema português.

domingo, 14 de dezembro de 2014

O fogo e a água

      O mais recente filme de David Cronenberg, "Mapas Para as Estrelas"/"Maps to the Stars" (2014), com argumento de Bruce Wagner, é um filme magnífico sobre Hollywood e o cinema, ao nível do que anterioremnte fizeram, depois de Billy Wilder ("O Crepúsculo dos Deuses"/"Sunset Boulevard", 1950), Robert Altman ("O Jogador"/"The Player", 1992) e David Lynch ("Mulholland Drive", 2001).
                    An unexpected link: Dr. Stafford Weiss (John Cusack) is a psychologist to the stars, with one of his main clients being fading Hollywood actress Havana Segrand (Julianne Moore)
     Sem nostalgia nem fantasmas do passado, o grande cineasta canadiano enfrenta os tabus por trás do sistema que falam dele e por ele, com o incesto como ponto de partida e de chegada, para nos dar um retrato impiedoso da "fábrica dos sonhos" à altura do que ela merece para ser compreendida. Das "crianças prodígio" às grandes estrelas em segunda geração nada é poupado, e o que é mais curioso é que o ponto de partida para os irmãos Benjie/Evan Bird e Agatha Weiss/Mia Wasikowska é um poema outrora célebre do francês Paul Éluard sobre a liberdade e o seu nome.
     Compreendo a prudência da profissão cinematográfica, dos festivais internacionais de cinema à crítica mais abalizada, perante tal objecto estranho proveniente de um cineasta que tinha já dado largas ao seu espírito crítico em "Cosmopolis" (ver «"Cosmopolis" e o céu de perugia», de 10 de Junho de 2012). E aqui de novo ele não poupa em glamour e atractivos sexuais para, no percurso e na chegada, deixar expresso na narrativa fílmica um pensamento crítico original sobre o cinema e aqueles que em Hollywood o fazem.
                    
       Tudo humano, demasiado humano entre Havana Segrand/Julianne Moore e a mãe, que ela quer representar num filme, entre ela e a filha, cuja memória a não abandona. Tudo humano, demasiado humano, entre Benjie e Agatha e os seus pais, Stafford/John Cusack e Christina Weiss/Olivia Williams, entre Agatha e o irmão, entre ela e Havana, entre ela e o motorista Jerome Fontana/Robert Pattinson. Mas o humano extravasa do comum até o ponto de fuga não poder, entre pais e filhos como entre irmãos, deixar de ser a morte.
       Sem constrangimentos de qualquer espécie, jogando com os lugares-comuns do cinema e do mundo do espectáculo mesmo na cumplicidade rival que os une, David Cronenberg não poupa nem o sistema nem as suas diversas peças. E o libelo é implacável, para quem o quiser ver descomprometidamente. Haverá quem pense em exagero, em má-vontade, mas não se pode ignorar o escalpelizar detido da sociedade do espectáculo em que a própria América se transformou. 
                     Actor Robert Pattinson locks lips with Mia Wasikowska as they film a scene for their new film 'Maps to the Stars' in an abandoned lot on August 21, 2013 in Los Angeles, California. Between takes, director David Cronenberg spoke to the pair about the scene.
      Sem ignorar os outros, em especial os mais novos, manifesto especial apreço por Julianne Moore e John Cusack, dois grandes actores em entrega completa a papéis ingratos de que dão conta com grande desembaraço e enorme talento. De resto é a equipa do costume, com Peter Suschitzky na direcção da fotografia, Howard Shore na música discreta, Ronald Sanders na montagem e a fiel Denise Cronenberg no guarda-roupa.
      Este é sem dúvida um dos melhores filmes do ano e o resto é conversa fiada. O fogo e a água. Sobretudo depois da sua fase de cinema fantástico, David Cronenberg é um dos maiores cineastas contemporâneos. E aqui nem a "atracção do abismo", com a psicanálise à mistura, vos vale (sobre o cineasta ver também "Uma tragédia clássica", de 28 de Janeiro de 2012, e "Os sótãos da memória", de 4 de Março de 2012).  

Idosa e despachada

      "La douce empoisonneuse" é um filme baseado no romance homónimo do finlandês Arto Paasilinna feito para a televisão pelo francês Bernard Stora (2014). Para além de uma boa adaptação, o filme distingue-se por uma realização sóbria mas muito expressiva e por interpretações muito boas, com destaque para Line Renaud como Clémence.
     Acossada pelo seu sobrinho Charlie/Nicolas Lumbreras e os seus amigos, depois de experimentar nos pombos a velha senhora vai-os eliminando um a um sem deixar traços, enquanto toma conhecimento da verdadeira origem desse estranho sobrinho.             
                      
