“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 31 de julho de 2016

Proeza nas ruas de Berlim

     Chamei um destes dias de passagem "pirueta técnica" ao plano-sequência único em que é construído "A Arca Russa", de Alexander Sokurov, e devo aqui corrigir, pois trata-se de uma verdadeira "proeza técnica" com evidentes implicações fílmicas e estéticas. Ora a proeza de Sokurov, em interiores, é agora repetida pelo alemão Sebastian Schipper em "Victoria" (2015), um filme todo ele filmado em cenários reais e em exteriores num plano-sequência único e em tempo real.            
                       Berlin’s Two Hour Single Take Action Film ‘Victoria’ Trailer
     Nas ruas de Berlim um grupo de quatro amigos encontra uma espanhola, uma madrilena, a personagem cujo nome dá o título ao filme e que é interpretada por Laia Costa. Um deles, Sonne/Frederick Lau, enamora-se dela, enquanto a outro, Boxer/Franz Rogowski, é encomendado um assalto a um banco para pagar protecção concedida na prisão. Victoria toma o lugar do condutor e depois não vos conto a história.
     Todos eles são jovens e as personagens masculinas, berlinenses puros, conhecem-se entre si desde sempre, enquanto ela alinha porque lhe dizem ser um trabalho "sem problemas".
                       Victoria is in cinemas from the 1st April - HeadStuff.org
    Com boa caracterização das personagens e excelentes interpretações, o filme, que conta com argumento do próprio realizador com Olivia Neergaard-Holm e Eike Frederik Schulz, fica nas mãos do director de fotografia Sturla Brandth Grovlen e do seu espantoso trabalho em plano-sequência único.
    A outra grande diferença em relação ao filme de Sokurov é estarmos aqui perante um puro filme de ficção, um filme de acção em que as personagens se movem a grande velocidade, o que torna mais difícil segui-las num único plano sequência, embora a câmara de filmar esteja sempre no lugar certo, definindo o ponto de vista justo.
                       Cinematographer Sturla Brandth Grøvlen and director Sebastian Schipper.
    Há em todo este filme uma muito clara vontade de fazer bem e novo uma obra de género - trata-se de um típico filme negro -, que talvez sem a proeza técnica em causa não desse especialmente nas vistas. Filmado em continuidade entre a noite e a madrugada, "Victoria" de Sebastian Schipper apresenta-se como um filme notável pela sua ousadia e pelo seu acerto, embora a música de Nils Frahm seja por vezes um tanto redundante.
    Pelo seu brio cinematográfico nada me espanta que tenha ganho a maioria dos prémios do cinema alemão. Este é um filme que aconselho sem reservas e que marca este Verão no circuito comercial português.      

Longe da terra

      "Dheepan", de Jaccques Audiard (2015), Palma de Ouro em Cannes, enfrenta com coragem e desassombro o problema das migrações para a Europa, que tão actual se tem revelado com os refugiados que a têm procurado sobretudo a partir do Médio Oriente e do Norte de África, mas fá-lo a partir de e com um caso menos falado pois os seus refugiados partem do Sri Lanka, onde o protagonista pertenceu aos Tigres Tamil.                
                     dheepan
    Com uma família improvisada, composta por Yalini/Kalieaswari Srinivasan, a "mãe", Illayaal/Claudine Vinasithamby, a "filha", e o próprio Dheepan/Jesuthasan Antonythasan, o "pai", eles rumam a França (embora  Yalini preferisse Inglaterra, onde tem uma prima), onde se arrumam num subúrbio de Paris, ele como guarda de um bloco de prédios, ela como empregada de um velho, o senhor Habib/Faouzi Bensaïdi, enquanto Illayaal vai à escola para alunos especiais.
      Depois de nos dar a evolução da "família" nas suas relações internas, o filme detém-se na relação do "casal" e de Yalini com o filho do sr. Habib, Brahim/Vincent Rottiers, não sem que a memória da terra distante e do seu conflito deixe de se imiscuir. 
                     dheepan
    Os conflitos envolvidos são primitivos, o que confere verdade ao filme, e no seu culminar Dheepan vê-se obrigado a fazer frente a tiro ao grupo de Brahim, embora quem estava por trás nessa circunstância viesse de longe. Tudo acaba bem, com os carros a circularem pela esquerda e um filho recém-nascido do agora casal.
     Também co-argumentista e autor dos diálogos com Thomas Bidegain e Noé Debré, Jacques Audiard consegue aqui um bom filme que supera mesmo o seu melhor anterior, "Um Profeta"/"Un prophète" (2009), mostrando tudo o que vale e que se pode continuar a contar com o filho de Michel Audiard (1920-1985)

