“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Os melhores de 2015

    No ano da morte de Manoel de Oliveira e Herberto Helder, Chantal Akerman e Penelope Houston, um ano marcado por acontecimentos internacionais muito importantes, como a crise dos refugiados na Europa, além das outras que aqui assinalei em devido tempo marcaram-me especialmente as mortes do realizador italiano Francesco Rosi (1922-2015) e da actriz irlandesa Maureen O'Hara (1920-2015).
     Estrearam muitos filmes, incluindo muito lixo, mas vários dos anunciados não chegaram, pelo menos por enquanto, a estrear, confirmando o atraso crónico da distribuição comercial portuguesa. A ideia com que se fica é a de um cada vez maior espectáculo e de uma cada vez menor arte do cinema, o que, contra saudosismos, é mesmo assim nos dias que correm - já não é apenas a "sociedade do espectáculo" de Guy Debord, mas a "civilização do espectáculo" de que fala Mario Vargas Llosa. De tal modo que nos permite questionar, reconhecendo embora que todo o cinema está a mudar, se, com honrosas excepções, o melhor do cinema não estará no seu passado, na sua história. Mas isto digo eu, que sou pessimista.
    Com a precaução de avisar de que não vi tudo (nunca se vê tudo), aqui fica a minha lista dos melhores filmes de 2015. Sempre para que discordem e façam as vossas próprias listas de preferências.

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1º. Visita ou Memórias e Confissões, Manoel de Oliveira (1982).
2º. Minha Mãe/Mia madre, Nanni Moretti (2015).
3º. O Último dos Injustos/Le Dernier des injustes, Claude Lanzmann (2013).
4º. Vício Intrinseco/Inherent Vice, Paul Thomas Anderson (2014).
5º. O Pequeno Quinquin/P'tit Quinquin, Bruno Dumont (2014).
6º. Três irmãs/San zimei, Wang Bing (2012).
7º. Adeus à Linguagem/Adieu au langage, Jean-Luc Godard (2014).
8º. National Gallery, Frederick Wiseman (2014).
9º. As Mil e Uma Noites, Miguel Gomes (2015).
10º. Blackhat: Ameaça na Rede/Blackhat, Michael Mann (2015).
      
       Desejo que o próximo ano possa ser melhor do que este que agora acaba, em todos os aspectos incluindo no que respeita ao cinema. 

                Com os meus melhores votos de um Feliz Ano Novo de 2016 para todos.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Os livros de 2015

     Em 2015 saíram em Portugal livros importantes sobre cinema e as artes visuais próximas para os quais aqui me cumpre chamar a atenção. Começo por "Obra Escrita - Volume 2", de João César Monteiro (Lisboa: Letra Livre, 2015), que publica os guiões de "À Flor do Mar" (1986) e "Recordações da Casa Amarela" (1989), e "Crónicas: Imagens, Proféticas e Outras - 4º Volume (2007)", de João Bénard da Costa, com edição de Lúcia Guedes Vaz (Lisboa: Sistema Solar/Documenta, 2015), ambos devidos e absolutamente indispensáveis.
     Contudo, a surpresa do ano foi desta vez "A culpa no cinema de Alfred Hitchcock", de Renato Barroso (Letras Encantadas, 2014), totalmente inesperado e muito bom, fazendo justiça ao génio britânico. Mas também merecem especial atenção "Charlie Chaplin", de Peter Ackroyd (Lisboa: Teodolito, 2015), nova biografia do outro génio inglês, "O Essencial sobre Charles Chaplin", de José-Augusto França (Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2015), que partindo do grande especialista português no "self-made-myth" deve ser visto como uma preciosidade, e "Cinefilia e Cinefobia no Modernismo Português (vias e desvios)", de Joana Matos Frias (Porto: Edições Afrontamento e Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, 2015), muito curioso e bem documentado.
                                            A Culpa no Cinema de Alfred Hitchcock                              
    Saíram mais "Os Filmes da Minha Vida", de François Truffaut (Lisboa: Orfeu Negro, 2015 - o original francês é de 1975), e "Homo spectator: ver, fazer ver", de Marie-José Mondzain (Lisboa: Orfeu Negro, 2015 - o original francês é de 2007), que com méritos diversos merecem a nossa melhor atenção. 
    "Eu Animal - argumentos para um novo paradigma - cinema e ecologia", de Ilda Teresa Castro (Sintra: Zéfiro, 2015), que parte de um trabalho académico para ir além dele com grande pertinência e actualidade, e "Manoel de Oliveira 3/3" (Porto: Fundação de Serralves, 2014), o volume que faltava do catálogo dedicado ao cineasta aquando da exposição e retrospectiva que lhe foi dedicada em 2008, constituem outras publicações assinaláveis do ano que agora finda. Com coordenação de Maria do Carmo Piçarra e Jorge Anónio saiu "Angola. O Nascimento de Uma Nação - Volume III: O Cinema da Independência" (Lisboa: Guerra e Paz, 2015), que conclui da melhor maneira um projecto ambicioso.
                                               
