“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Acção

     "The Monuments Men - Os Caçadores de Tesouros"/"The Monuments Men", de George Clooney (2014), é um filme muito bom e bem feito em que, na linha dos filmes que dirigiu anteriormente, o conhecido actor/cineasta dá muito bem conta do seu talento, colocando-o de novo ao serviço de uma boa causa. Só há pouco tempo pude ver o seu primeiro filme como realizador, "Confissões de Uma Mente Perigosa"/"Confessions of A Dangerous Mind" (2002), que não conhecia e em que se anunciava já um cineasta muito talentoso, com perfeito domínio das regras da boa construção de um filme (sobre Clooney, ver "Nos bastidores da política", 14 de Setembro de 2012).
                    the-monuments-men-movie-photo-6
        Como noutros dos seus filmes tem acontecido, em "The Monuments Men - Os Caçadores de Tesouros" ele não chama deliberadamente a atenção para o seu trabalho como realizador para colocar em destaque o filme propriamente dito e a sua narrativa. De facto, a missão que tem a seu cargo a equipa que Frank Stokes/George Clooney reúne é da maior importância: já na parte final da II Guerra Mundial, recuperar os tesouros artísticos de que os nazis, nomeadamente o seu líder, se tinham indevida e abusivamente apropriado.
       Reunindo um grande cast, o cineasta constrói o seu filme de forma segura e desenvolta, ciente de que ali o que verdadeiramente interessa são as obras de arte definidoras de uma civilização e de diversas culturas que se trata de recuperar e tirando o melhor partido da imagem cinematográfica de cada um dos actores, incluindo de si próprio.            
                   
       Resolvendo muito bem os principais momentos do filme e o filme no seu todo em termos elípticos, em "The Monuments Men - Os Caçadores de Tesouros" mais do que o chamado filme de guerra George Clooney recupera a urgência e a intransigência com que grandes cineastas americanos, como George Stevens e Sam Fuller, filmaram a abertura dos campos de concentração e de extermínio e a libertação dos prisioneiros quando da invasão da Alemanha nazi pelas forças aliadas no final de guerra.
       Como, por exemplo", em "Os sete Magníficos"/"The Magnificent Seven", de John Sturges (1960), não se trata para o cineasta de aprofundar a psicologia das personagens ou de explorar a sua vida privada mas de mostrá-las em movimento, em acção, de James Granger/Matt Damon a Claire Simone/Cate Blanchett, passando por todos os outros - Richard Campbell/Bill Murray, Walter Garfield/John Goodman, Jean-Claude Clermont/Jean Dujardin, nomeadamente. Ao fazê-lo (dar primacialmente as simples personagens em movimento) Clooney dá-nos aquilo que é mais importante onde mais interessa, e ao tornar discreta a relação entre James e Claire torna-a muito mais directa, aberta e por isso mesmo sugestiva na activa dinâmica envolvente.
                                
        Sendo um filme muito bom, "The Monuments Men - Os Caçadores de Tesouros" revela-se um filme muito importante e oportuno por fazer ressurgir a questão de que trata, evitando que ela caia no esquecimento, o que é justamente problematizado no seu final com a questão: uma obra de arte vale o preço de uma vida humana, a que Clooney responde como actor, como co-argumentista e como realizador. As ondas de choque que o filme ainda hoje provoca, e tem provocado com a revelação da descoberta recente de obras de arte ainda desaparecidas na mesma época e pelo mesmo motivo, mostram a sua inteira pertinência.
         Baseado no relato de factos verídicos, tratados detidamente no livro de Robert M. Edsel e Brett Witter, este é um filme que vivamente recomendo. Ainda hoje aquela é a causa pela qual todos nos batemos: a liberdade de criação artística e o dever de preservar o património artístico da humanidade, não importa a que preço, mesmo o do esquecimento.

Poética de Chaplin

      Passam agora 100 anos sobre o início da actividade de Charles Chaplin no cinema. Por ele ter sido um dos nomes mais importantes de toda a história do cinema, aqui recordo mais alguns dos traços memoráveis que o tornaram perene (ver "Génio de Chaplin", 7 de Fevereiro de 2014).
                                       
   Desde os seus inícios, Charlot foi uma personagem tímida mas atrevida, que, sempre interpretada por ele, o seu criador, quando em situação de inferioridade reagia de forma inesperada, quando em situação de superioridade dessa mesma situação abusava, como era suposto acontecer, quando colocada em situação de perda reagia emocionado, quando enamorado ousava, quando batido revoltava-se... ou rendia-se. Embora sempre em termos muito expressivos, tudo feito na maior inocência e simplicidade.                                
   De uma simplicidade ingénua, Charlot não era, contudo, pueril, antes elaborava o seu comportamento e a sua resposta como qualquer um o poderia fazer, mas indo sempre um pouco mais longe do que esperado. E nesse pequeno excesso, em que residia a sua originalidade, dava forma e voz ao inconsciente, que desconhecemos, e ao subconsciente, que não dominamos - nem permitimos que se expressem a não ser involuntariamente, quando por si próprios se impõem. Se pode dizer-se que ele foi cada um de nós é precisamente por causa desse excesso que, sendo devido, surgia como ousadia pouco habitual.   
                       
