“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

segunda-feira, 29 de junho de 2015

Original e surpreendente

      Com o último filme do sueco Roy Andersson, "Um Pombo Pousou Num Ramo a Reflectir na Existência"/"En duva satt pa en gren och funderade pa tillvaron" (2014), Leão de Ouro do Festival de Veneza do ano passado, foi-nos possível assistir aos anteriores filme da denominada "trilogia dos vivos", "Canções do Segundo Andar"/"Sanger fran andra vaningen" (2000) e "Tu, que Vives"/"Du levande" (2007), e desse modo ficar a perceber o significado e o alcance destas três obras, invulgares, originais e surpreendentes.
                  "canções do segundo andar" - um personagem entra no bar e fala "não é fácil ser humano". A garçonete concorda. <BR> <BR> <BR> <BR> <BR>direção: Roy Anderson <BR>um pedaço: <A HREF="http://www.youtube.com/watch?v=j9mUx4EgLEg" TARGET=_top>http://www.youtube.com/watch?v=j9mUx4EgLEg</A> - Fotolog
      Começo por esclarecer que Roy Andersson, cujos filmes até agora desconhecia, dedicou-se ao filme publicitário depois do mau acolhimento que tiveram os seus primeiros filmes de ficção, nos anos 70, e só pensou em completar uma trilogia quando trabalhava na preparação do seu último filme. E devo assinalar que, desde o primeiro, os filmes desta trilogia têm como traços marcantes a construção fragmentária, apenas dentro de certos limites minimizada no último, e a adopção de planos fixos e longos com profundidade de campo.
    Se a construção fragmentária permite que cada filme funcione como um caderno de apontamentos, soltos, de que se terá que tirar o sentido passo a passo e resolver só no final, a construção narrativa guia-se por situações grotescas, no limite do absurdo, que vivem personagens com as quais é escasso o contacto que nos é proporcionado - dois ou três planos, algumas nem isso.
                   «Tu, que Vives» (Foto Divulgação Alambique)
     Contudo, é na construção do plano, de cada plano, frequentemente sem palavras ou então com conversas banais em situações insólitas, que surge o que de mais radical caracteriza a proposta do cineasta nesta trilogia. De facto, pela distribuição dos corpos nesse espaço, que inclui recortes dentro do espaço (portas, janelas, espelhos) pelos quais se tornam visíveis aspectos inesperados e por vezes contraditórios, passa a clara visibildade do todo que força a concentração da atenção no que acontece a cada um  - e estão quase sempre a acontecer-lhes coisas, quotidianas, banais, entediantes, absurdas: engarrafamentos gigantes, negócios que não funcionaram, execuções inexplicáveis no primeiro, que parte de uma citação do peruano César Vallejo; uma pena capital contada pelo condenado depois de cumprida, um casamento em casa rolante, a confissão de admiração de uma jovem fã por um jovem músico no segundo, em que surge um lado mais onírico; uma aula de flamenco, um rei do século XVIII que entra num bar antes e depois de um combate perdido, dois vendedores de divertimento mal sucedidos, uma criança que diz dizer um poema que dá o título ao filme no terceiro, em que há um maior acompanhamento dos dois vendedores e um enveredar pela história, apenas como exemplos.
      A isto deve acrescentar-se a representação, também ela original e surpreendente dos actores, em geral sem ênfase, quase inexpressiva, no limite da indiferença, que traz ao filme um outro limiar de significação e o arrasta, com o anteriormente referido, para os limites do pictórico com tons de surrealismo, embora os seus traços de absurdo e de falta de sentido tenham também inspiração beckettiana.
                    