     Integrado no Projecto de Investigação Ruptura Silenciosa, da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, coordenado por Alexandre Alves Costa e Luís Urbano, que já o ano passado tive aqui a oportunidade de mencionar, saiu o importante "Histórias Simples - Textos sobre Arquitectura e Cinema", de Luís Urbano (Porto: AMDJAC, 2013), enquanto "Manoel de Oliveira - O Homem da Máquina de Filmar", de Rute Silva Correia (Oficina do Livro, 2015), não passa de um equívoco oportunista mal alinhavado que o defunto grande cineasta não merecia, o que aqui não deve ser passado em silêncio.
     Em áreas próximas e afins destacaram-se "O Negro Teatro de Jorge Molder", de Alberto Ruiz Samaniego (Lisboa: Sistema Solar/Documenta, 2015), e "Enxúvia, Gelo e Morte - A arte de Rui Chafes depois do fim da arte", de Luís Quintais (Lisboa: Sistema Solar/Documenta, 2015).
                                       LISBOA, CIDADE TRISTE E ALEGRE by Victor Palla and Costa Martins
     Já no final do ano, "Fotografia: Modo de Usar", com edição de Delfim Sardo (Lisboa: Sistema Solar/Documenta, 2015) é um belo livro muito importante e esclarecedor sobre a fotografia que se pratica em Portugal na actualidade. Mas o livro do ano foi, para mim, de novo "Lisboa, Cidade Triste e Alegre", de Victor Palla e Costa Martins (Pierre von Kleist Editions, 2015), um livro fundamental ainda hoje surpreendente e indispensável na sua terceira edição (ver Mítico e mágico", de 6 de Dezembro de 2015).