    Por causa dele, desse pequeno excesso, suscitava reacções também elas inesperadas, embora muitas vezes previsíveis, com as quais tinha que se haver. Na dinâmica daí resultante, em que intervinha o imprevisto calculado, suscitava o gag cómico no seu desenvolvimento lógico, embora também ele, e até sobretudo ele inesperado, e fazia proliferar os excessos, o que gerava o equilíbrio fundamental de cada um dos seus filmes. Ele não era nem melhor nem pior do que nós somos, limitava-se apenas a fazer o que geralmente não fazemos, utilizando o que recalcamos ou calamos por timidez, receio das conveniências ou hábito social que em nós atrofiam forças e energias que não nos atrevemos a utilizar mas que, quando despertas ou não mutiladas, falam por nós.
      Vagabundo, Charlot não tinha destino, não tinha horizonte, limitava-se a caminhar, embora por vezes acompanhado, rumo ao infinito, no seu típico andar desajeitado que, juntamente com o vestuário, a bengala e o bigode, jogava bem com o seu comportamento, fazia parte da sua personagem, que também exprimia: sempre em equilíbrio precário, embora com um centro de gravidade bem definido que o fazia equilibrar-se ou recuperar o equilíbrio em todas as situações.
                     Charles Chaplin in Lichter der Großstadt            
    E note-se que o auge da arte de Chaplin se situou no cinema mudo, até "Luzes da Cidade"/"City Lights" (1931), o que se explica pelo carácter essencialmente físico, corporal dos seus filmes e dos respectivos processos buslescos, essencialmente visuais, facto que o torna um dos grandes fundadores do cinema, da sua linguagem e da sua arte em termos absolutos. 
     A partir de "Luzes da Cidade", adoptados o melodrama e o som Chaplin tornou-se mais sentimental mas também mais directamente crítico, e o excesso sentimetal decorreu, ele também, de um pequeno excesso (a cega naquele filme) tal como a crítica decorreu de um pequeno excesso expressivo, o que fazia as personagens e os filmes falarem por si próprios, com Charlot ou já sem ele, embora conservando as suas marcas e os seus traços. Mas com o som modificou-se a pura expressão física que ele tinha nos seus filmes mudos, embora a música, sempre composta por Chaplin, e os diálogos, sempre seus, touxessem também uma nova expressividade aos filmes - da sociedade mecanizada, maquinizada e indiferente de "Tempos Modernos"/"Modern Times" (1936) até ao discurso final de "O Ditador/"The Great Dictator" (1940), às digressões produtivas de "Monsieur Verdoux" (1947), ao momento final de "Luzes da Ribalta"/"Limelight" (1953), ao regresso triunfal de "Um Rei em Nova Iorque"/"A King in New York" (1957) e ao pequeno momento de génio, justamente sobre o equilíbrio físico e como tentar mantê-lo, de "A Condessa de Hong-Kong"/The Countess from Hong-Kong" (1967).
                     Tempos Modernos : Foto Charles Chaplin
      Por tudo isto Charles Chaplin, que foi a criatura que criou e os filmes que fez, em cuja criação cinematográfica avulta, especialmente na figura de Charlot, o pequeno excesso que faz transvazar e esclarece como poética própria, foi nas suas obras satíricas e críticas, e por causa delas, não só a figura mais importante do cinema como uma das personalidades mais importantes de todo o Século XX, em nome do qual, mesmo em filmes, em diversas situações muito difíceis falou. Ele foi, em suma, alguém cuja obra urge conhecer e divulgar, sobretudo na presente efeméride.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

A voz e o corpo

    "Uma História de Amor"/Her" é a mais recente longa-metragem de Spike Jonze (2013) e confirma plenamente o gosto do cineasta pelo estranho e pelo bizarro, que o acompanha desde "Queres Ser John Malkovich?"/"Beeing John Malkovich" (1999), a sua longa-metragem de estreia que logo para o seu nome (e o do argumentista Charlie Kaufman) chamou a atenção. Agora como único argumentista além de realizador, justamente na ideia narrativa do filme reside a sua maior originalidade e o seu maior mérito.                     
                    
    Ao colocar um simples mas inspirado escrevedor de cartas alheias, Theodore/Joachin Phoenix, um homem em processo de divórcio, a falar com o sistema operativo do seu computador, Samantha/voz de Scarlett Johansson, Spike Jonze trata de maneira inteligente e sensível uma questão de ficção científica em termos muito simples e acessíveis. Para além das recorrências do passado, a amiga Amy/Amy Adams que vai seguir o mesmo percurso que ele e sobretudo a ex-mulher, Catherine/Rooney Mara, Theodore vai ter de resolver a situação nova e complicada de a voz feminina de um sistema operativo, sem corpo, se aproximar sentimentalmente dele e ele dela.
  Tratando uma questão de inteligência artificial, o cineasta confronta-se e confronta-nos com questões essenciais, talvez não tão fantasistas como isso se pensarmos no que foi o amor no romantismo, ou na necessidade de encarnar alguém, de lhe dar e reconhecer corpo para poder verdadeiramente amá-lo. Com um Joaquin Phoenix em completo controlo expressivo e a voz evocadora, maleável, perturbante mas ela também perturbada de Scarlett Johansson, o filme enrola-se e desenrola-se como se estivesse a tratar de uma questão real e perturbante, até que Samantha propõe a Theodore um corpo para a substituir, levando tão longe quanto possível aquela necessidade de encarnar.              Depois de "O Sítio das Coisas Selvagens"/"Where the Wild Things Are" (2009), Spike Jonze não deixa os seus créditos por mãos alheias e confirma-se como um cineasta muito interessante e arrojado, que joga no aparentemente inverosímil para colocar questões inteiramente pertinentes, intemporais mesmo. Movendo-se sempre a um nível cinematograficamente correcto e muito justo no tratamento da solidão moderna na grande cidade (com exteriores filmados na Califórnia mas também em Shanghai) e daquela voz que, invisível na sua proveniência detectável, vem geralmente do espaço visível do plano (o auricular de Theodore), "Uma História de Amor" é um filme irrepreensível e muito bom em que o cineasta se reafirma como um nome a ter em conta no actual panorama do cinema americano do lado da intrigante fantasia.
    A ideia  de que se pode amar o desencarnado que se imagina - mais ainda, de que esse desencarnado pode amar-nos e amar simultaneamente outros -, apesar do que é preciso um corpo para amar, mesmo hoje ou amanhã, é extremamente interessante e inspiradora, sobretudo ao ritmo dos Arcade Fire. "O passado é uma história que contamos a nós próprios" (dos diálogos do filme). Ou, em termos heraclíticos: "Uma conexão invisível é mais poderosa que uma visível".

