“É Através das Oliveiras o grande filme que
culmina esta fase da obra do cineasta de uma maneira superior, curiosamente também
quanto ao uso do plano-sequência, de
que aqui se pode
falar já sem hesitação dado o seu uso sistemático e deliberado desde o início,
primeiro mostrando a estrada que um carro percorre enquanto os que nele viajam dialogam,
depois mostrando o que se vê através da janela do lado oposto ao lugar da condutora. Como
se sabe, este é um filme sobre a rodagem de outro filme, na continuidade de
Onde fica a casa do meu amigo? e E a vida continua…. Na sequência do
acampamento da equipa de filmagens, sobretudo no primeiro momento dela, o do
diálogo com o homem que perdeu a mulher com quem vivera durante 50 anos, o
cineasta dedica-se a um trabalho prodigioso com planos longos e profundidade de campo, o que torna essa sequência um
ponto central de referência na obra dele. Num segundo
momento, na manhã seguinte, ele prolonga esse tratamento do espaço, já que é de novo o
espaço que aqui está em
causa. Mas é com a obsessiva repetição da cena do jovem casal,
sempre filmada frontalmente e em plano fixo embora com momentos de acesso à
varanda onde os actores descansam, também eles prodigiosos, que o filme atinge um nível
de consciência de si mesmo que a meu ver o faz exceder o próprio Close-Up, com o qual mantém afinidades
evidentes. O mais admirável será, contudo, mais ainda do que
as árvores abanadas pelo vento, o final, com o plano geral muito longo e as linhas
traçadas na paisagem pelas figuras miniaturizadas dos protagonistas, os actores do
filme dentro do filme. Isso é pura beleza, inominável.
Se O Sabor da Cereja retoma as questões dos filmes anteriores, até por
ser também um filme
de percurso, aí o cineasta detém-se não apenas no espaço exterior que
o carro
percorre e no que a partir deste se vê, mas também no seu interior e na guarita
do guarda das
obras. É, todavia, a parte final do filme que alonga a duração dos planos, do carro em
movimento e a partir dele, mas também no recorte das janelas em planos tirados do
interior (o Museu de História Natural) e do exterior (o apartamento), como que em
consonância com os diálogos e o estado de espírito do protagonista.
Dir-se-ia que esse é um tratamento do
tempo fílmico que se impõe ao cineasta como dilatado,
por contraposição ao do instantâneo fotográfico que ele também pratica.
Dessa maneira a
imagem em movimento se contrapõe melhor para ele á imagem fixa, desprovida de
movimento, questão a que mais tarde vai dedicar um outro filme.
Como
é compreensível, é num filme mais concentrado espacialmente, O vento levar-nos-á..., que Kiarostami leva mais
longe as duas questões: plano-sequência (duração do
plano ) e profundidade de campo. De
facto, aí estão em causa trajectos na aldeia, desde a
chegada a ela, em que as personagens percorrem ruas e escadas, e também o
percurso que o protagonista tem que descrever, até ao cimo de uma colina, de cada vez que
recebe uma chamada no telemóvel. Mas vai ser em espaços interiores, ou captados sobre
o interior, que o cineasta vai afinar a questão da profundidade de campo, nas recorrentes
cenas nas varandas do pátio interior, a primeira das quais absolutamente prodigiosa, em
dois momentos de diálogo com a criança, na escola e numa casa vistas a partir de um
ponto de vista exterior que permite observar a deslocação desta em profundidade pela abertura da porta, e na assombrosa
sequência passada na escuridão da caverna. O
final, com o percurso de moto pelas searas, parece já um puro devaneio de pintor, da
parte de um cineasta que tinha deixado espalhados ao longo do filme breves
apontamentos de espaços vazios ocupados por personagens anónimas ou secundárias
(apontamentos tipo Yasujiro Ozu), e que se percebe que faz o protagonista subir
frequentemente a uma colina, não só porque aí se situa o cemitério e alguém escava um poço,
uma vala, mas também para poder mostrar, a partir daí e enquanto acompanha a
personagem em planos longos, o espantoso pano de fundo das montanhas. Aliás, o último
plano do filme, com a água que corre, volta a ser longo.