domingo, 27 de dezembro de 2015

A cidade de ficção

   Só agora tive ocasião de ver "O Último dos Injustos"/"Le Dernier des injustes", de Claude Lanzmann (2013), cineasta de referência sobre a II Guerra Mundial e o Holocausto desde o monumental "Shoah" (1985), numa obra em que é também destacado especialmente "Sobibór, 14 octobre 1943, 16 heures" (2001), que permanece inédito em Portugal. 
   Centrado num judeu que interveio do lado das vítimas judaicas em todo o processo que conduziu à chamada Solução Final e mesmo durante esta, Benjamin Murmelstein, que foi Rabino em Viena e Presidente do Conselho Judaico no "gueto modelo", de facto campo de concentração e de extermínio selectivo, de Theresienstadt e, como tal, desempenhou funções de intermediário entre os algozes e as vítimas que se têm prestado a diversas interpretações, este é um filme fundamental e que não pode deixar indiferente.
                    O último dos injustos
   Ouvindo-o longamente em Roma em 1975 em imagens e entrevistas nunca antes reveladas, o documentarista disponibiliza para todos um testemunho fundamental de quem, podendo ter escapado à situação atroz, preferiu, como ele diz por espírito de aventura, ficar para ajudar no que ele designa como uma missão. Todo o depoimento Murmelstein, feito a partir da memória, viva e fresca, de quem esteve presente, é impressionante, e deita abaixo verdades que a história tinha estabelecido sem o levar em consideração - por exemplo sobre Eichmann, entre outras questões e personalidades de que fornece pormenores até agora desconhecidos.
   Mas não apenas isso. Claude Lanzmann mostra os locais na actualidade e algumas imagens, fotografias e até um excerto de um filme nazi da época, mas também revela ao mundo desenhos e pinturas feitos por prisioneiros durante o Holocausto. Com uma persistência e argúcia notáveis, questiona o seu interlocutor sem lhe dar tréguas nem facilidades, o que, com a colaboração sem restrições deste, homem inteligente e culto, conduz a um documento excepcional, absolutamente indispensável.
                   O último dos injustos
    Claude Lanzmann é o grande historiador da II Guerra Mundial e do Holocausto no cinema e este era um filme que ele devia e cumpre com toda a justeza histórica e cinematográfica, para nosso conhecimento e completa dilucidação da magna questão do Século XX.  
     Durante "O Último dos Injustos" ele recupera a imagem de Benjamin Murmelstein dando-lhe a palavra e a oportunidade de prestar todos os esclarecimentos e todas as explicações enquanto recorda o que viveu, o que muito justamento nos leva a compreender que nesta matéria, como noutras, nada nem ninguém deve ser esquecido para que a verdade surja em toda a sua crueza, como aqui de novo acontece a partir da imagem e da palavra dita e lida.

A saga das sagas

    "Star Wars: O Despertar da Força"/"Star Wars: The Force Awakens", de J. J. Abrams (2015), representa o muito aguardado e desejado regresso de personagens e de uma narrativa múltipla que nos são familiares. Baseado nas personagens criadas por George Lucas, este VII episódio tem argumento de Lawrence Kasdan, também co-produtor, Michael Arndt e do próprio realizador, também produtor, embora aqui seja fundamental referir a produção da Disney e a composição digital, de novo a cargo da Industrial Light and Magic.                        
                      
     Claro que esta saga de ficção científica no passado se destina sobretudo a um público juvenil - mas haverá que observar que a juventude de agora não é a mesma dos anteriores episódios -, claro que a ela estão associados um grande negócio de gadgets e memorabilia (expostos em Lisboa no 7º Piso do El Corte Ingles) e sobretudo múltiplos jogos de vídeo, o que, desde que surgiu, embora original não tem nada de especial. O que aqui importa realçar é que o tempo passou também para Han Solo/Harrison Ford e a Princesa Leia/Carrie Fisher, o que é muito bem explorado narrativamente pelo filme.
     De facto, agora é o filho de ambos que, invocando o avô, lidera as forças do Primeiro Círculo, sob o nome de Kylo Ren/Adam Driver, o que mantém o lado familiar da saga, que nela é muito importante. As novas personagens, nomeadamente Rey/Daisy Ridler, Finn/John Boyega e Poe/Oscar Isaac, são, por isso, todas elas mais novas, e vão ter de ser eles a liderar o combate. De novo também um robot, BB-8, além dos anteriores robots e criaturas, que ele porém excede em importância narrativa.
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    Toda a parte de animação digital está, como de costume, muito bem, e nela reside um dos maiores motivos de interesse cinematográfico de cada um dos episódios desta saga. A evolução aqui registada é muito importante (não, não vou revelar nada mais do filme) e vem permitir relançar a saga para próximos episódios, ainda com Luke Skywalker/Mike Hamill que, motor da narrativa, só fugazmente surge no final.
     Por mim esta é a melhor saga de ficção científica, atendendo às suas implicações temporais ao situar-se num passado remoto, às características do combate mitológico que encena e à panóplia de efeitos visuais e digitais que mobiliza, muito embora "Star Treck", que Abrams já dirigiu para cinema em 2009 e 2013, seja um rival à sua altura, mas mais preso à possível actualidade futura da exploração do espaço. A invenção desta saga terá sido mesmo o maior contributo de George Lucas para o cinema.   
                     star wars
      A referência a J. J. Abrams não deve passar sem mencionar que ele, que aqui se sai naturalmente muito bem como realizador ainda que "Star Wars: O Despertar da Força" tenha uma carga mítica atenuada em relação aos episódios anteriores, foi o criador da série televisiva "Perdidos"/"Lost", que marcou uma época entre 2004 e 2010. E se puderem vejam o filme em 3D.