quarta-feira, 27 de julho de 2016

O céu em Santa Isabel

     Foi inaugurada poucos dias a nova pintura do teto da igreja de Santa Isabel, em Lisboa. Representa o céu, pintado segundo um projecto de Michael Biberstein (1948-2013), uma obra cuja execução contou com o apoio da Santa Casa da Misericórdia, e merece uma visita atenta, que deve ser alargada à igreja no seu todo, que tem outros motivos de interesse. 
                    
     Trata-se de uma excelente obra de arte religiosa, inventiva e notável, feita com visão e talento num edifício ele próprio recuperado. Durante a visita que vos aconselho não se esqueçam de, enquanto contemplam o céu em Santa Isabel, ter um pensamento para o padre Jacques Hamel, ontem barbaramente assassinado em Saint-Étienne-du-Rouvray, na Normandia, norte de França, no interior da igreja de que era pároco.

domingo, 24 de julho de 2016

Entre inocência e malícia

    "Maravilhoso Boccaccio"/"Maraviglioso Boccaccio", de Paolo e Vittorio Taviani (2015), tem uma inspiração feliz e uma realização superior a partir de argumento dos dois irmãos baseado no "Decameron" do famoso escritor renascentista.
                    
     O filme adopta um dispositivo narrativo simples a partir de um grupo de rapazes e raparigas que contam cada um uma história de amor, num total de cinco, no final do Século XIV, durante os anos de peste negra em Florença. Cada história resume-se a um pequeno racconto com possível proveito e exemplo, entre a inocência do primeiro, o humor do segundo, a crueldade do terceiro, a malícia do quarto e a ironia do quinto.
     Tudo se resume a muito pouco mas o mérito deste filme reside na subtileza das narrativas e na harmonia da realização que as liga umas às outras com clara consistência e inteiro espírito crítico. Então o Renascimento italiano apenas se iniciava e estavam ainda muito presentes elementos medievais, o que "Maravilhoso Boccaccio" com argúcia capta muito bem.
                    maravilhoso-boccaccio-papo-de-cinema-01
     A época está irrepreensivelmente reconstituída tanto em cenários como em guarda-roupa para filmagens que decorreram na Toscana, e os actores prestam-se de bom-grado e com à-vontade ao que lhes é pedido. Desta forma, com vestuário de Lina Nerli Taviani, fotografia de Simone Zampagni, música de Giuliano Taviani e Carmelo Travia e montagem de Roberto Perpignani, "Maravilhoso Boccaccio" culmina uma das obras mais interessantes do cinema italiano dos últimos 50 anos.
     O seu sentido na obra dos irmãos Taviani poderá ser encontrado ligando-o a filmes de carácter histórico dos anos 70, como "São Miguel Tinha Um Galo"/"San Michele aveva un gallo" (1972) e "Que Viva a Revolução"/"Allonsanfàn" (1974), e até sobretudo com "Kaos" (1984), em que trabalharam sobre cinco histórias de Luigi Pirandello, "Afinidades Electivas"/"Le affinità elettive" (1996), em que adaptaram Goethe, e o próprio "César Deve Morrer"/"Cesare deve morire" (2012), o seu filme anterior, o que o torna menos inesperado do que pode parecer a alguns.
     Sobre Paolo e Vittorio Taviani ver "Jogo de espelhos", de 15 de Novembro de 2012.