     Explica Roy Andersson em entrevista à Positif nº 651, de Maio de 2015, ter grande admiração pelos pintores surrealistas e pelo próprio Luis Buñuel ("Viridiana", 1961), e que essa foi uma fonte de inspiração importante para o seu trabalho nestes filmes, feitos os dois primeiros em película, o último em suporte digital com excelente fotografia dos húngaros István Borbás (que tinha sido um dos responsáveis da fotografia do primeiro, com Jesper Klevenas e Robert Komarek) e Gergely Pálos. E há alguma coisa mais que caracteriza estes filmes, que é o esforço de evitar os contrastes de cores mais garridas rumo a um certo sentimento de indiferenciação, que corresponda à própria indiferença dos seres que não sabem o que fazer dela e da sua própria solidão. (Na mesma entrevista o cineasta confessa que a sua obra literária preferida, que terá mesmo em vão tentado levar ao cinema, é "Viagem ao Fim da Noite", de Céline.)
      Fora dos caminhos batidos do cinema corrente mesmo no seu país, o cineasta consegue aqui chamar a atenção de forma inteligente e continuado, arriscando o fastio de alguns, a indiferença de outros, a incompreensão também. Mas por esta trilogia passa uma tristeza, uma sensação de vazio e de absurdo que consegue agarrar-nos e mesmo comover-nos na sua própria existência fílmica. Semelhante a um filme de Jacques Tati mas sem humor, sem riso, antes com uma enorme tristeza não isenta de crueldade e ironia. Uma tristeza nórdica, sueca, suponho.

9 dias no Haiti

   "Meurtre à Pacot" é uma co-produção haitiano-franco-norueguesa realizada pelo haitiano Raoul Peck (2014), também produtor e co-argumentista com Pascal Bonitzer e Lyonel Trouillot, que passou a semana passada no Arte.
                     media
    Trata-se de um filme muito bom, centrado num casal que perdeu o filho na sequência do terramoto de 2010 no Haiti, perda de que a mulher/Joy Olasunmibo Ogunmakin culpa o marido/Alex Descas, e que aluga a sua casa ameaçada a um outro casal de ocasião, Alex/Thibault Vinçon e Adrémise-Jennifer/Lovely Kermonde Fifi, ele francês em ajuda humanitária, ela nativa do Sul do país. Com a casa em perigo e em recuperação, o primeiro casal recolhe-se a um anexo modesto, enquanto, cada um seguindo a sua vida, os caminhos dos quatro se cruzam sucessivamente em situações diferentes.
     Revelando ser cental naquela situação, depois de ter desinquietado a mulher e resistido às investidas do homem, Adrémise-Jennie, a mulher de dois nomes, ao pretender partir é esperada por um Alex armado e perseguida pelo homem até uma luta corpo a corpo na lama. Ao nono dia apenas chegam os outros três.
                      Meurtre à Pacot - © Raoul Peck
    O argumento é muito bom e também a realização de Raoul Peck, sempre atenta ao estado precário da casa e à fluidez das relações entre personagens acossadas pela situação e que se põem umas às outras em causa, personagens todas elas interpretadas por excelentes actores - Joy é Ayo, a conhecida cantora. Entre a natureza (o formigueiro, os cães) e o poder em estado de emergência. Claramente pasoliniano ("Teorema", 1968), o esquema narrativo funciona muito bem no huis-clos daquele espaço, transformado em arena de conflitos cruzados que combinam ressentimentos, anseios, decepções e o desejo indizível de fazer outra coisa sem cada um deles - mesmo Jennie que no final quer regressar ao seu nome primitivo - deixar de ser quem é.
     Pois é, eu não tenho as vossas prioridades e por isso continuo a ver o melhor do cinema no Arte - e então com a participação de Pascal Bonitzer (ver "O prazer do cinema, de 24 de Outubro de 2013) vejo sempre. Raoul Peck, que deixa aqui excelente impressão, tinha já feito um documentário sobre a reconstrução após o terramoto de 2010 no Haiti, "Assistance mortelle" (2013), obviamente também ele inédito em Portugal.

quinta-feira, 25 de junho de 2015

A hora e a vez

     Com o muito trabalho que tenho e o pouco tempo livre de que posso dispor (sem ócios do ofício), à semelhança do que me aconteceu com o sueco Henning Mankell (ver "Direcção: Suécia", de 28 de Fevereiro de 2013) foi o título do último livro editado em Portugal do cubano Leonardo Padura, "Hereges" (Porto Editora, 2015), que finalmente me moveu a ler este afamado escritor.
                  