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

A luz e o negro

    A cor desliza sobre a forma que se indecide, de fronteiras esbatidas, desfocadas porém definidas como se impressionistas à partida, mas transmutadas pela cor, pelo contorno difuso que varre a superfície da tela, em latentes gritos expressionistas, que porém nos acolhem num conforto tranquilizante. O trabalho da inquietação é feito de forma a que se contenha em limites precisos, embora a desfocagem frequentemente aponte um excesso de visão que desse modo se afirma.
     Ver o que se vê para além do que é visto, sugerir um mundo a partir da indefinição de formas indecisas ou então da definição de formas geométricas precisas, trabalhando a cor nas suas proximidades e nos seus contrastes mas como quem sobre o mundo desenvolve um discurso interior, feito de memórias, reminiscências, presenças e ausências que preenchem o vazio da tela. Superar o realismo e o abstraccionismo rumo a algo de que se desconhece o nome, numa interioridade que aponta ao infinito. A forma geométrica, embora necessária é, afinal, uma mera quimera.
   Um mundo cujos contornos, na superfície liquefeita se tornam indefinidos, indecisos, aproximando-se do esboço do borrão para logo se recomporem em sugestão do que esteve na sua origem, do que está para além deles. O desfazer de contornos recompõe-nos ao repô-los nos seu justos, precisos termos. Sem jogar com o realismo e pressupondo a abstracção que não se limita a acolher em sugestões expressionistas e surrealistas, a ave que pousa na superfície do quadro levanta elegantemente voo como lágrima impertinente que, súbita, contradiz ou, indiscreta corrobora o sorriso e turva a visão de uma bela mulher.
                    
    Na emoção da cor em que a forma indefinidamente se define, recorta quadros dentro do quadro, desdobra-os, traça linhas divisórias, e a comoção regeneradora que desperta permite melhor olhar em volta e perceber a indefinição do concreto e definido na sua própria definição concreta, que convoca o passado, a solidão, a memória. O traço generoso, aberto mas contido, dominado na sua expressividade, acolhe a indecisão interior que melhor permite compreender, e somos a emoção que nos suscita, porém leve e benéfica mesmo quando sugere o atroz. Sugados e repelidos, a nossa posição, a nossa distância só pode ser justa, mesmo se em risco de nos despenharmos pela escada.
   Na voracidade do tempo que passa estes quadros proporciona-nos alguma quietação, alguma estabilidade interior pelo que em nós projectam, pelo fascínio que sobre nós exercem, e a pintura torna-se ecrã em que se projecta um filme. Na quietude suscitada, bruscamente suspensos sobre o vazio, sobre o nada, nele nos revemos e reconhecemos, coloridos ontem, hoje cinzas frias. Cinzas e negros da solidão interior de um passado colorido. Negro em que a luz se resolve. Hopper e Rothko? Com certeza e entre outros, mas sobre eles a inspiração lucilante do pintor, que sobre o seu trabalho paciente, inebriante, a partir do aquém permite vislumbres entrevistos, interditos do além. Um além que é exterior mas também interior.
    Luís Noronha da Costa é o pintor português, também cineasta e arquitecto, que acompanho há mais tempo, desde a minha juventude, e tenho pela sua obra um apreço muito especial. Até ao próximo dia 25 de Fevereiro está na Galeria São Mamede, em Lisboa, uma exposição sua, intitulada "Na imensa solidão do meu passado - Obras de 1970 aos nossos dias". É todo o passado dele, e o meu, na sua imensa solidão em que a minha se revê. Em especial naqueles dois "pores-do-sol americanos", que não conhecia.

Uma experiência visual

       Também patente no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian até 18 de Maio, a exposição "Narrativa Interior", do fotógrafo e artista visual João Tabarra cobre 20 anos de produção artística e permite a quem não o conheça de trabalhos anteriores o contacto com uma obra apreciável que do inusitado dos motivos e do tratamento exuberante da cor tira o maior proveito.
      Num país em que alguns dos melhores fotógrafos, como Jorge Molder e Paulo Nozolino, trabalham com grande pertinência e coerência, rigor e inventiva a preto e branco, João Tabarra recorre à cor de um modo não-naturalista, ou que supera o realismo que possa integrar rumo a uma visão transfigurada que é também e sobretudo uma visão interior. Longe do simples realismo, ele integra nas suas fotografias motivos realistas mas também uma ideia de encenação a que, como fotógrafo, confere um excesso de significação através do uso de processos que sublimam o realismo no confronto de motivos e de sentidos ou no seu aprofundamento. 
                     João Tabarra           
     Saturadas de cor, pormenorizadamente trabalhadas e imbuídas de contradições internas que trata de fazer sobressair, as fotografias de João Tabarra, acompanhadas de filmes e vídeos projectados, dão fielmente conta de um talento visual muito rico e complexo que interessa conhecer e acompanhar no seu ilusionismo ostensivo mas inteiramente dominado, com o qual o artista se pensa a si próprio, pensa o mundo e nele nos pensa. Reunir em imagens fotográficas o exterior e o interior como João Tabarra faz é digno de apreço, tanto mais quanto nas suas fotografias ele exprime e deixa impresso um ponto de vista definido como criador, que esta exposição permite identificar como agudamente crítico.
      A diversidade de propostas presente na actual fotografia portuguesa é uma prova de vitalidade que aqui devo registar e elogiar. Ao lado da reportagem e do documental, a fotografia artística mostra-se com João Tabarra capaz de dar conta de um vasto espectro de motivos, de emoções e de questões visualmente representáveis, que além de serem suas nos dizem também respeito a todos nós. E a transição para a imagem em movimento é, nesta exposição, muito significativa e está muito bem utilizada.
      O fotógrafo mostra claramente em "Narrativa Interior" como uma técnica mecânica, realista de captura da realidade pode ser utilizada de uma forma que transcende o realismo, interpretando e fazendo falar a própria realidade de uma maneira criativa, o que é muito importante por demonstrar que também na fotografia, mesmo na fotografia a cores está implicada a subjectividade e envolvida a criação.

