Com o último filme do sueco Roy Andersson, "Um Pombo Pousou Num Ramo a Reflectir na Existência"/"En duva satt pa en gren och funderade pa tillvaron" (2014), Leão de Ouro do Festival de Veneza do ano passado, foi-nos possível assistir aos anteriores filme da denominada "trilogia dos vivos", "Canções do Segundo Andar"/"Sanger fran andra vaningen" (2000) e "Tu, que Vives"/"Du levande" (2007), e desse modo ficar a perceber o significado e o alcance destas três obras, invulgares, originais e surpreendentes.
Começo por esclarecer que Roy Andersson, cujos filmes até agora desconhecia, dedicou-se ao filme publicitário depois do mau acolhimento que tiveram os seus primeiros filmes de ficção, nos anos 70, e só pensou em completar uma trilogia quando trabalhava na preparação do seu último filme. E devo assinalar que, desde o primeiro, os filmes desta trilogia têm como traços marcantes a construção fragmentária, apenas dentro de certos limites minimizada no último, e a adopção de planos fixos e longos com profundidade de campo.
Se a construção fragmentária permite que cada filme funcione como um caderno de apontamentos, soltos, de que se terá que tirar o sentido passo a passo e resolver só no final, a construção narrativa guia-se por situações grotescas, no limite do absurdo, que vivem personagens com as quais é escasso o contacto que nos é proporcionado - dois ou três planos, algumas nem isso.
Contudo, é na construção do plano, de cada plano, frequentemente sem palavras ou então com conversas banais em situações insólitas, que surge o que de mais radical caracteriza a proposta do cineasta nesta trilogia. De facto, pela distribuição dos corpos nesse espaço, que inclui recortes dentro do espaço (portas, janelas, espelhos) pelos quais se tornam visíveis aspectos inesperados e por vezes contraditórios, passa a clara visibildade do todo que força a concentração da atenção no que acontece a cada um - e estão quase sempre a acontecer-lhes coisas, quotidianas, banais, entediantes, absurdas: engarrafamentos gigantes, negócios que não funcionaram, execuções inexplicáveis no primeiro, que parte de uma citação do peruano César Vallejo; uma pena capital contada pelo condenado depois de cumprida, um casamento em casa rolante, a confissão de admiração de uma jovem fã por um jovem músico no segundo, em que surge um lado mais onírico; uma aula de flamenco, um rei do século XVIII que entra num bar antes e depois de um combate perdido, dois vendedores de divertimento mal sucedidos, uma criança que diz dizer um poema que dá o título ao filme no terceiro, em que há um maior acompanhamento dos dois vendedores e um enveredar pela história, apenas como exemplos.
A isto deve acrescentar-se a representação, também ela original e surpreendente dos actores, em geral sem ênfase, quase inexpressiva, no limite da indiferença, que traz ao filme um outro limiar de significação e o arrasta, com o anteriormente referido, para os limites do pictórico com tons de surrealismo, embora os seus traços de absurdo e de falta de sentido tenham também inspiração beckettiana.
Explica Roy Andersson em entrevista à Positif nº 651, de Maio de 2015, ter grande admiração pelos pintores surrealistas e pelo próprio Luis Buñuel ("Viridiana", 1961), e que essa foi uma fonte de inspiração importante para o seu trabalho nestes filmes, feitos os dois primeiros em película, o último em suporte digital com excelente fotografia dos húngaros István Borbás (que tinha sido um dos responsáveis da fotografia do primeiro, com Jesper Klevenas e Robert Komarek) e Gergely Pálos. E há alguma coisa mais que caracteriza estes filmes, que é o esforço de evitar os contrastes de cores mais garridas rumo a um certo sentimento de indiferenciação, que corresponda à própria indiferença dos seres que não sabem o que fazer dela e da sua própria solidão. (Na mesma entrevista o cineasta confessa que a sua obra literária preferida, que terá mesmo em vão tentado levar ao cinema, é "Viagem ao Fim da Noite", de Céline.)
Fora dos caminhos batidos do cinema corrente mesmo no seu país, o cineasta consegue aqui chamar a atenção de forma inteligente e continuado, arriscando o fastio de alguns, a indiferença de outros, a incompreensão também. Mas por esta trilogia passa uma tristeza, uma sensação de vazio e de absurdo que consegue agarrar-nos e mesmo comover-nos na sua própria existência fílmica. Semelhante a um filme de Jacques Tati mas sem humor, sem riso, antes com uma enorme tristeza não isenta de crueldade e ironia. Uma tristeza nórdica, sueca, suponho.