    Céptico e crítico em relação a todas as crenças de qualquer natureza, herético eu próprio por isso, o título chamou-me para um escritor que há muito vem sido traduzido para português mas por cujos livros tenho passado sempre com o comentário interior de que "ainda não tenho tempo nem é prioritário". Pois agora vou ter de arranjá-lo (o tempo) para ler Padura todo como entretanto fiz com Mankell, pois trata-se efectivamente de um grande escritor de uma área que sempre me interessou: o romance policial.
    Mas claro que o cubano, como o sueco ou, por exemplo, a inglesa Ruth Rendell (1930-2015), que há pouco nos deixou, não é apenas um grande escritor de policiais, é um excelente escritor tout court, que tem alargado a temática dos seus mais recentes livros à história. E agora, à semelhança do que me acontece sempre com os grandes escritores que mais aprecio, vou tentar conhecer toda a sua obra, como ele merece. Espero ter ainda chegado a tempo de mais este grande escritor, um dos melhores da actualidade, no seu melhor superior ao melhor do catalão Manuel Vásquez Montalbán (1939-2003), que teve o mau gosto de nos deixar também ele há alguns anos.
                                       
     Como nos grandes excritores acontece, aliam-se em Leonardo Padura o conhecimento da vida e dos homens, o conhecimento do presente e da história, um grande desassombro e referências literárias muito boas, que com ele partilho - "Hereges" é um dos melhores romances que me foi dado ler nos últimos anos. Se quiserem saber de mim, nos próximos tempos estou em Havana - e nem vos digo nem vos conto quantos nem quais (grandes escritores) tenho neste momento em "lista de espera". Aos editores portugueses, sempre atrás do último prémio literário e do último best-seller, lembro que o irlandês John Banville enquanto Benjamin Black tem apenas um livro traduzido em português.

A travessia

     O canal cultural franco-alemão Arte transmitiu esta semana o excelente filme "La pirogue", do senegalês Moussa Touré (2012), que, baseado no romance de Abasse Ndione "Mbëkë mi", se centra na viagem de barco entre a costa ocidental de África e o Sul da Europa de um grupo de africanos clandestinos que procuram no Norte rico as condições de trabalho e subsistência que não encontram nos seus países de origem.  
     Decorrendo, depois de uma introdução e antes de um epílogo que estabelece a circularidade, na pequena embarcação em que decorre a verdadeira aventura que é uma travessia do mar numa piroga, o filme está muito bem resolvido em termos cinematográficos, com uma planificação que vai do plano médio ao grande plano e ao plano de pormenor, por forma a permitir-nos conhecer individualmente cada um dos passageiros, a que se junta uma clandestina, naquele espaço reduzido.                  
                      A scene from THE PIROGUE, directed by Moussa Touré.  Courtesy o
     Apreciei este "La pirogue" pela tensão dramática que estabelece e mantém durante a travessia, com a fatalidade de tentar saber qual será deles "o próximo a morrer" no meio dos conflitos e das tempestades que, num espaço tão pequeno e vulnerável, não tardam a estalar e ameaçar, sem prejuízo do prosseguimento da aventura.
       Um filme como este é muito importante por chamar a atenção para um problema muito grave e actual que, nas suas consequências mortais devastadoras, enche os noticiários televisivos sem nunca ser encarado na sua raiz, nas suas origens. É evidente que, enquanto os países da Africa sub-saariana viverem em situação de pobreza e privação endémica, os seus habitantes continuarão, legitimamente, a tentar encontrar melhores condições no Norte rico. E só quando os países desse Norte rico perceberem que têm de investir no desenvolvimento independente de África se poderá pôr verdadeiramente termo a uma situação, ela própria, atentatória dos direitos humanos e da democracia, fixando as populações locais.
                       Une scène du film franco-sénégalais de Moussa Toure, "La Pirogue".
      A pobreza de África é uma mistificação política e económica que, em termos neo-coloniais, os países ricos do Norte alimentam em cumplicidade com regimes não-democráticos, que da democracia exibem apenas a fachada necessária para poderem continuar a ser aceites na comunidade internacional. Quem sofre as privações continua a sofrê-las mesmo em países que são, em si mesmos, ricos, e continua a procurar vida, a qualquer custo, noutros lados, onde a sua integração vai levantar e agravar os problemas. E assim as desigualdades Norte/Sul mantêm-se e até se agravam.
      Grato ao Arte por mais este grande filme a que de outro modo não teria tido acesso e que continua acessível no site deste canal, www.arte.tv/fr, até 2 de Julho próximo. Se, como eu fiz, o virem em simultâneo com o "Requiem" de Verdi, disponível no mesmo site, verão como tudo faz mais sentido.