Uma antológica

     Intitula-se "O Peso do Paraíso"/"The Weight of Paradise" a primeira exposição antológica de Rui Chafes, que se encontra no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian até ao dia 18 do próximo mês de Maio e abrange 20 anos da sua criação. Por ela podemos ter uma panorâmica muito significativa da obra de um dos mais importantes artistas portugueses contemporâneos.
    Rui Chafes é um escultor que trabalha com o ferro, e nessa forma de criação a margem deixada ao improviso é, simultaneamente, escassa e maior. Seguindo uma intuição dominada pela consciência do material específico e trabalhoso, as formas que esculpe afastam-se de uma representação simplesmente figurativa, rumo a uma idealizada abstracção de sentido mesmo quando são reconhecíveis.   
      As esculturas desta exposição antológica ocupam o espaço central do CAM mas também o espaço adjacente dos jardins, numa proliferação que muito apropriadamente dá conta da exuberância expansiva do talento do escultor. Além das peças escultóricas, a mostra inclui alguns desenhos, uma instalação sonora, duas fotografias de Paulo Nozolino, um fotógrafo de quem o artista está próximo.  
                                           
     As obras de Chafes dão-nos a noção perfeita de que ele cria alguma coisa a partir do informe, do nada, alguma coisa que fala de si próprio e do mundo à sua volta em termos que sugerem uma empolgante vitalidade rumo a horizontes desconhecidos. A vida tal como criada com o fogo no ferro das esculturas deste artista está simultaneamente contida nas formas de cada peça e no exceder delas que cada uma contém e propõe, ora numa sugestão de multiplicidade de linhas, de formas apontadas ao alto, ora em volumes cheios e curvilíneos, por vezes meras estruturas suspensas apontadas em direcção a nós, ora jogando com o trivial e cortando-nos o caminho, mas sempre suscitando a curiosidade e a atenção do visitante no seu sentido perturbador.            
      Autor de diversos livros em que reflecte sobre a sua arte e as respectivas fontes de inspiração e elabora um pensamento pessoal que permite entendê-lo melhor como escultor culto, com múltiplas mas consistentes influências criadoras, e contribui para fazer dele um artista de culto, Rui Chafes, que é também autor de uma tradução portuguesa dos "Fragmentos", de Novalis (Lisboa, Assírio & Alvim, 1992) e já teve uma exposição em Serralves com Pedro Costa, "Fora!/Out!" (2007), é um artista de referência da arte contemporânea, influenciado pelo minimalismo e pela arte conceptual mas também devedor de Richard Serra e Joseph Beuys, que a todos interessa conhecer. Logo à entrada, "Leçons de Ténèbres" (2006) constitui uma excelente introdução a um universo inquieto, em movimento, pessoal e único, que, eminentemente partilhável, nos desafia, uma introdução muito significativa a uma exposição justamente intitulada "O Peso do Paraíso".

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Resistir sempre

   Robert Redford é uma personalidade importante do cinema americano por uma longa e relevante carreira como actor, primeiro, como realizador, depois, mas tornou-se especialmente notável desde 1981 devido ao Sundance Institute (www.sundance.org/), que fundou e a que preside, dedicado ao apoio ao cinema e ao teatro, e ao Sundance Film Festival (www.sundance.org/festival/), que anualmente acolhe o melhor da produção ciematográfica independente, que assim decisivamente promove.
                                                       
    Lembro-me dele desde os seus primeiros filmes relevantes, dirigidos por Robert Mulligan, Arthur Penn, depois em "Descalços no Parque"/"Barefoot in the Park", de Gene Sacks (1967) e com Jane Fonda, "Dois Homens e Um Destino"/"Butch Cassidy and the Sundance Kid", o filme que o catapultou para a fama, de George Roy Hill (1969) e com Paul Newman, outro actor carismático, "O Vale do Fugitivo"/"Tell Them Willie Boy Is Here", de Abraham Polonsky (1969), nos anos 70 e 80 sobretudo em filmes de Sidney Pollack - em 1973  George Roy Hill voltou a juntá-lo a Paul Newman em "A Golpada"/"The Sting". Quando se tornou realizador, com "Gente Vulgar"/"Ordinary People" (1980), fê-lo em grande, abrindo uma obra importante que tem continuado - entre  os seus mais recentes filmes apreciei sobretudo "A Conspiradora"/"The Conspirator" (2010). Mas partir de 1981, para o bem ou para o mal, sobretudo para o bem, Sundance é ele.
  Pois é este homem poeminente no cinema americano mas que permanece modesto que assume o risco de ser o único intérprete de "Quando Tudo Está Perdido"/"All Is Lost", segunda longa-metragem de J. C. Chandor (2013), em que sozinha, sem encontrar qualquer outro ser humano a sua personagem deriva pelo Oceano Pacífico ao longo de oito anos. Depois do prólogo na actualidade, quando se recua no tempo não lhe ouvimos senão muito escassas palavras, imprecações como "fuck", "God", quando, depois de ter abandonado o seu pequeno barco em favor de um salva-vidas de borracha, navios passam por ele sem o verem.    
                    picturehouse movie podcast all is lost itunes
     De resto, o filme são os seus movimentos quotidianos, para se preservar a si próprio e manter a cabeça lúcida, a funcionar, na sua radical solidão e para lhe resistir, por momentos para tentar o contacto com alguém distante que ignora que ele sequer exista. Longe de um autómato, contudo, este homem literalmente à deriva, que tenta orientar-se com um sextante, ao cumprir os seus rituais quotidianos assume a espessura humana que o actor, sem malabarismos de interpretação com a sua simples presença lhe dá. Ele é um homem só, perdido no imenso oceano, que sozinho resiste e subsiste, e como tal o vemos e nele nos reconhecemos.
     Claro que este é um filme que tem antecedentes, nomeadamente "O Velho e o Mar"/"The Old Man and the Sea", de John Sturges (1958) e com Spencer Tracy, baseado em novela de Ernest Hemingway, mas aí ainda havia um "inimigo", um peixe gigante que permitia remeter para o mítico "Moby Dick", de Herman Melville, que John Huston levou ao cinema em 1956. Mas mesmo em "A Ilha Nua"/"Hadaka no shima", do japonês Kaneto Shindo (1960), movíamo-nos, sem palavras embora, sobre um terreno sólido, reconhecível. Apesar da luta com o tremendo temporal e de uma breve alusão de pesca, em "Quando Tudo Está Perdido" temos o sentimento cósmico do vazio, que o cineasta transmite muito bem com uma planificação muito segura na proximidade da personagem, na omnipresença do mar, na subtilmente sugerida ausência de um outro, nomeadamente de uma mulher, na distância do horizonte e do céu. 
                  