sexta-feira, 22 de julho de 2016

Revistas de referência

     Cada nova publicação sobre o famoso "número de ouro", a conhecida "secção de ouro" ou "proporção de ouro" que encontro compro e devoro, como agora voltou a acontecer com a Edição Especial da National Geographic portuguesa: "A Proporção Áurea - A linguagem matemática da beleza".
                                     NGP AUREA CAPA site
     Escrito por Fernando Corbalán, reputado matemático e professor espanhol, e editado originalmente em 2010, a informação que reúne, com excelentes reproduções fotográficas, torna esta mais uma edição histórica sobre esta importante questão científica que tem tocado de forma especial a arte.
     Infelizmente, como já tinha acontecido em publicação anterior sobre o assunto, ignora olimpicamente a importância da questão no cinema (ver "Biblio de cinema", de 28 de Outubro de 2012, para que aqui remeto), o que lamento porque amputa de uma parte muito importante a informação sobre a mesma questão na arte. Não sei ao que atribuir este tipo de omissão, que volto a lamentar e para a qual volto a chamar a vossa atenção, sem por isso deixar de aconselhar esta Edição Especial da National Geographic.
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      Por sua vez, a revista portuguesa Vértice, fundada em 1942 e com importante intervenção cultural e política durante o Estado Novo, que continua a ser uma revista cultural de referência na sua II Série com Francisco Melo como Director e Manuel Gusmão como Coordenador editorial, dedica um valioso e oportuno dossier a Orson Welles no seu nº 177, de Outubro-Novembro-Dezembro de 2015, com ensaios de Tiago J. Siva, Sérgio Dias Branco e Mário Avelar, que aqui vivamente vos recomendo.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Elogio da lentidão

     Nascido na Malásia mas a trabalhar no cinema novo de Taiwan a seguir ao lançamento deste por Hou Hsiao-Hsien e Edward Yang no início dos anos 80 do século passado, Tsai Ming-Liang dirigiu e escreveu (a partir de novela de Ch'eng-En Wu, um dos principais escritores chineses do Século XVI) "Le Voyage en Occident"/"Xi you" (2014), um filme de 53 minutos em que acompanha um monge budista/Kang-Sheng Lee em viagem por Marselha, onde acolhe um novo discípulo, o dragão/Denis Lavant.
                   
     Baseado numa personagem mitológica que tem animado outros filmes seus na série denominada Walker, este filme notabiliza-se pelos contrastes que estabelece desde o seu início, com o grande plano do rosto de Denis Lavant, entre o maior e mais pequeno, entre o próximo e o distante, entre o movimento a velocidade normal acelerada das personagens anónimas e o movimento muito lento dos protagonistas. 
                                  Le voyage en Occident
     Pretexto para visitar locais históricos daquela cidade francesa, este "Le Voyage en Occident", que passou esta semana no Arte, transmite uma ideia de lentidão para se contrapor a um mundo acelerado. Ideia zen, em todo o caso ideia original bem defendida em termos fílmicos por Tsai Ming-Liang, que continua a ser um cineasta que interessa depois de "Cães Errantes"/"Jiao you" (2013), que estreou o ano passado em Portugal - ver "Sobre os mortos", de 23 de Dezembro de 2013.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