A mudança do dispositivo
Já no início deste século, Kiarostami regressa ao documentário com ABC África, sobre os órfãos da SIDA no
Uganda, e mesmo nessas circunstâncias
encontramos
logo no início planos da chegada a Kampala que são tirados do interior de um carro, de
maneira a captarem esta paisagem nova nos seus filmes de um modo que implica a sua
assinatura. Mais à frente, existem dois planos filmados nas ruas de um bairro pobre
cuja duração permite dar perfeitamente conta da situação espacial das personagens,
nomeadamente crianças, o que volta a acontecer no primeiro plano, no hotel, com a
criança adoptada pelo casal austríaco. Entre esses momentos, ocorrera a fabulosa
sequência nocturna no acampamento da equipa de filmagens, primeiro com alguma luz e o
diálogo sobre os mosquitos e a própria luz, depois na escuridão, quando ela se apaga à
meia-noite, o que torna essa segunda parte predominantemente sonora em ecrã negro, salvo
no início (o fósforo) e no final (a tempestade). No fim, mas só no fim da noite nasce
um novo dia.
Acontece, porém, que a partir de Ten o dispositivo do cineasta sofre uma alteração
radical, que as novas câmaras digitais permitem.
Nos filmes anteriores o dispositivo
kiarostamiano era essencialmente exterior, baseado na
filmagem em cenários naturais, contra a prática do “cinema moderno
americano” mas
na linha do neo-realismo italiano, e
no plano longo, que convocava uma
participação atenta e interessada do espectador, não isenta de um certo lado contemplativo.
Com Ten o cineasta fecha-se e fecha-nos,
como espectadores, no interior de um
automóvel, um táxi, já não fora da cidade mas em Teerão. De certa forma,
é o Irão moderno
contra o Irão mais tradicional, embora percorrido por problemáticas modernas, aliás
à semelhança dos filmes anteriores filmados no seu país.
Contudo,
este recentramento do dispositivo, que o vai centrar na figura humana, não anula, antes reforça, o uso do plano
longo. Será mesmo curioso procurar encontrar
a razão de ser
deste novo dispositivo na obra de Abbas Kiarostami. E inquirindo-o a resposta parece
ser mais sonora, a palavra, do que visual, a figura humana.
De facto, o que parece originar em Ten a proximidade até à intimidade de um lugar no
interior de um automóvel é a necessidade de captar as palavras confessionais
dos passageiros
do táxi. Se esta resposta for correcta, como parece, ela no cinema arrasta consigo
a necessidade de mostrar a grande proximidade física, o que significa que aqui o som
implica a imagem. Mas uma imagem, note-se, em plano longo, de modo a captar em
continuidade a expressão de quem fala, o que remete para uma nova preocupação do
cineasta com a interioridade, a verdade interior das suas personagens, ou uma nova
manifestação dessa mesma preocupação, anteriormente mais dependente de um nível de
comportamento e também da palavra. Por sua vez, esse plano longo só em certos casos
é verdadeiro plano-sequência, de
passageiros ou da condutora, já que o cineasta não está
obcecado com esta questão formal, antes preocupado com a verdade de cada um(a)
daqueles/daquelas que filma, o que o leva a fazer, em certos casos, encurtamentos
com breves cortes na continuidade, e a alternar planos das duas personagens
durante o diálogo. Além disso, durante quase todo o filme existe, através das janelas do
táxi, uma profundidade de campo sobre
as ruas da cidade, assim parcialmente
trazidas para o interior do plano, sem prejuízo do seu permanente funcionamento
em fora de campo.
Se compararmos Ten com O vento levar-nos-á...,
verificamos que neste o nível
psicológico da personagem do jornalista passa mais pela inscrição dele no
espaço
do grupo de
habitações e no espaço físico, por forma que mostra o seu desajustamento em relação
àquele local. Ora nada disto acontece já em Ten,
em que o dispositivo se torna minimal e
a própria narrativa desaparece, o que torna ainda mais justificado que se passe a falar
de um cinema minimal, também em termos espaciais, do autor, em que se passa a tratar
de inscrever o espaço exíguo nas personagens que nele se sucedem.