     Talvez que este filme surja, nos nossos dias, como um objecto insólito, mas nele muito mais e melhor me reconheço do que na esmagadora maioria da produção americana actual. Será talvez uma questão de memória, de passado, em que o filme pela sua parte nunca cai - nunca abandona o presente no mar em favor de um cómodo flash-back para o passado anterior da personagem, o que lhe fica muito bem. Correndo todos os riscos do catálogo e mais alguns, J. C. Chandor, argumentista e realizador, prende-nos com a sua personagem e o seu actor neste filme - cuja personagem, na sua solidão resistente me faz lembrar o Tenente Fontaine/François Leterrier de "Fugiu um Condenado à Morte"/"Un condamné à mort s'est échappé", de Robert Bresson (1956) -, com o qual se reafirma como um novo cineasta muito promissor (sobre ele ver "Glacial", 7 de Fevereiro de 2013).

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Estudos de referência

      O melhor da literatura portuguesa está de parabéns com o lançamento de estudos de referência sobre Luís de Camões e Fernando Pessoa, nada menos que os dois melhores poetas portugueses de sempre, o que nem sequer considero discutível
        No final do ano passado saiu um novo livro de José Gil sobre o segundo, "Cansaço, Tédio, Desassossego" (Lisboa, Relógio D'Água, 2013), em que o conhecido filósofo e escritor procede a uma nova aproximação do poeta dos heterónimos exactamente a propósito desta questão: a heteronímia pessoana. Profundo conhecedor da obra de Fernando Pessoa, sobre o qual este é o seu quarto livro, o autor utiliza o instrumental teórico de Gilles Deleuze, que fez seu há muito tempo (1), para uma reflexão erudita e muito profícua, que marcará, por certo, um novo ponto de referência sobre a magna questão, pessoalmente pessoana e paradoxal. Que identifique Alberto Caeiro na sua origem é muito importante e está muito bem argumentado.
                         
      Também no final de 2013 surgiu a nova edição, revista e aumentada, de "Camões e a Viagem Iniciática", de Helder Macedo (Lisboa, Abysmo, 2013). O autor, grande escritor em ficção, poesia e ensaio, é um grande especialista em literatura portuguesa (2) e em estudos camonianos - a primeira edição deste livro data de 1980, na Moraes Editores, e estava há muito esgotada. Para além de permitir o contacto com os estudos que constavam da primeira edição, sobre a Épica e a Lírica, agora revistos, o novo contributo que esta nova edição traz aos estudos camonianos diz respeito ao Testemunho das Cartas que, de modo muito clarividente demonstra a modernidade não só da escrita mas da vida do poeta, e que essa vida também interessa.
     Frequentador assíduo de ambos os poetas, Camões e Pessoa, e de ambos estes autores, José Gil e Helder Macedo, posso deste modo verificar que os meus gostos são partilhados e que, se calhar, há mais gente além de mim interessada no melhor da poesia portuguesa, que não significa que tenha sido o melhor da vida para os dois poetas - pelo contrário. Se alguma coisa de essencial existe na identidade portuguesa ela passa por estes dois grandes poetas - e por mais gente, certamente, mesmo na poesia e no cinema. Por mim, encontro no poeta dos heterónimos o desassossego e a melancolia (3), enquanto apenas no poeta quinhentista encontro a regeneração e o alerta que me mantém vigilante.
                    Fernando Pessoa
       Portanto, back to the basics, voltem a ler Fernando Pessoa e os seus heterónimos, Luís de Camões em todos os tipos de poesia que praticou. Isso é o essencial. Para melhor os entenderem já sabem que podem a partir de agora contar com mais estes dois estudos profundamente iluminadores, que nos dizem quem eles foram verdadeiramente e como criaram. Para melhor compreedermos aquilo que nos deixaram. Escrito. E para melhor nos compreendermos a nós próprios.

Nota
(1) Cf. especialmente "O Imperceptível Devir da Imanência - Sobre a Filosofia de Deleuze", (Lisboa, Relógio D'Água, 2008). Mas cf. também "Linhas de Estilo - Estética e Ontologia em Gilles Deleuze", de Ana Godinho, com Prefácio de José Gil (Lisboa, Relógio d'Água, 2007).
(2) De que destaco "Nós, uma leitura de Cesário Verde" (Lisboa, Plátano Editora,1975, 1978; Lisboa, Editorial Presença, 1999 para a 4ª edição), "Do significado Oculto da Menina e Moça" (Lisboa, Moraes Editores,1977; Lisboa, Guimarães Editores, 1999 para a 2ª edição) e "Viagens do Olhar: Retrospecção, Visão e Profecia no Renascimento Português", co-Fernando Gil (Porto, Campo das Letras, 1998).
(3) Chamo a atenção para "Anatomia da Melancolia", do inglês Robert Burton (1577-1640), que recolhe fragmentos de uma obra de referência que teve a sua primeira publicação em 1621, há quase 400 anos (Lisboa, Quetzal, 2014). Com tradução exemplar de Salvato Telles de Menezes, é mais uma iniciativa louvável da editora portuguesa de Claudio Magris, que me faz lembrar o "Leal Conselheiro" de Dom Duarte, membro da ínclita geração filha de uma grande mãe inglesa, Dona Filipa de Lencastre, e segundo rei da segunda dinastia portuguesa, fundada por seu pai, Dom João I (Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1999).