O regresso de um grande artista

       O mais recente e muito aguardado filme de Alexander Sokurov, "Francofonia" (2015), empreende sobre o Museu do Louvre, em Paris, um trabalho semelhante ao de "A Arca Russa"/"Russkyi kovcheg" (2002) sobre o Hermitage sem a pirueta técnica deste. O resultado não deixa de ser um novo filme excepcional deste grande cineasta russo.
                    Alexander Sokourov in his new film asks how the Louvre in Paris survived the war
         Porém, em vez de se alargar sobre a história e antes de o fazer, o filme adopta um centro e ponto de partida situado na vida do museu durante a Ocupação do território francês e de Paris logo no início da II Guerra Mundial. Assim é trazido para lugar de destaque o confronto entre o então director do Louvre, Jacques Jaujard/Louis-Do de Lencquesaing, e Franz Wolff-Metternich/Benjamin Utzerath, o comandante nazi encarregado de lidar em nome do invasor com a cultura e a arte do território ocupado.
      Com recurso a imagens de época, de arquivo, e a reconstituição, Alexander Sokurov consegue uma abordagem forte e original sobre a relação entre o poder ocupante e a arte, que não se dispensa de confrontar na história da França Marianne/Johanna Korthals Altes e Napoleão Bonaparte/Vincent Nemeth e vai ao ponto de ele próprio dialogar com as personagens do museu mas também com o comandante de um cargueiro que, no mar alto, transporta obras de arte.       
                    Aleksander Sokurov's 'Francofonia'
        Este último dispositivo estabelece a justa distância no filme com tudo o mais que ele mostra, transmitindo com o navio ameaçado a ameaça actual da salvaguarda da arte. Com a excelente fotografia de Bruno Delbonnel (o mesmo de "Fausto", 2011), a apresentação dos espaços e de obras de referência do Louvre, como a da cidade de Paris ou a dos palácios em que as peças do museu, à excepção das esculturas, foram recolhidas durante a Ocupação, assume um brio especial.
        A comparação com a situação da União Soviética e a do próprio Hermitage durante a II Guerra Mundial é inteiramente pertinente e justificada. Na sua abordagem pessoal e inteligente do museu e da arte, "Francofonia" confirma o seu autor como um dos mais importantes e originais cineastas contemporâneos (sobre Alexander Sokurov ver "Um grande artista", de 20 de Abril de 2013).
                    Francofonia_4
       Aproveito para chamar a atenção de todos para a nova galeria de pintura e escultura portuguesa no 3º Piso do Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, bem como para a exposição "Obras em Reserva - O museu que não se vê", também patente no MNAA até ao dia 25 de Setembro próximo
         Sobre a relação entre arte e poder aconselho o recente e muito bom "O Ruído do Tempo", de Julian Barnes (Lisboa: Quetzal, 2016).

sexta-feira, 15 de julho de 2016

terça-feira, 12 de julho de 2016

Nocturno africano

      Dez anos depois de "A Costa dos Murmúrios", baseado em novela de Lídia Jorge (2004), Margarida Cardoso regressa a Moçambique para uma outra memória em "Yvone Kane" (2014) a partir de argumento original seu situado num país africano imaginário.
                   
    Rita/Beatriz Batarda procura descobrir o que aconteceu à personagem que dá título ao filme/Mina Andala, contando com a ajuda mas também o obstáculo da sua mãe, Sara/Irene Ravache. O filme anda em círculos sucessivos em volta do passado incógnito, com uma composição cinematográfica notável no presente que, apesar do escasso desenvolvimento narrativo, nos prende ao seu desenrolar.
     Embora com uma saída, a circularidade de "Yvone Kane" aponta para o impasse da memória sem deixar de se encantar pela luz de Moçambique e as suas paisagens terrestres e marítimas a que muito pertinentemente prefere os interiores escuros, nocturnos e sem saída que não seja, para Rita, ir ao encontro das suas raízes africanas e das suas referências pessoais na sua busca da verdade. 
                  
      Com a memória colonial em fundo mas substituída pela da guerra civil, Margarida Cardoso continua a ser uma grande cineasta, refinando mesmo aqui o seu trabalho visual e sonoro, com fotografia de João Ribeiro, e com os actores. Os espíritos dos mortos guardam o seu segredo, embora ele deva ser desvendado pelos vivos - no caso, o tráfico a que Yvone se dedicara graças à sua posição política adquirida na luta pela independência.