domingo, 21 de junho de 2015

A oriente um rio

  O documentário de Apichatpong Weerasethakul "Mekong Hotel" (2012), agora estreado entre nós, é mais um filme belíssimo e encantatório do grande cineasta tailandês.
  Nas margens do Mekong, o rio que passa na aldeia dele, são-nos no hotel dadas conversas comuns, diálogos do quotidiano, sobre conflitos próximos e distantes, sobre movimentos de populações semelhantes ao movimento do rio, entre uma mãe e uma filha, com um morto que regressa para fazer companhia e conversar. Será o ensaio de um filme, com mulheres e homens comuns aos quais podem acontecer coisas estranhas, como o cineasta nos habituou já.
                     Mekong Hotel
   Mas "Mekong Hotel", um filme relativamente curto, termina com um plano fixo  muito longo do rio que barcos a motor cruzam. Aí somos deixados como numa janela para o horizonte, belíssimo e com uma ponte ao fundo, para que nos cale melhor a estúpida banalidade de tudo.
   Claro que a câmara do cineasta está sempre, em exteriores e em interiores, há distância justa, e quando o plano fica vazio nós percebemos, continuamos sempre a perceber tudo. A cor é, como habitualmente nos filmes do cineasta, muito importante e de uma beleza estarrecedora.
                      Mekong Hotel
       Depois de "O Tio Boonmee que se Lembra das Suas Vidas Anteriores"/"Loong Boonmee raleuk chat" (2010) e de tudo o que o antecedeu, Apichatpong Weerasethakul, sempre como argumentista do seu próprio filme, enquanto esperamos a sua próxima longa-metragem de ficção continua a ser um grande cineasta de referência.

Negro sobre negro

     "Borgman: O Mal Intencionado"/"Borgman", de Alex van Warmerdam (2013), o primeiro filme que vejo deste cineasta holandês, é uma obra cinematográfica surpreendente e perturbadora de grande qualidade.
    Com os seus elementos narrativos muito bem lançados desde o início, a progressiva perturbação e inquietação que o protagonista, Camiel Borgman/Jan Bijvoet vai, com os seus cúmplices, estabelecendo entre aqueles que o acolhem como jardinairo, o casal abastado Marina/Hadewych Minis e Richard/Jeroen Perceval, perturbação e inquietação que são sem explicação outra que a identidade deles como vampiros, está muito bem dada em termos fílmicos
                   Borgman_5
      No desconhecimento do que está a acontecer verdadeiramente e de quem lhes invade a vida, o casal e os filhos, a nanny e o namorado desta, o médico, enfim todos são um a um arrastados para o fim inelutável que os espera, de que nada nem ninguém sabe e, por isso mesmo, os pode salvar.
      O negro estabelecido pelo filme tem intérpretes sempre justos e uma realização muito boa, seca mas expressiva, que transmite na perfeição o carácter terrível e inevitável da máquina posta a funcionar que se vai estabelecendo entre aquela gente comum na sua vida normal. Eles são abastados, os que os invadem são o quê?
                    Borgman
     Com tudo a funcionar no momento preciso da maneira exacta, como num mecanismo de precisão, "Borgman: O Mal Intencionado" é, sem ênfase narrativa nenhuma (o argumento é do próprio cineasta, que também aparece como actor no papel de Ludwig), um grande filme de terror subreptício provocado por um mal absoluto - a fotografia de Tom Erisman é excelente, a música de Vincent van Warmerdan é, ela também, justa e expressiva, a montagem de Job ter Burg perfeita.
     Tenham medo. Tenham todos muito medo. O mal pode vir por boas razões? A questão, liminarmente colocada  no cinema pelo expressionismo alemão (Friedrich W. Murnau, Fritz Lang, em especial), encontra  uma nova proposta de resposta neste perturbador e excelente filme de Alex van Warmerdam.
                    Borgman_4
       Nota: Sobre o Mal é neste momento imprescindível "A Filosofia e o Mal - Banalidade e Radicalidade do Mal de Hannah Arendt a Kant", de António Marques (Lisboa: Relógio d'Água, 2015).