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Um cineasta lendário

    Só agora consegui ver "A Princesa de Montpensier"/"La Princesse de Montpensier", de Bertrand Tavernier (2010), que significa mais um passo muito seguro e apreciável numa obra que se conta entre as mais importantes do cinema francês dos últimos 40 anos e que alimentou a sua lenda.
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     Tavernier começou no cinema em 1964, na longa-metragem em 1974 sob a égide de Georges Simenon com "O Relojoeiro"/"L'horloger de Saint-Paul", e a sua obra ganhou um novo fôlego com o documentário "Mississipi Blues", co-realizado com Robert Parrish (1983), "Um Domingo no Campo"/"Un dimanche à la campagne" (1984) e "À Volta da Meia-Noite"/"Round Midnight" (1986). Grande conhecedor e apreciador do cinema americano, que estudou apaixonadamente e sobre o qual escreveu extensivamente, ele é tudo menos um ingénuo no cinema, embora nunca tenha tido nada que ver com a "nouvelle vague" francesa, em que o cineasta de que se poderia considerar inicialmente mais próximo era Claude Chabrol.
     Partindo de uma novela de Madame de La Fayette, em cujo "La Pricesse de Clèves" Manoel de Oliveira se inspirou para "A Carta"/"La lettre" (1999), ele situa este seu filme no século XVI, na época do conflito entre católicos e huguenotes, sob o reinado de Carlos IX, uma época de grande ressonância cinematográfica pelo menos desde "Intolerância"/"Intolerance", de David W. Griffith (1916), e ascende ao seu melhor nível graças a um argumento de que é co-autor com Jean Cosmos e François-Olivier Rousseau mas sobretudo graças a uma construção cinematográfica que, naquela relação conflituosa que tem a Princesa Marie de Montpensier/Mélanie Thierry como centro, sistematicamente deixa fora do plano e da sequência, e portanto fora de campo, alguém que a essa mesma relação multipolar é essencial.
                     The Princess Of Montpensier (La Princesse De Montpensier)
     François de Chabannes/Lambert Wilson é a personagem que nos introduz no filme e quem, embora também nele envolvido, relativamente àquele conflito permite alguma distância, ele que foi o mestre de armas do Príncipe Philippe de  Montpensier/Grégoire Leprince-Ringuet e se torna o mestre de saber da Princesa, que com ele foi forçada a casar. De seu mestre, mantendo a distância conveniente torna-se seu protector, e assim assume com ela uma conivência que o vai levar a permitir-lhe encontrar-se com Henri de Guise/Gaspard Ulliel, o seu declarado apaixonado desde muito cedo, à revelia do marido.
      A época, incluindo as batalhas, está muito bem reconstituída, o que, tratando-se de um filme histórico, é importante, mas sobretudo o cineasta tem uma mise en scène clássica admirável, cujo equilíbrio faz o filme passar por momentos de extraordinária inspiração visual sem neles se deter, deixando-nos abismados perante o seu domínio formal. Sem qualquer tipo de tique moderno ou modernista, embora integrando figuras modernas do cinema, ele assume de passagem referências clássicas, nomeadamente do cinema americano, sem o exibir como tal, incidentalmente e como parte de um todo harmónico, que como tal se apresenta em si mesmo e em cada uma das suas partes.
                   
    À maneira de Jean Renoir, do que não podia deixar de estar consciente, Bertrand Tavernier faz-nos compreender que naquele conflito cada um tem as suas próprias razões, e é isso que é trágico, pelo que ousarei dizer que este filme, com os seus palácios, as suas caçadas longínquas e o seu herói-testemunha que morre no fim, é a sua "A Regra do Jogo"/"La régle du jeu" (1939). O que significa que a história do cinema francês é a mesma para todos.
   Com música de Philippe Sarde, direcção de fotografia de Bruno de Keyzer e actores superlativos, "A Princesa de Montpensier" é um filme perfeito, extremamente actual, que talvez não tenha suscitado a atenção que merece o seu assumido e superior classicismo, um filme que deixa transparecer, de forma clara, o carácter emotivo de todas as suas personagens e de todo o seu conflito, com o qual o seu autor confirma o seu lugar como lenda do cinema francês, em cuja obra este filme rima com "Vamos a isto que é Festa"/"Que la fête commence..." (1975).

Implacável

    Depois de "Melancolia"/"Melancholia" (2011), que me tinha desiludido na sua grandiloquência apocalíptica, Lars von Trier faz um regresso em grande com "Ninfomaníaca - Vol. 1 e Vol. 2"/"Nymphomaniac: Vol. I & Vol.II" (2013), um filme em duas partes que constituem, cada uma delas, um filme diferente. 
                                                             
   "Nimphomaniaca - Vol. 1" centra-se na narração por Joe/Charlotte Gainsbourg da sua vida sexual agitada desde idade precoce a Seligman/Stellan Skarsgâr, alguém que a recolheu depois de um "acidente" violento, que não é mostrado, de que ela foi vítima. Essa vida sexual, tal como o próprio filme, está dividida capítulos, cada um deles com um título que corresponde a fases e personagens diferentes. Este esquema funciona bem, com os regressos ao presente da narrativa para introdução de cada capítulo e para comentários.
   Não havendo nada de verdadeiramente surpreendente na narrativa de Joe, excepto a parte relativa ao final da vida do seu pai, apropriadamente dada em preto e branco que contrasta com a cor suja dos outros capítulos, vai ser no final que o seu auditor introduz os números de Fibonacci, a "divina proporção" e Bach, o que sugere um contraste sagrado-profano muito curioso sem que nele o cineasta se demore excessivamente, embora a ele regresse em especial no início do Vol. 2 - um contraste que acaba, porém, por se revelar uma pista inconsequente.
                     ninfo11
     Alguma coisa no tom clínico e frio desta primeira parte faz-me recordar os filmes iniciais de Lars von Trier, com uma secura que contradiz o aparente calor da narrativa de Joe e a faz passar por um caso, mais um caso clínico - o interlocutor de Joe faz o papel do psicanalista. Além disso, as diferentes actrizes que interpretam Joe mais nova dão um carácter mais livre e sugestivo à personagem e ao filme. O mérito do cineasta, argumentista e realizador, é aqui indiscutível, mesmo se aquilo que encena é, em primeiro lugar, ele próprio, com as suas obsessões pessoais (sobre Lars von Trier, ver "Uma luz nas trevas", 24 de Março de 2012).                 
    "Ninfomaníaca - Vol. 2" é um filme melhor porque mais difícil e decisivo, pois enfrenta o impasse da vida sexual de Joe em todas as consequências que o acompanham.  Dividido em menos capítulos que o anterior, embora cada um deles continue a ter um título, parte de uma "visão" dela e leva-nos, já com a própria Charlotte Gainsbourg como Joe, primeiro à sua fase de "perversão" e de abandono do lar, que replica o abandono da família por um dos seus pares no primeiro filme, depois à sua recusa em declarar-se sex-addict, a seguir a uma sua "integração profissional" e finalmente à escolha e instrução de uma sua sucessora. 
                      