A herança de Bergman

    "Bergman Invadido"/"Trespassing Bergman" é um documentário de Jane Magnusson e Hynek Pallas (2014) que passou ontem à noite na RTP2 em que diversos cineastas actuais revisitam a obra do grande cineasta sueco e prestam sobre ela e sobre ele o seu depoimento.
                      ingrid               
     Incluindo depoimentos e excertos de filmes e de filmagens, este documetário mostra de forma clara a enorme influência que Ingmar Bergman exerceu no seu próprio tempo, questão sobre a qual as palavras de Woody Allen, Michael Haneke, Lars Von Trier, Zhang Yimou, Ang Lee, Martin Scorsese, Alejandro Gonzalez Iñarritu entre outros são muito esclarecedoras.        
     Preocupado em recolher opiniões relevantes, também de actores, este documentário não deixa espaço para uma maior e mais detida interpretação dos filmes, o que outros sem dúvida farão. Mas pela simples recolha de testemunhos diversificados e bem apresentados com excertos de filmes, "Bergman Invadido" permite perceber o vasto leque de influências que o cineasta deixou como herança no próprio cinema.
                      Bergman Invadido
      Pareceram-me na maioria muito presos aos filmes iniciais, o que é compreensível porque foram os primeiros filmes dele que viram, mas as imagens de ilha de Färo na actualidade e da casa que ele habitou compõem um quadro muito interessante, precioso, que fica para a história. Sobre Ingmar Bergman ver "Eles, os modernos", de 22 de Janeiro de 2012, e "Bergman outra vez", de 6 de Dezembro de 2015.

domingo, 10 de julho de 2016

Campeões

    Depois de muitos anos de sofrimento e frustração, a selecção nacional portuguesa de futebol conseguiu esta noite, no Stade de France, em Saint-Denis, uma vitória histórica e inteiramente merecida frente à França, pela qual a felicito e a todos os seus jogadores, seleccionador e equipa técnica.
                     http://img.obsnocookie.com/s=w400,pd1/o=80/http://s3.observador.pt/wp-content/uploads/2016/07/10230413/545932374_770x433_acf_cropped.jpg                                
       Mas no fundo estamos todos de parabéns e temos todos motivos para festejar o facto de Portugal ser Campeão Europeu de Futebol de 2016, o título mais importante da sua história nesta modalidade.
                     Éder celebra o golo de ouro em Paris com Eliseu                               
     Todos merecíamos esta pequena compensação que se torna maior por efectivamente a selecção portuguesa ter sido a melhor do campeonato europeu. E, tendo-o sido, ganhou. Obrigado a todos.  (As fotografias são da Reuters.)

Ligar pontas soltas

    No prosseguimento de uma obra que dedica grande atenção à história do cinema português, Manuel Mozos dirigiu a curta "A Glória de Fazer Cinema em Portugal" (2015), um documentário baseado em imagens de arquivo em especial do final dos anos 20 do século passado.          
                      
     Escrito por Eduardo Brito, o filme centra-se no poeta e escritor José Régio (1901-1969) e em Vila do Conde, onde ele nasceu, viveu e morreu, trazendo para primeiro plano o seu interesse pelo cinema que esteve na origem de uma intervenção muito importante no sentido da sua defesa como arte, o que se conhecia, mas também da sua vontade de o fazer, o que não se sabia e agora se fica a saber.
    "A Glória de Fazer Cinema em Portugl" de Manuel Mozos vale sobretudo como documento sobre uma época e sobre um homem que não teve receio em se imiscuir num meio então novo e fascinante, em que só os melhores se atreveram. Acabou por se encontrar com Manoel de Oliveira, e então é uma outra história, a de toda uma geração que se reuniu, no segundo modernismo português, em volta da revista Presença.
                      250 AGloriaCampus
    Louve-se no filme a investigação e o propósito de quem não trata o cinema como espectáculo mas como meio, como linguagem e como arte. Hoje como então é preciso não ter medo da arte do cinema.
    Mas ao centrar-se em Régio, cuja amizade com Manoel de Oliveira veio a ter consequências maiores na obra deste, enriquece o nosso conhecimento não só do cinema português mas sobre este nome maior da literatura portuguesa do Século XX (sobre Manuel Mozos ver "Tempo português", de 12 de Abril de 2015, e "Toda uma vida", de 24 de Maio de 2015).        