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Hitchcock outra vez

    O Arte retransmitiu hoje "Hitchcock/Truffaut", de Kent Jones (2015), sobre o célebre livro "Le cinéma selon Hitchcock" (Paris: Robert Laffont, 1966), em que o então ainda jovem cineasta francês, com a colaboração de Helen Scott, conversa longamente com o grande e famoso mestre do cinema. Um livro que marcou uma época.
    Graças à recuperação de trechos do diálogo e de trechos de filmes do entrevistado, com comentários pessoais como esclarecimentos de alguns dos grandes nomes do cinema actual - Martin Scorsese, Wes Anderson, David Fincher, Olivier Assayas, Peter Bogdanovich, Arnaud Desplechin, James Gray, Kiyoshi Kurosawa, Richard Linklater e Paul Schrader  -, este filme escrito por Kent Jones e Serge Toubiana, montado por Rachel Reichman e com a voz de Mahieu Amalric, constitui um ensaio exuberante, explicativo e demonstrativo, sobre um dos maiores cineastas da história do cinema. 
                                    Hitchcock/Truffaut Documentary
     A arte de Alfred Hitchcock resultou de ele se ter iniciado no cinema no tempo do mudo, de que preservou o segredo  depois do advento do sonoro no que ele considerava o "cinema puro". Ver os seus principais filmes detalhadamente analisados por novos e destacados cineastas que conhecem bem a sua obra e o admiram constitui simultaneamente uma homenagem e uma lição. Reter da sua conversa inicial com Truffaut, que se prolongou durante quatro anos, fragmentos sonoros e momentos visuais confere a este filme de Kent Jones um carácter de documento de época que ele também tem.
    As análises nomeadamente da culpa, da troca de crimes, do medo, do erotismo, do fetichismo, mas também, e até em especial, a análise formal em filmes fundamentais como "A Mulher Que Viveu Duas Vezes/"Vertigo" (1958), "Psico"/"Psycho" (1962), "Os Pássaros"/"The Birds" (1964), vistos à lupa, plano a plano, excerto a excerto, e os exemplos retirados de muitos outros filmes fazem deste filme um ensaio modelar e fascinante, pedagógico e comemorativo, que muito justamente a Hitchcock associa François Truffaut, recordando que ele morreu com 52 anos, quatro anos depois do seu ilustre interlocutor e amigo.  
                    
        Como nenhum outro cineasta, Alfred Hitchcock soube, em favor do dispositivo de projecção do cinema, trabalhar o lado fantomático do filme com calculado envolvimento emocional do espectador, sempre com um uso superior da linguagem cinematográfica que não afastou a experimentação e sem evitar o dilema moral, que justamente perseguiu e procurou.
      Em português, devo assinalar a publicação este ano de "A culpa no cinema de Alfred Hitchcock", de Renato Barroso (Letras Encantadas, 2014), um livro em que, revelando grande saber do cinema e do direito, com grande dignidade o autor esgota este tema fundamental na obra cinematográfica e televisiva do cineasta, o que o torna uma obra a partir de agora indispensável na bibliografia sobre cinema e sobre o seu maior, mais inventivo criador.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Canção simples