      Ora aqui Lars von Trier abandona o tom clínico do primeiro filme e assume decididamente com Joe a crítica radical da sociedade, num tom convincente que ela, depois de ter regressado ao ponto de partida onde fora encontrada, já com o que lhe acontecera presente, leva até ao fim. Uma personagem que não procura o amor, apenas o sexo e o prazer sexual, de que faz o seu objectivo, sem escape, sem culpa, desculpa ou tábua de salvação - ambivalente, a árvore seca e nua surge como mero pretexto interior para quem, no seu negrume obsessivo que replica o do cineasta, não procura uma saída, que não se acredita que tenha. 
     Desse modo, integrando bem as observações que se pretendem esclarecedoras de Seligman e com uma música que mistura o clássico e o moderno, o filme assume uma violência sem contemplações para ninguém, nem para Joe nem para o seu paciente e tranquilizador auditor - ali não há redenção, humanismo salvador, em que Joe como o cineasta não acredita e Seligman, com tudo o que de conformista representa, não merece.
     Sem prejuízo dos outros actores, mesmo das actrizes que interpretam a protagonista quando mais nova, devo dizer que Charlotte Gainsboroug está extraordinária como Joe, um papel difícil e ingrato que ela agarra de forma brilhante e a confirma como uma das melhores actrizes europeias da actualidade, sempre de uma grande coragem e notável generosidade como mulher. 
                    
      Quanto a Lars von Trier, que tem uma obra muito interessante, desigual mas coerente atrás de si, ele redime-se aqui de fragilidades anteriores e oferece-nos o melhor do seu talento, com uma personagem extrema que, além de se expor detida, despudoradamente na narração da sua própria vida, origina a revelação da verdade dos que a rodeiam, levando o tom ferozmente crítico do filme até ao fim, à semelhança do que tanto Thomas Vinterberg, outro subscritor do Dogma 95, como ele próprio vêm fazendo. 
     Podem acusá-lo de provocador, não de complacente, e este filme, com as suas alusões "politicamente incorrectas", usa o registo pornográfico de forma crítica, radicalmente crítica, o que, não haja confusões, deve ser levado a seu favor num mundo permissivo mas instalado no seu modo de vida conformista, nos seus compromissos, interditos, recalcamentos e frustrações, que ele, usando o cinema e a sua memória (as alusões ao seu passado, remoto e recente), com toda a legitimidade e com brio cinematográfico desafia. A inscrição inicial de ambos os filmes, em vez de deles o afastar mais os torna reconhecivelmente seus.

Génio de Chaplin

   Quando Charles Chaplin nasceu, em 16 de Abril de 1889, ainda o cinematógrafo não tinha sido inventado. Com uma infância pobre e atribulada na sua Londres natal, trabalhou em espectáculos de variedades e depois como actor de teatro, qualidade em que embarcou para a América. O primeiro filme em que se reconhece a sua presença data de 1914, pelo que passam este ano 100 anos sobre o início da sua actividade cinematográfica.
   Começo assim esta breve referência ao maior nome da história do cinema, aquele que teve o génio de criar a grande figura universal, a figura maior que o cinema conheceu até hoje. A trocar olhares e sorrisos com as mulheres, a bater-se com os rivais e perseguidores, a tentar reagir a imprevistos, a escapulir-se ou a avançar destemido, ele criou com Charlot uma figura própria do seu tempo e do nosso, que com esse mesmo tempo, as suas personagens e situações joga para se exceder em manha, em astúcia que vencem as suas atribulações, os seus adversários e os seus azares. O trabalho pelo qual ele se impos e ficou conhecido tem tudo a ver com o próprio cinema.
                    Charles Chaplin classico
     A personagem de Charlot, o vagabundo, que ele criou e recriou de filme para filme durante os anos 10 e 20 do Século XX, é a única figura cinematográfica verdadeiramente universal que o cinema até hoje conheceu. Nem ingénuo nem inocente, ele soube construir-se a partir da humana condição ao nível de uma personagem shakespeariana mas trocada em miúdos traços quotidianos do século XX: humilde, desastrada, feliz e infeliz, corajosa até certo ponto, temerosa mas de um temor vencível - e só nessa medida utópica.
    Ficou conhecido, não por um estilo particular de mise en scène ou de montagem, não por aspectos formais do filme mas por aquilo que para ele e nele criou por si próprio, com o seu próprio corpo, com a sua própria gestualidade e mímica inconfundível de que o traje e o andar faziam parte e em que a vivacidade do olhar, atrevido mas mutável (sentimental, brejeiro, assustado, hesitante, decidido, espantado, comovido, ensimesmado), era fundamental, sempre em réplica com os seus actores em que fazia jogar os contrastes físicos, mas no limite em luta consigo próprio, com os limites do seu próprio corpo, e por isso mesmo imitável, replicável. Tornado um fenómeno de popularidade que deu volta ao mundo, a sua personagem não foi um herói típico do cinema, antes um anti-herói com todos os traços que identificam os pobres, os desgraçados e desfavorecidos como ele foi na sua infância e adolescência, sem rejeitar as personificações nobres e poderosas, mas conferindo-lhes um tom de distância, de caricatura.
                   Charlie Chaplin and Edna Purviance                 
     Pobre diabo apanhado, como cada um de nós, nos momentos e aspectos mais contraditórios da vida, ele traçou o seu percurso feito de humanidade ingénua e inocente como um verdadeiro aristocrata  do cinema, sem se confundir ou misturar com a vulgaridade que caracterizou o cinema desde os seus inícios, embora trabalhando sobre ela e a partir dela (1). Distinguindo-se pelo ser como os outros, pelo ser comum no que de mais humano ele tem a partir de uma observação atenta do mundo, ele foi uma grande figura da nossa pequenês, da nossa reduzida dimensão robusta, que trabalhou e elevou, pois o seu vagabundo errante move-se na incerteza da nossa própria humana condição, em que não existem certezas, apenas caminhos, percursos.
    Atrás das mulheres, que o fascinavam, perseguido por rivais, abraçando causas ou abraçado por elas, em luta com as máquinas, sempre desastrado nos desafios que aceitava, sempre em perda compensada nas situações em que se colocava, em perda recuperava, sempre a partir de baixo, para chegar a situações paradoxais de que saía para a linha do horizonte, para o infinito. Sempre vencido, sempre vencedor.         
                          