domingo, 14 de junho de 2015

Agora nem de patins

     "Enquanto somos jovens"/"While We Are Young", de Noah Baumbach (2014), é mais um filme muito bom do cineasta novaiorquino, que se instala desde o seu início na relação entre os mais velhos e os mais novos com a citação de Henrik Ibsen, para se alargar depois sobre o assunto em pleno meio do documentário.
                   Adam Driver inspires Ben Stiller to foolishness and hat-wearing in the first While We’re Young trailer
      Situado em New York e a partir da cidade, o filme em momento nenhum abre mão do seu ponto de partida, entre o casal mais velho, Josh/Ben Stiller e Cornelia/Naomi Watts, e o casal mais novo, Jamie/Adam Driver e Darby/Amanda Seyfried, com o qual, sem saber porquê, literalmente o primeiro tropeçou. Com grandes actores a darem o seu melhor no registo justo, o cineasta acompanha a trajectória, que se revela ascendente, de Jamie e o impasse em que está Josh na sua meia-idade, incompreendido e ofuscado por ter quem diz admirar o seu trabalho e pede a sua colaboração
      Não é, pois, sem surpresa que Josh (e nós com ele) descobre a cilada em que, apoiando-se na geração anterior à sua (o pai de Cornelia), foi apanhado por Jamie, que literalmente o manietou, apesar do casal amigo da mesma idade que estabelece o contraponto possível e da incursão xamânica (inspirar, expirar). No final, nem de patins o protagonista consegue chegar a tempo de expor o seu falso admirador e discípulo, pois tudo entrou já no discurso público, oficial, onde vai singrar apesar dele e até à sua custa. 
                  
     "Enquanto somos jovens" faz questão de mostrar e demonstrar (e por isso conto a história) que, perante a diferença de idade e de meios, a ética pode assumir no documentário contornos indecisos, vagos - e quando isso acontece é preciso, em qualquer sector, sempre a maior atenção e o maior cuidado - perante o imediatismo da comunicação actual. Com uma realização muito boa, a montagem do final muito bem dada e uma música muito animada e bem escolhida, com Vivaldi em lugar de destaque, este um filme que nos tira da sensaboria da produção actual pelas melhores razões.
      É bom dar pela presença de passagem de Peter Bogdanovich num filme em que o cineasta volta a ser argumentista e produtor (sobre Noah Baumbach ver "Fresca e encalhada", de 30 de Outubro de 2013).