   Embora não se afaste muito dos seus trabalhos anteriores, "A Juventude"/"Youth" de Paolo Sorrentino (2015) surpreende pela audácia com que enfrenta o cinema e a velhice.
  Dois velhos amigos, o compositor e maestro Fred Ballinger/Michael Caine e o realizador de cinema Mick Boyle/Harvey Keitel, passam uma temporada num hotel de luxo na Suíça, ocupando o seu tempo em conversas banais sobre um e o outro, sobre os filhos respectivos, sobre os outros hóspedes. Ambos são célebres - o primeiro recusa um convite para tocar perante a Rainha de Inglaterra, o segundo vai receber uma negativa da sua actriz de há muito, a mítica Brenda Morel/Jane Fonda, para participar no novo filme, o seu "filme-testamento" como lhe dizem, que ele está a preparar.                     
                     YOUTH International Red Band Trailer (2015) - Paolo Sorrentino
   Numa situação que, com o risco do pretensioso, poderia permitir enveredar pelos caminhos da reflexão sobre a criação artística em cada um dos sectores, a opção do realizador, também argumentista, passa pela banalidade quotidiana vivida por dois homens com mais passado que futuro, o que confere especial interesse ao que dizem, ao que pensam, ao que fazem. Com notações avulsas, como o monge budista, o futebolista famoso no seu tempo, o casal que não fala, o montanhista, o para-quedista, sem deixar de lembrar no seu melhor "As Férias do Sr. Hulot"/"Les vacances de Monsieur Hulot", de Jacques Tati (1953), "A Juventude" deixa todo o espaço para a o diálogo e a recriação verbal.
   Muito centrado em sexo e mulheres, como era expectável atendendo à idade dos protagonistas, o filme acaba por se encaminhar para uma reflexão comparada, em termos práticos, sobre a intemporalidade da música e a caducidade do cinema que, substituído pela televisão que o suplanta, já passou. E as memórias de tempos felizes não impedem de encarar um presente em que a mulher de Fred está internada em Veneza e a nova namorada do filho de Mick, que suplantou a filha de Fred, Lena/Rachel Weisz, junto dele, é uma cantora pop, Paloma Faith, que surge em sonhos num vídeo-clip.
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    Confrontado com a recusa de Brenda Morel e os seus fantasmas, as personagens que terá criado, Mick opta por sair pela janela, enquanto Fred, depois de indicações sumárias a uma criança que aprende a tocar e do encontro de ambos com a nova Miss Universo, acaba por aceitar o convite da Rainha, uma vez esclarecido o que estava por trás de "aprender a andar de bicicleta" para o outro.
     Num filme inesperado e convincente, em que o diálogo revelador entre Fred e Lena está, tal como a saída final de Mick, muito bem encenado e a conclusão dos mais jovens vai no sentido do desejo contra o sentido do poder, a dedicatória final a Francesco Rosi (1922-2015) fica muito bem (sobre Paolo Sorrentino, ver "Evocativo", de 15 de Março de 2014).

Penelope Houston (1927-2015)

    Foi um nome muito importante da crítica cinematográfica na viragem moderna dos anos 50/60 do Século XX. Autora de "The Contemporany Cinema" com edição da Penguin em 1963 (edição portuguesa "O Cinema Contemporâneo", com tradução de José Vaz Pereira, Lisboa, Ulisseia, s/d), um dos meus primeiros livros de cinema, aí me confirmou na importância dos clássicos e dos primeiros modernos, americanos e italianos, e na atenção aos novos, grandes modernos que então emergiam - Bresson, Antonioni, Bergman, Satjajit Ray, Anderson, Richardson e o free cinema inglês, Resnais, Godard e a nouvelle vague feancesa, Mekas, Cassavetes e o new american cinema.
                                     