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Poéticas de Abbas Kiarostami


       “É Através das Oliveiras o grande filme que culmina esta fase da obra do cineasta de uma maneira superior, curiosamente também quanto ao uso do plano-sequência, de que aqui se pode falar já sem hesitação dado o seu uso sistemático e deliberado desde o início, primeiro mostrando a estrada que um carro percorre enquanto os que nele viajam dialogam, depois mostrando o que se vê através da janela do lado oposto ao lugar da condutora. Como se sabe, este é um filme sobre a rodagem de outro filme, na continuidade de Onde fica a casa do meu amigo? e E a vida continua…. Na sequência do acampamento da equipa de filmagens, sobretudo no primeiro momento dela, o do diálogo com o homem que perdeu a mulher com quem vivera durante 50 anos, o cineasta dedica-se a um trabalho prodigioso com planos longos e profundidade de campo, o que torna essa sequência um ponto central de referência na obra dele. Num segundo momento, na manhã seguinte, ele prolonga esse tratamento do espaço, já que é de novo o espaço que aqui está em causa. Mas é com a obsessiva repetição da cena do jovem casal, sempre filmada frontalmente e em plano fixo embora com momentos de acesso à varanda onde os actores descansam, também eles prodigiosos, que o filme atinge um nível de consciência de si mesmo que a meu ver o faz exceder o próprio Close-Up, com o qual mantém afinidades evidentes. O mais admirável será, contudo, mais ainda do que as árvores abanadas pelo vento, o final, com o plano geral muito longo e as linhas traçadas na paisagem pelas figuras miniaturizadas dos protagonistas, os actores do filme dentro do filme. Isso é pura beleza, inominável.

                   through-the-o        

        Se O Sabor da Cereja retoma as questões dos filmes anteriores, até por ser  também um filme de percurso, aí o cineasta detém-se não apenas no espaço exterior que o carro percorre e no que a partir deste se vê, mas também no seu interior e na guarita do guarda das obras. É, todavia, a parte final do filme que alonga a duração dos planos, do carro em movimento e a partir dele, mas também no recorte das janelas em planos tirados do interior (o Museu de História Natural) e do exterior (o apartamento), como que em consonância com os diálogos e o estado de espírito do protagonista.
       Dir-se-ia que esse é um tratamento do tempo fílmico que se impõe ao cineasta como dilatado, por contraposição ao do instantâneo fotográfico que ele também pratica. Dessa maneira a imagem em movimento se contrapõe melhor para ele á imagem fixa, desprovida de movimento, questão a que mais tarde vai dedicar um outro filme.
        Como é compreensível, é num filme mais concentrado espacialmente, O vento levar-nos-á..., que Kiarostami leva mais longe as duas questões: plano-sequência (duração do plano ) e profundidade de campo. De facto, aí estão em causa trajectos na aldeia, desde a chegada a ela, em que as personagens percorrem ruas e escadas, e também o percurso que o protagonista tem que descrever, até ao cimo de uma colina, de cada vez que recebe uma chamada no telemóvel. Mas vai ser em espaços interiores, ou captados sobre o interior, que o cineasta vai afinar a questão da profundidade de campo, nas recorrentes cenas nas varandas do pátio interior, a primeira das quais absolutamente prodigiosa, em dois momentos de diálogo com a criança, na escola e numa casa vistas a partir de um ponto de vista exterior que permite observar a deslocação desta em profundidade pela abertura da porta, e na assombrosa sequência passada na escuridão da caverna. O final, com o percurso de moto pelas searas, parece já um puro devaneio de pintor, da parte de um cineasta que tinha deixado espalhados ao longo do filme breves apontamentos de espaços vazios ocupados por personagens anónimas ou secundárias (apontamentos tipo Yasujiro Ozu), e que se percebe que faz o protagonista subir frequentemente a uma colina, não só porque aí se situa o cemitério e alguém escava um poço, uma vala, mas também para poder mostrar, a partir daí e enquanto acompanha a personagem em planos longos, o espantoso pano de fundo das montanhas. Aliás, o último plano do filme, com a água que corre, volta a ser longo.