domingo, 7 de junho de 2015

Boa memória

     Contemporâneo de Federico Fellini, de quem foi amigo, Ettore Scola - autor, entre outros, de "Feios, Porcos e Maus"/"Brutti, sporchi e cattivi" (1976), "Um Dia Inesquecícivel"/"Una giornata particolare" (1977), "A Noite de Varennes"/"La nuit de Varennes" (1982), "O Baile"/"Le bal" (1983), "Esplendor"/"Splendor" (1989) - era o homem indicado para fazer em filme uma evocação do mais famoso cineasta italiano do pós-guerra. O mais famoso e um dos melhores, que tirou o cinema italiano da sensaboria dos grandes mestres sérios e sábios, como foram Roberto Rossellini, Luchino Visconti e Michelangelo Antonioni. 
                    Que Estranho Chamar-se Federico
      "Que Estranho Chamar-se Federico - Scola sobre Fellini"/"Che strano chiamarsi Federico" (2013) começa por reconstituir os inícios de ambos quando jovens desenhadores satíricos, Ettore/Giacomo Lazotti onze anos mais novo do que Federico/Tommaso Lazotti, em pleno fascismo italiano, com brio e pertinência, para depois se dedicar à carreira daquele que cunhou o título de felliniano, que ele próprio dizia não saber o que significava, com recurso a imagens de arquivo e a uma reconstituição ficcional, vistosa mas mais discreta, com ambos mais velhos - Fellini/Maurizio De Santis, Scola/Giulio Forgis Davanzati -, sempre a partir das memórias do segundo.
      Permitindo recordar com justeza um dos nomes maiores do cinema mundial visto por um outro grande cineasta, "Que Estranho Chamar-se Federico - Fellini por Scola" não perde de vista o sorriso nem aquilo que o próprio Fellini considerava ser: um grande mentiroso. Toda a discussão sobre a arte com o pintor de rua está muito bem vista no filme, que tem argumento de Ettore, Paola e Silvia Scola e conta com Vittorio Viviani como extravagante narrador.  
                     che-strano-chiamarsi-federico-foto-dal-film-7_mid
      Com muito boas transições entre o preto e branco e a cor, Incluindo imagens pouco conhecidas de Fellini e excertos de filmes seus, além de uma reconstituição artificial mas igualmente sentida da amizade dos dois com Marcello Mastroianni/Ernesto D'Argenio, o filme de Ettore Scola constitui uma homenagem muito bem-vinda ao genial criador de "As Noites de Cabíria"/"Le notti di Cabiria" (1957), "A Doce Vida"/"La dolce vita" (1960), "Fellini Oito e Meio"/"Otto e mezzo" (1963), entre tantas outras obras-primas, e a toda uma época de ouro do cinema italiano, num momento em que o cinema precisa de recordar os grandes nomes do seu passado para não continuar a perder-se em banalidades boçais. Seria bom que os organizadores de retrospectivas de clássicos do cinema em Portugal não se esquecessem dele.

        Nota: Cf., em português, "Federico Fellini: Sou um Grande Mentiroso - Uma conversa com Damian Pettigrew" (Lisboa: Fim de Século, 2008).

A provação

     "Força maior"/"Turist" (2014) é o primeiro filme do sueco Ruben Östlund a estrear em Portugal e, com uma construção em seis partes, à semelhança de "O Cavalo de Turim", de Béla Tarr (2011), que até poderia lembrar, revela ser um bom filme. Simplesmente, aqui as personagens, o casal Tomas/Johannes Kuhnke e Ebba/Lisa Loven Konglsy e os seus dois filhos, Harry/Vincent Wettergren e Vera/Clara Wettergren, encontram-se numa estância de turismo, nos Alpes franceses, para passar alguns dias de férias na neve.                         
                    http://f.i.uol.com.br/folha/ilustrada/images/14288321.jpeg
     Com observações muito curiosas espalhadas lateralmente, vai ser o comportamento de Tomas quando de uma avalancha que vai constituir o centro do filme: ele fugiu, abandonando Ebba e os filhos, como vimos ter acontecido, ou não? Aqui se alonga a discussão entre o casal e com o casal mais novo, muito importante por fazer intervir um outro ponto de vista.
    Até à crise de choro de Tomas, o salvamento por ele de Ebba em perigo e a viagem de autocarro mal conduzido pela montanha, com a saída dos passageiros e o regresso de Tomas ao tabaco. Depois do perigo e do resgate, da provação daqueles dias, todos podem passar a ser melhores e a conviver melhor consigo próprios e com os outros, enfrentar  juntos os contratempos e perigos da vida, espera-se.
                    Cena de 'Força Maior'
     Pouco haveria a dizer não se dera o caso de o filme acompanhar permanentemente um diálogo que, sem crispações excessivas, é duro e nuclear, com repercussões naturais nos filhos do casal. Instalada a suspeita havia que esclarecê-la, e é esse percurso que "Força Maior" faz até ao fim, até ao momento em que um teleférico paira nas alturas, vertiginosamente.
     De uma grande pertinência narrativa, que integra naturalmente uma proposta moralista, este um filme muito bem feito, com actores muito bons, uma música escassa mas oportuna e uma realização sempre segura.