    Figura fundamental da crítica cinematográfica em língua inglesa, esteve nas revistas Sequence e, como editora, na Sight & Sound, também no British Film Institute, e em tudo o que então escreveu deixou a marca pessoal de um pensamento muito atento e bem informado, independente e inteligente sobre o cinema que amava. Penelope Houston teve em Inglaterra o papel que André Bazin e Henri Langlois tiveram em França.
   Neste país por razões que me excedem muito ligado à crítica cinematográfica em língua francesa, pelo menos eu a recordo e evoco neste momento para elogiar o seu pensamento, a sua actividade e a sua influência, fecunda e muito benéfica para o cinema.    

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Sobre a arte moderna

   Com a transmissão dos dois últimos episódios, o Arte conclui hoje a apresentação de uma série notável: "Les aventuriers de l'art moderne", de Amélie Harrault e Pauline Gaillard (2015). Baseada na trilogia Bohèmes, Libertad! e Minuit, do conhecido escritor e argumentista Dan Franck, um largo e fundamental período da arte moderna e da história é percorrido nesta série, especialmente notável por recorrer a imagens de época - fixas e em movimento, documentais e de ficção - e a animação tradicional (pintura sobre vidro, papel cortado, tinta, guache).
   Desdobrada em seis episódios, esta não é uma série tradicional sobre arte e artistas, como outras que nomeadamente este canal tem apresentado ao logo dos anos sempre de grande qualidade. Nada disso, ou disso apenas a filmagem na actualidade de obras de referência da arte moderna, pois esta série obedece a um modelo inédito e original.
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   Sempre acompanhada por uma narradora omnisciente em off, Amira Casar, os seus diferentes episódios apresentam directamente imagens de época valiosas e em muitos casos desconhecidas, mas além delas recriam as personalidades autênticas e as suas vidas com o recurso à animação de uma forma artisticamente muito conseguida e extremamente pertinente em termos fílmicos.
   Deste cruzamento entre o documental e a animação resulta uma obra sedutora em si mesma, rigorosa do ponto de vista histórico e não fastidiosa, o que é sempre o risco dos filmes sobre arte e artistas. Graças a artistas actuais da imagem somos conduzidos ao coração da revolução moderna e a momentos determinantes da história do Século XX  com desembaraço, sentido da história e da arte, que nos fazem chegar vivas, transfiguradas, figuras que se tornaram lendárias.
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    Mas não são apenas as personagens, são também os lugares, nomeadamente em Paris, que o documental e a animação trazem para o presente, sempre ao melhor nível. Assistir a esta série constitui sempre uma aprendizagem ou precisão de conhecimentos com um gosto especial devido à sua excepcional criação. 
   O Arte está a concluir em grande um ano de programação excepcional, que aqui de novo assinalo e saúdo.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

O espaço e o seu uso

    Em "Família: Rui Chafes & Pedro Costa com Jean-Marie Straub & Danièle Huillet", a instalação patente no Museu Nacional Machado de Castro mesmo depois da inciativa AnoZero: Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra durante a qual se iniciou, o que se torna decisivo é o espaço e a sua utilização. De facto, mal conhecido e pouco visto apesar da sua importância, o espaço do criptopórtico romano do Aeminium é à partida tudo menos um espaço museal. Foi, no entanto, no seu muito antigo, escuro e arruinado espaço que os artistas quiseram situar uma sua instalação.
   Não vou em pormenor comentar as imagens e objectos de cada um a não ser para demonstração da utilização do espaço. Longos e escuros, antiquíssimos corredores com salas laterais e ao fundo, sobre umas escadas, uma parede em que é projectado um filme com palavras francesas poéticas e políticas, belamente recitadas. Lateralmente, em algumas das salas imagens fixas, luminosas mas escuras, no escuro marcam e demarcam o espaço de forma insólita. As alturas são uma perspectiva que não deixa de, a partir do fundo, das profundidades ser explorada.
   Naquela família que conheço bem aprecio aqui o arrojo do desafio, que sendo artístico é também e até sobretudo político numa instalação que vista em baixo, entre ruínas, se torna mais perceptível, bela e tocante. Em imagens conformes num espaço esclarecedoramente agreste e inesperado, aquela família pareceu-me bem, muito obrigado. A instalação estará no MNMC até 31 de Janeiro de 2016.
     Neste momento os meus parabéns a Rui Chafes pela atribuição do Prémio Pessoa 2015 (sobre ele, ver "Uma antológica", de 20 de Fevereiro de 2014; sobre instalações de Pedro Costa, ver "Instalações em diálogo", de 26 de Outubro de 2012; sobre Straub/Huillet, ver "Poética straubiana", de 15 de Novembro de 2012).
      Mas, além de verem esta instalação, aproveitem para visitar o Museu Nacional Machado de Castro, que vale muito a pena conhecer - ver, a seu respeito, "Mirleos", de João Miguel Fernandes Jorge (Lisboa: Relógio d'Água, 2015).