É em 10 on Ten, filme em que o cineasta reflecte sobre o filme anterior,
sobre o seu próprio
cinema, sobretudo a propósito do uso das novas câmaras digitais, e sobre o
cinema em
geral, que Kiarostami assume, pela primeira vez na sua obra, o plano-sequência integral, o que é plenamente
justificado pela necessidade de, com o dispositivo do
filme anterior, se explicar ele próprio, em continuidade, para a câmara, nas suas 10
lições de cinema.
Mas vai ser em Five Dedicated to Ozu, expressa homenagem a Yasujiro Ozu, o grande mestre do plano fixo e longo,
que Kiarostami vai levar ao extremo de duração o uso do plano-sequência, contudo sobre espaços vazios
e desconectados, para me servir da terminologia de
Gilles Deleuze. Deste modo, a participação do espectador, que a proximidade
física das personagens e a palavra implicavam em Ten, desfaz-se, e o dispositivo
volta a tornar-se exterior e até mais contemplativo, devido à duração de cada um dos cinco
planos longos que o compõem. E então, e só então, o cineasta assume em plenitude o plano-sequência de muito longa duração sobre
um mesmo motivo físico, o mar – a
eternidade –, com que os outros elementos presentes em cada plano, no último apenas na banda
sonora, abissalmente dialogam.
Note-se que, logo a seguir, o
cineasta faz um curto filme de 30 minutos sobre as suas próprias
fotografias: Roads of Kiarostami. Filmando a preto e branco fotografias
tornadas, elas
também, a preto e branco (e há, de facto, um momento em que ele começa a fazer
fotografia desse modo), esse é um filme admirável pelo que pretende esclarecer sobre a arte do
cineasta, sobretudo na fotografia, à semelhança do que em 10 on Ten faz sobre o
cinema e em Five faz sobre o espaço e
o tempo, a vida e a morte, o próprio cinema.
Sem recurso a qualquer palavra, Five
é de uma prodigiosa concepção e torna-se uma
pedra fundadora decisiva para entender, não só Ozu e Kiarostami, mas o mistério mais
secreto e profundo da própria arte do cinema. Mas recorde-se que em Roads of Kiarostami são as estradas dos
seus filmes que ele começa por comentar, para o que as
percorre nas fotografias mas também nas imagens em movimento que inclui, em que
usa muito a propósito o plano longo para dar a continuidade espacial real em contraste
com aquela que é descoberta na imagem fixa, em que vai acabar por prevalecer o
branco da neve e em que a última fotografia arde no último plano do filme.
Talvez
que, cada um a seu modo e na sua respectiva perspectiva extrema, Ten, 10 on Ten, Five Dedicated to Ozu e Roads of Kiarostami
representem o apogeu de uma poética
kiarostaminiana
baseada no plano-sequência. Este
processo atinge nesses filmes um tal apuro e
justificação, que se percebe bem que depois deles o cineasta tinha que se
voltar para outros
horizontes temáticos e formais, como efectivamente parece ter acontecido a partir de Shirin, por muito que neste ecoe ainda,
embora já aplicado à sala de cinema, o dispositivo
formal de Ten. Efectivamente, em Cópia Certificada, o seu mais recente filme
concluído, filmado em Itália, o cineasta limita-se a breves, embora brilhantes,
apontamentos
que remetem para o plano-sequência e a profundidade de campo e
para o dispositivo minimal de Ten.
Sobre a estrada nos filmes do cineasta veja-se o que escreve Jacques Rancière em "A imagem pensativa", incluído em "O Espectador Emancipado", o que não exclui
a possibilidade de que a profundidade de campo nos filmes do cineasta também pense numa via aberta pelo seu uso em filmes de Jean Renoir e Orson Welles, como Gilles
Deleuze observou em "A Imagem-Tempo".
Mas o recentramento do dispositivo
dos filmes do cineasta em Ten vai de par com um novo
centramento do seu cinema nas personagens femininas, o que tanto Shirin como Cópia Certificada vêm confirmar e se torna uma viragem temática muito
importante na obra dele. Assim, uma nova poética da mulher terá começado a delinear-se
em Ten, que assim se torna, também por esse motivo, um filme central na obra
de Abbas Kiarostami."
(Excerto de uma comunicação inédita, 2011)
Sobre Abbas Kiarostami, ver também “Uma tarde na Toscânia”,
de 14 de Janeiro de 2012, e “Grandeza de Kiarostami”, de 6 de Outubro de 2013.