Começo por esclarecer que Roy Andersson, cujos filmes até agora desconhecia, dedicou-se ao filme publicitário depois do mau acolhimento que tiveram os seus primeiros filmes de ficção, nos anos 70, e só pensou em completar uma trilogia quando trabalhava na preparação do seu último filme. E devo assinalar que, desde o primeiro, os filmes desta trilogia têm como traços marcantes a construção fragmentária, apenas dentro de certos limites minimizada no último, e a adopção de planos fixos e longos com profundidade de campo.
Se a construção fragmentária permite que cada filme funcione como um caderno de apontamentos, soltos, de que se terá que tirar o sentido passo a passo e resolver só no final, a construção narrativa guia-se por situações grotescas, no limite do absurdo, que vivem personagens com as quais é escasso o contacto que nos é proporcionado - dois ou três planos, algumas nem isso.
Contudo, é na construção do plano, de cada plano, frequentemente sem palavras ou então com conversas banais em situações insólitas, que surge o que de mais radical caracteriza a proposta do cineasta nesta trilogia. De facto, pela distribuição dos corpos nesse espaço, que inclui recortes dentro do espaço (portas, janelas, espelhos) pelos quais se tornam visíveis aspectos inesperados e por vezes contraditórios, passa a clara visibildade do todo que força a concentração da atenção no que acontece a cada um - e estão quase sempre a acontecer-lhes coisas, quotidianas, banais, entediantes, absurdas: engarrafamentos gigantes, negócios que não funcionaram, execuções inexplicáveis no primeiro, que parte de uma citação do peruano César Vallejo; uma pena capital contada pelo condenado depois de cumprida, um casamento em casa rolante, a confissão de admiração de uma jovem fã por um jovem músico no segundo, em que surge um lado mais onírico; uma aula de flamenco, um rei do século XVIII que entra num bar antes e depois de um combate perdido, dois vendedores de divertimento mal sucedidos, uma criança que diz dizer um poema que dá o título ao filme no terceiro, em que há um maior acompanhamento dos dois vendedores e um enveredar pela história, apenas como exemplos.
A isto deve acrescentar-se a representação, também ela original e surpreendente dos actores, em geral sem ênfase, quase inexpressiva, no limite da indiferença, que traz ao filme um outro limiar de significação e o arrasta, com o anteriormente referido, para os limites do pictórico com tons de surrealismo, embora os seus traços de absurdo e de falta de sentido tenham também inspiração beckettiana.
Explica Roy Andersson em entrevista à Positif nº 651, de Maio de 2015, ter grande admiração pelos pintores surrealistas e pelo próprio Luis Buñuel ("Viridiana", 1961), e que essa foi uma fonte de inspiração importante para o seu trabalho nestes filmes, feitos os dois primeiros em película, o último em suporte digital com excelente fotografia dos húngaros István Borbás (que tinha sido um dos responsáveis da fotografia do primeiro, com Jesper Klevenas e Robert Komarek) e Gergely Pálos. E há alguma coisa mais que caracteriza estes filmes, que é o esforço de evitar os contrastes de cores mais garridas rumo a um certo sentimento de indiferenciação, que corresponda à própria indiferença dos seres que não sabem o que fazer dela e da sua própria solidão. (Na mesma entrevista o cineasta confessa que a sua obra literária preferida, que terá mesmo em vão tentado levar ao cinema, é "Viagem ao Fim da Noite", de Céline.)
Fora dos caminhos batidos do cinema corrente mesmo no seu país, o cineasta consegue aqui chamar a atenção de forma inteligente e continuado, arriscando o fastio de alguns, a indiferença de outros, a incompreensão também. Mas por esta trilogia passa uma tristeza, uma sensação de vazio e de absurdo que consegue agarrar-nos e mesmo comover-nos na sua própria existência fílmica. Semelhante a um filme de Jacques Tati mas sem humor, sem riso, antes com uma enorme tristeza não isenta de crueldade e ironia. Uma tristeza nórdica, sueca, suponho.