      Aparentemente despretensioso, este é um filme que, em tom de comédia negra, dá conta de si de forma desenvolta e justa, jogando com a elipse de forma eloquente e deixando uma imagem no limite do burlesco dos seus jovens meliantes, impotentes perante a malícia de Clémence.
     Sem que quase se dê por isso, fazem-se hoje em dia filmes para televisão que não ficam a dever nada ao cinema, o que tem mesmo precedentes de vulto como Alfred Hitchcock e Claude Chabrol, que teriam adorado este filme. E para ver isto não há como o Arte, actualmente melhor do que nunca, com corcertos live on-line e tudo.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Duplicações

     "Saint Laurent" de Bertrand Bonello (2014) é um filme que me interessa por causa do seu tema, o famoso costureiro Yves Sain Laurent (1936-2008), e por causa do seu realizador, em cuja obra surge como perfeitamente consistente com o anterior "Apollonide - Memórias de um Bordel"/"Apollonide" (ver "As cativas", de 23 de Julho de 2012).
                    
      De facto, no seu novo filme, dividido claramente em duas partes, antes e depois de 1974, o cineasta começa por regressar a um cinema do corpo, sem a concentração espacial do filme anterior mas com características suficientes que permitem a sua identificação. Claro que aqui está em causa primacialmente a vida, privada e pública, do próprio Yves Saint Laurent/Gaspard Ulliel, que sofre um incremento com a chegada de Jacques de Bascher/Louis Garrel, mas todo o filme se dedica à criação de alta-costura e, portanto, também a outros corpos.
      Sem justificação aparente, as cenas de discussão sobre as linhas de modelos e a empresa vêm recordar o lugar que Saint Laurent ocupou no sistema económico, enquanto a recapitulação ano a ano entre 1967 e 1974 permite um resumo de época que nem sequer é difícil de fazer, incluindo as referências artísticas pessoais do protagonista, de Piet Mondrian a Andy Warhol passando por Marcel Proust.
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     Nessa primeira parte o jogo com os espelhos, sempre justificado e bem resolvido, implica a duplicação e o narcisismo de uma personagem bem defendida em termos históricos e de interpretação. A segunda parte do filme, depois de 1974, é mais forçada, embora ela também bem resolvida pela intromissão de um Yves envelhecido/Helmut Berger, em 1989 presa dos seus fantasmas e que, numa outra duplicação, desdobrando-se no tempo comenta o seu próprio passado e a sua carreira.
     A cena da segunda parte em que duas modelos comentam Saint Laurent, fora de campo, durante uma sessão de fotografia em exteriores sintetiza de forma feliz uma reflexão sobre o corpo e o modo de o entender, mostrando mesmo na reciprocidade do olhar que o filme é sobretudo sobre o olhar. Com grande aprumo e acerto, em "Saint Laurent" Bertrand Bonello, de novo responsável pelo argumento, desta feita com Thomas Bidegain, volta a dar muito boa conta de si e do seu trabalho, com inventiva cinematográfica e narrativa, mostrando que é um dos nomes com quem se deve contar no actual cinema francês.               
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      Movendo-se neste filme num terreno mais reconhecido, ele consegue não só não estragar o seu tema como fazer uma obra limpa e atraente, sem cedências e com boas soluções visuais, narrativas e também musicais. E está lá tudo o que interessa, do olhar sobre os corpos das mulheres e dos homens ao olhar delas e deles sobre os corpos uns dos outros - e aqui o que mais interessa é o olhar do próprio Saint Laurent visto pelo olhar, cúmplice mas irreverente e cáustico, e por isso justo, do cineasta, que não se coíbe de jogar com a lenda e os seus escândalos nem de mostrar os bastidores da moda, bem como modelos e manequins sempre que justificado, sobretudo no final.
       Com bem vistas referências cinéfilas a preto e branco, "Saint Laurent" destaca-se ainda pela presença de Léa Seydoux como Loulou de la Falaise, Valeria Bruni Tedeschi como Mme Duzer e especialmente Dominique Sanda como Lucienne Saint Laurent.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Assombradas, as sombras