                                               A mudança do dispositivo


           Já no início deste século, Kiarostami regressa ao documentário com ABC África, sobre os órfãos da SIDA no Uganda, e mesmo nessas circunstâncias encontramos logo no início planos da chegada a Kampala que são tirados do interior de um carro, de maneira a captarem esta paisagem nova nos seus filmes de um modo que implica a sua assinatura. Mais à frente, existem dois planos filmados nas ruas de um bairro pobre cuja duração permite dar perfeitamente conta da situação espacial das personagens, nomeadamente crianças, o que volta a acontecer no primeiro plano, no hotel, com a criança adoptada pelo casal austríaco. Entre esses momentos, ocorrera a fabulosa sequência nocturna no acampamento da equipa de filmagens, primeiro com alguma luz e o diálogo sobre os mosquitos e a própria luz, depois na escuridão, quando ela se apaga à meia-noite, o que torna essa segunda parte predominantemente sonora em ecrã negro, salvo no início (o fósforo) e no final (a tempestade). No fim, mas só no fim da noite nasce um novo dia. 
          Acontece, porém, que a partir de Ten o dispositivo do cineasta sofre uma alteração radical, que as novas câmaras digitais permitem.

                  Ten 2

        Nos filmes anteriores o dispositivo kiarostamiano era essencialmente exterior, baseado na filmagem em cenários naturais, contra a prática do “cinema moderno americano” mas na linha do neo-realismo italiano, e no plano longo, que convocava uma participação atenta e interessada do espectador, não isenta de um certo lado contemplativo. Com Ten o cineasta fecha-se e fecha-nos, como espectadores, no interior de um automóvel, um táxi, já não fora da cidade mas em Teerão. De certa forma, é o Irão moderno contra o Irão mais tradicional, embora percorrido por problemáticas modernas, aliás à semelhança dos filmes anteriores filmados no seu país.
       Contudo, este recentramento do dispositivo, que o vai centrar na figura humana, não anula, antes reforça, o uso do plano longo. Será mesmo curioso procurar encontrar a razão de ser deste novo dispositivo na obra de Abbas Kiarostami. E inquirindo-o a resposta parece ser mais sonora, a palavra, do que visual, a figura humana.
        De facto, o que parece originar em Ten a proximidade até à intimidade de um lugar no interior de um automóvel é a necessidade de captar as palavras confessionais dos passageiros do táxi. Se esta resposta for correcta, como parece, ela no cinema arrasta consigo a necessidade de mostrar a grande proximidade física, o que significa que aqui o som implica a imagem. Mas uma imagem, note-se, em plano longo, de modo a captar em continuidade a expressão de quem fala, o que remete para uma nova preocupação do cineasta com a interioridade, a verdade interior das suas personagens, ou uma nova manifestação dessa mesma preocupação, anteriormente mais dependente de um nível de comportamento e também da palavra. Por sua vez, esse plano longo só em certos casos é verdadeiro plano-sequência, de passageiros ou da condutora, já que o cineasta não está obcecado com esta questão formal, antes preocupado com a verdade de cada um(a) daqueles/daquelas que filma, o que o leva a fazer, em certos casos, encurtamentos com breves cortes na continuidade, e a alternar planos das duas personagens durante o diálogo. Além disso, durante quase todo o filme existe, através das janelas do táxi, uma profundidade de campo sobre as ruas da cidade, assim parcialmente trazidas para o interior do plano, sem prejuízo do seu permanente funcionamento em fora de campo.