    Tenho para mim que Buster Keaton foi um cineasta superior a Chaplin, mais completo, arrojado e subtil na construção do filme, mas Chaplin atingiu aquele ponto do génio em que, mesmo para além do cinema, nele nos reconhecemos como seres vivos que se mexem no meio do inesperado, que se volta contra eles e lhes cabe voltar em seu favor. Chaplin não foi apenas um grande cineasta, com a sua câmara observadora à distância justa perante a qual tudo decorria, foi o criador de uma personagem viva que ainda hoje nos comove e enobrece, nos perpetua e sobrevive ao falar, no tempo do cinema mudo, com gestos, olhares e acções em situações precisas (2).
   Autor completo dos seus filmes, incluindo a música, começou com filmes curtos e foi aumentando a sua duração ainda antes da chegada do sonoro, ao qual, como se sabe, resistiu muito. Comparativamente, há um génio chaplinesco intuitivo e espontâneo, típico dos seus inícios em que se situa talvez o seu melhor, depurado nos filmes mudos mais longos e já transformado nos sonoros, mais tomados pelo sentimentalismo e o humanismo do que pela espontaneidade, com os quais culminou a sua obra e a que ainda é muito associado por aqueles que não conhecem ou subestimam os seus filmes iniciais. O único filme que realizou sem ter interpretado, "Opinião Pública"/"A Woman of Paris" (1923), é um dos melhores filmes de todo o cinema mudo e de toda a história do cinema. 
                      Chaplin The Gold Rush                  
  Ver ainda hoje um filme ou uma série de filmes seus continua a ser um enorme prazer e uma forma livre de nos conhecermos melhor e conhecermos melhor o mundo em que vivemos. Não sei de quem tenha feito mais no cinema e pelo cinema, e cujos filmes mereçam maior divulgação. Ele foi superior ao cinema, que elevou ao seu próprio nível, e assim exaltou, glorificou. Se quisermos encontrar-nos, descobrir-nos, mesmo que não o queiramos estamos ali. 
   É imperioso que a presente efeméride seja marcada em todo o mundo pelo regresso dos filmes de Charles Chaplin ao convívio de todos, de todas as idades, para que ele continue a ser alvo do reconhecimento que merece e a ajudar-nos a todos a sermos um pouco melhores, a vivermos um pouco melhor. Um reconhecimento que deve abranger os estudos que merece que prossigam sobre o seu génio pessoal e a sua obra (3).                                  
                        
Nota
(1) Por isso mesmo criou em 1919, com David W. Griffith, Mary Pickford e Douglas Fairbanks, a United Artists, como garantia de produção independente.
(2) E foi possível vê-los juntos no final de "Luzes da Ribalta"/"Limelight" (1953) de Chaplin.
(3) Na bibliografia recente sobre Charles Chaplin disponível em português devo destacar "Chaplin - Os Primeiros Anos", de Stephen Weissman (Lisboa, Bizâncio, 2012), que proporciona uma abordagem biográfica e psicanalítica, até agora inédita, do grande cineasta-actor.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Um grande actor

   Chocado com a notícia da morte inesperada do actor americano Philip Seymour Hoffman (1967-2014), quero aqui prestar-lhe a minha homenagem como grande, muito grande actor que foi e por isso admirei nomeadamente em filmes de Paul Thomas Anderson e Sidney Lumet, Mike Nichols e George Clooney.
     Ele teve a estatura de Marlon Brando ou Paul Newman, tirando de um corpo comum e de um rosto expressivo o génio da criação de personagens complexas que, devido à sua interpretação, tornavam mais sérios, mais dignos de atenção e apreço os filmes em que participava. Não foi apenas uma estrela no sentido hollywoodiano do termo, foi um grande actor em sentido universal. 
                    Philip Seymore Hoffman Hunger Games Catching Fire Philip Seymour Hoffman Confirmed for Hunger Games: Catching Fire [Updated]
    O seu desaparecimento precoce, com 46 anos, empobrece o melhor do cinema americano, que amputa de uma personalidade marcada e marcante que não aceitava qualquer papel, antes sabia escolher os filmes em que participava. Se há uma política, e uma poética dos actores (ver "Poética dos actores", 22 de Junho de 2013), ele fez parte dos meus favoritos e foi dos mais intransigentes e inspirados criadores de personagens difíceis, que tornava memoráveis, numa cinematografia que, no seu melhor, muito se apoia nos actores.
    Passa a haver no cinema americano, não só uma época antes, como uma época depois Philip Seymour Hoffman, pois se há personalidades insubstituíveis no cinema ele foi uma delas. Não conheço o único filme que realizou, "Jack Goes Boating" (2010), mas gostaria de o conhecer. Também actor de teatro, com o seu talento ele deixou no cinema americano do seu tempo uma marca muito forte, que permanecerá como presença nos seus filmes e como "caso de estudo".