sábado, 6 de junho de 2015

Lugar incomum

      António-Pedro Vasconcelos é um dos cineastas saídos do Novo Cinema Português dos anos 60/70. Com uma obra não muito extensa atrás de si, o seu último filme, "Os Gatos não Têm Vertigens" (2014), vem confirmá-lo como um cineasta do "lugar-comum", que ele não deixou de ser mesmo nos seus melhores filmes: "O Lugar do Morto" (1984), "Aqui D'El Rey" (1992), "Os Imortais" (2003).
                     Os-gatos-não-têm-vertigens-Jó-destaque
     Não se veja nisto um juízo de minimização, antes o reconhecimento de que ele trabalha onde, em princípio, por uma ou outra razão, todos nos reconhecemos. Grandes cineastas de todo mundo trabalharam antes dele, ao mesmo tempo que ele e depois dele, o "lugar- comum". Em termos formais, o seu último filme tem mesmo características de melodrama com traços de telenovela, o que uma filmagem seca implica e uma música omnipresente (Luís Cília) secunda. 
    Com argumento de Tiago Santos, a narrativa tem todos os lugares-comuns da actualidade portuguesa, do casal de opositores ao antigo regime aos jovens marginais deixados entregues a si próprios. Mas, como vem fazendo desde "Call Girl" (2007) em especial, António-Pedro Vasconcelos radicaliza os contrastes, neste caso entre uma mulher de 73 anos, Rosa/Maria do Céu Guerra, cujo marido, Joaquim/Nicolau Breyner, a deixou de vez em pleno baile com sapatos de Fred Astaire, e um jovem de 18 anos, Jô/João Jesus, que, abandonado pelos pais, anda em más companhias.
                     Sophia 2015: "Os Gatos Não Têm Vertigens" domina lista de vencedores
    Aí surgem então todos os lugares-comuns possíveis e imagináveis, de filhos ingratos e oportunistas a pais tiranos e oportunistas, do fantasma de um morto a uma antiga resistente anti-fascista que bebe vinho tinto e amigos da má-vida que não são maus rapazes. Nos próprios diálogos prolifera o lugar-comum de meias palavras. Só que, inequívoco, um subtexto percorre o filme: a crise em que o país vive mergulhado há vários anos, objecto de alusões de diversas personagens, mesmo se de passagem - esse faliu, serei eu a seguir? Ora é a esse nível que "Os Gatos não Têm Vertigens" se constrói como filme político.
     Gosto especialmente do início e do final (já em "A Bela e o Paparazzo", uma comédia de 2010, apreciara sobretudo o final, inspirado na comédia americana clássica), mas é o estado de espírito reinante entre as personagens, acabrunhado e desanimado sem perder o sorriso, de continuar a manifestar-se porque não há outra coisa a fazer para que as coisas melhorem - a mensagem passada por Rosa a Jô numa passagem de testemunho a vários níveis -, que se impõe. Demasiado moralista e optimista como lugar-comum, que o fado cantado por Ana Moura no final esclarece e comenta, este um filme perfeitamente à altura de António-Pedro como "cineasta pessimista".
                    
      Se há na actualidade um clássico em plena actividade no cinema português é ele, e é bom vê-lo aqui num pequeno mas significativo papel (ver a seu respeito "Leos Carax: as versões", de 18 de Fevereiro de 2012).

       Nota: Cf., de António Pedro Vasconcelos, "O Futuro da Ficção" (Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2012).