                     Abbas Kiarostami: In Memoriam

           Se compararmos Ten com O vento levar-nos-á..., verificamos que neste o nível psicológico da personagem do jornalista passa mais pela inscrição dele no espaço do grupo de habitações e no espaço físico, por forma que mostra o seu desajustamento em relação àquele local. Ora nada disto acontece já em Ten, em que o dispositivo se torna minimal e a própria narrativa desaparece, o que torna ainda mais justificado que se passe a falar de um cinema minimal, também em termos espaciais, do autor, em que se passa a tratar de inscrever o espaço exíguo nas personagens que nele se sucedem. 
          É em 10 on Ten, filme em que o cineasta reflecte sobre o filme anterior, sobre o seu próprio cinema, sobretudo a propósito do uso das novas câmaras digitais, e sobre o cinema em geral, que Kiarostami assume, pela primeira vez na sua obra, o plano-sequência integral, o que é plenamente justificado pela necessidade de, com o dispositivo do filme anterior, se explicar ele próprio, em continuidade, para a câmara, nas suas 10 lições de cinema. 
         Mas vai ser em Five Dedicated to Ozu, expressa homenagem a Yasujiro Ozu, o grande mestre do plano fixo e longo, que Kiarostami vai levar ao extremo de duração o uso do plano-sequência, contudo sobre espaços vazios e desconectados, para me servir da terminologia de Gilles Deleuze. Deste modo, a participação do espectador, que a proximidade física das personagens e a palavra implicavam em Ten, desfaz-se, e o dispositivo volta a tornar-se exterior e até mais contemplativo, devido à duração de cada um dos cinco planos longos que o compõem. E então, e só então, o cineasta assume em plenitude o plano-sequência de muito longa duração sobre um mesmo motivo físico, o mar – a eternidade –, com que os outros elementos presentes em cada plano, no último apenas na banda sonora, abissalmente dialogam.
        Note-se que, logo a seguir, o cineasta faz um curto filme de 30 minutos sobre as suas próprias fotografias: Roads of Kiarostami. Filmando a preto e branco fotografias tornadas, elas também, a preto e branco (e há, de facto, um momento em que ele começa a fazer fotografia desse modo), esse é um filme admirável pelo que pretende esclarecer sobre a arte do cineasta, sobretudo na fotografia, à semelhança do que em 10 on Ten faz sobre o cinema e em Five faz sobre o espaço e o tempo, a vida e a morte, o próprio cinema. Sem recurso a qualquer palavra, Five é de uma prodigiosa concepção e torna-se uma pedra fundadora decisiva para entender, não só Ozu e Kiarostami, mas o mistério mais secreto e profundo da própria arte do cinema. Mas recorde-se que em Roads of Kiarostami são as estradas dos seus filmes que ele começa por comentar, para o que as percorre nas fotografias mas também nas imagens em movimento que inclui, em que usa muito a propósito o plano longo para dar a continuidade espacial real em contraste com aquela que é descoberta na imagem fixa, em que vai acabar por prevalecer o branco da neve e em que a última fotografia arde no último plano do filme.
                      Roads to Kiarostami


        Talvez que, cada um a seu modo e na sua respectiva perspectiva extrema, Ten, 10 on Ten, Five Dedicated to Ozu e Roads of Kiarostami  representem o apogeu de uma poética kiarostaminiana baseada no plano-sequência. Este processo atinge nesses filmes um tal apuro e justificação, que se percebe bem que depois deles o cineasta tinha que se voltar para outros horizontes temáticos e formais, como efectivamente parece ter acontecido a partir de Shirin, por muito que neste ecoe ainda, embora já aplicado à sala de cinema, o dispositivo formal de Ten. Efectivamente, em Cópia Certificada, o seu mais recente filme concluído, filmado em Itália, o cineasta limita-se a breves, embora brilhantes, apontamentos que remetem para o plano-sequência e a profundidade de campo e para o dispositivo minimal de Ten. 
          Sobre a estrada nos filmes do cineasta veja-se o que escreve Jacques Rancière em "A imagem pensativa", incluído em "O Espectador Emancipado", o que não exclui a possibilidade de que a profundidade de campo nos filmes do cineasta também pense numa via aberta pelo seu uso em filmes de Jean Renoir e Orson Welles, como Gilles Deleuze observou em "A Imagem-Tempo".
         Mas o recentramento do dispositivo dos filmes do cineasta em Ten vai de par com um novo centramento do seu cinema nas personagens femininas, o que tanto Shirin como Cópia Certificada vêm confirmar e se torna uma viragem temática muito importante na obra dele. Assim, uma nova poética da mulher terá começado a delinear-se em Ten, que assim se torna, também por esse motivo, um filme central na obra de Abbas Kiarostami."


(Excerto de uma comunicação inédita, 2011)

       Sobre Abbas Kiarostami, ver também “Uma tarde na Toscânia”, de 14 de Janeiro de 2012,  e “Grandeza de Kiarostami”, de 6 de Outubro de 2013.