    Assombrado no tempo é como Ventura nos aparece em "Cavalo Dinheiro", o mais recente filme de Pedro Costa (2014). Conhecido de filmes anteriores, ele encontra a sua origem remota em Leão/Isaach De Bankolé de "Casa de Lava" (1994), o filme que, ainda antes da "trilogia das Fontainhas", levou pela primeira vez o cineasta ao contacto com os cabo-verdeanos. Agora doente dos nervos, Ventura encontra-se hospitalizado, e é pela sua identificação perante o médico, logo a seguir às fotografias de Jacob Riis (1849-1914) que estabelecem a linha de rumo (ou o fio de prumo) para o que se vai seguir, que o filme se inicia.
   É mesmo neste filme que, depois das curtas-metragens "The Rabbit Hunters" e "Tarrafal" (2007), se percebe melhor a sempre falada influência de Jacques Tourneur nos filmes do cineasta, pois é um assombrado, espectral Ventura que recorda o seu passado e faz Vitalina recordar o dela. Ele é mesmo uma personagem tíípica dos filmes de Pedro Costa, alguém que vive à margem, esquecido pela liberdade e pela democracia, presa da sua miséria e do seu abandono, entregue às suas memórias que por vezes o levam a situar-se em 1974-75.
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    A escolha de personagens fora dos circuitos habituais no cinema e na televisão permite ao cineasta mais uma vez deambular com elas e a partir delas, desta feita não apenas pelos espaços físicos presentes mas também pelos espaços mentais - e é justamente isso que faz com que "Cavalo Dinheiro" seja o filme de Pedro Costa que mais directamente mostra a influência de António Reis.                 
    Os diálogos, nomeadamente com Vitalina, tornam-se monólogos cofessionais que algumas obsessões atravessam - ela lê os documentos que contam a história da sua vida e os percursos de Ventura desdobram-se por espaços labirínticos em que ele emerge do escuro, das sombras, para uma luz que o assombra mais. Tudo se esclarece melhor com a canção que fala de "contratado", "explorado", "enganado", e então é todo o percurso dele, deles que se ilumina.
                    
     Com um estilo pouco atraente no imediato, pois não trabalha uma beleza luminosa, directa, este é um filme de sombras - de sombras que emergem do negro - que a iluminação precisa entre-mostra na sua angustiada caminhada pelo vazio do presente e do passado. Até ao momento em que, no elevador do hospital, Ventura se desdobra num diálogo imaginário com um soldado do 25 de Abril, em que as promessas do passado se confrontam com as realidades do presente até ao paradoxo temporal - um excerto desta sequência integrara já "Sweet Exorcism", o segmento de Pedro Costa para o filme "Centro Histórico" (2012) - ver "Um filme histórico", de 15 de Março de 2014.              
     O que torna este "Cavalo Dinheiro" um filme muito importante é o facto de o realizador se manter apegado a personagens marginais enquanto estas percorrem os espaços em que explicam terem sido abandonadas (impressionante a conversa de Ventura a um telefone abandonado num espaço há muito desactivado) ou quando elas se entregam ao sonho, ao devaneio da memória imprecisa mas sempre justa na sua própria imprecisão. E ao falarem um com o outro, ela com memória de um Joaquim, ele alimentando ainda a esperança de uma Zulmira, a partir de um espeço-tempo imaginário Vitalina e Ventura estão a falar connosco e estão a falar também de nós - mesmo quando convocam a memória da violência e do abandono.
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    Enquanto estão fora do tempo, perdidas no tempo e no que dele recordam, as personagens deste filme vivem também assombradas por alguma coisa que, não mostrada, as excede e delas faz seus títeres, como que espectrais - a doença de Ventura, que lhe faz tremerem as mãos e vacilar a cabeça, o abandono de todos. Como zombies, todos cumprem um destino que não escolheram em obediência a forças estranhas que os escolheram a eles. E é no excesso de abandono, de solidão, de exasperada impotência que as personagens deste filme, estáticas, se movem e nos comovem com a força, o poder do seu ser-sombras - as cicatrizes na cabeça de Ventura e as suas mil mortes.            
     No final, depois de ter dado a sopa a um companheiro de infortúnio a quem diz "ter tido alta", Ventura sai para a noite enquanto o médico, enquadrado de cima, da porta do hospital o vê afastar-se. Como numa atitude de esperança, mas também numa promessa de espera no caso de regresso.     
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   Com uma excelente composição visual em termos espaciais, temporais e de contraste luz/sombras, como é costume nos filmes de Pedro Costa, convocando constantemente um fora de campo que, como espectadores, nos envolve, "Cavalo Dinheiro" integra alguns ruídos cavos e sobretudo a música, actual e clássica (no final), que interrompe os silêncios, os comenta e esclarece. 
    Como Ventura, Vitalina e os outros, estamos todos tão sós. O que nos distingue deles é alimentarmo-nos de satisfações ligeiras e efémeras, ilusões que eles não têm. (Compreensível embora, a comparação com o João de Deus de João César Monteiro, adiantada por Vasco Câmara no Ípsilon do Público da passada sexta-feira, surge-me como apressada e insuficiente, mesmo redutora, pois Ventura transporta consigo outras forças, outro passado, e sem transfiguração é movido pelo que o excede.) E, já agora, não tomemos este filme admirável como mero "divertimento" que ele, na sua exigente proposta artística, não é nem quer ser (sobre Pedro Costa ver "Da vida dos espectros", de 12 de Fevereiro de 2012, e "Um filme histórico", de 15 de Março de 2014).