Na noite polar

    Durante a noite polar decorre numa cidade do norte da Noruega um caso bizarro: a condutora de um carro atropela e mata, sem disso ter consciência, uma adolescente, seguindo caminho sem parar para ver o que aconteceu ou a socorrer. O marido da condutora, a quem ela conta o que percebeu do acidente, um embate, volta ao local e nada nem ninguém encontra. É o filme "La grâce"/"Gnade", do alemão Matthias Glasner (2012), um realizador que se fizera notar por "Der freie Wille" (2006) e "This Is Love" (2009), que como este não chegaram a Portugal, e trabalha também para a televisão. 
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   A paisagem gelada, belíssima na noite polar, não é indiferente, como não o é o casal Maria/Birgit Minichmayr e Niels/Jürgen Vogel e o filho deles Markus/Henry Stange serem alemães e ele, Niels, que trabalha como piloto de helicóptero, ter uma amante americana, Linda/Ane Dahl Torp. Torna-se, porém, especialmente importante que Maria trabalhe como enfermeira na assistência final a doentes terminais.
   Vai ser ela quem, depois de ter provocado involuntariamente mas com descuido e incúria uma morte acidental, se vai culpabilizar e lidar com essa culpa, que apenas ao marido, Niels, confidencia, embora o filho Markus não ande longe. O seu percurso passa pelo coro da igreja a que pertence, o que pode também não ser de todo indiferente.                  
                       Gnade - Szenenbild 2
   Depois de muita deliberação, Maria e Niels decidem ir contar aos pais da jovem morta o que de facto aconteceu, e os minutos finais do filme são do melhor que me foi dado ver desde o final de "A Palavra"/Ordet", de Carl Th. Dreyer (1955).
   "La grâce" passou na passada semana no Arte, que continua com uma programação de cinema muito boa.

Sem salvação

      Feito no mesmo ano de "Pasolini", "Bem-Vindo a Nova Iorque"/"Wellcome to New York", de Abel Ferrara (2014), que não teve estreia comercial em sala em Portugal, é um filme melhor do que aquilo que se poderia recear do seu assunto. Baseado embora no caso que envolveu Dominique Strauss-Kahn naquela cidade antes das últimas eleições presidenciais francesas, o argumento do realizador e Christ Zois explora muito bem os cheios e vazios do caso, seguindo de início a fim o protagonista, Devereaux/Gérard Depardieu.
                   Welcome to New York
     Exemplar na sua construção dramática, o filme vai numa primeira parte até aos factos de que Devereaux é acusado, numa segunda parte segue a audiência judicial e os procedimentos policiais para numa terceira parte seguir o protagonista devolvido ao seu meio e aos que lhe são próximos. A distância e a frieza de tom do filme permite um estudo atento e pormenorizado do comportamento e do pensamento do protagonista, que se vem a revelar na parte final no diálogo com a mulher, Simone/Jacqueline Bisset, e até especialmente em monólogo.
     Imprimindo um carácter ambicioso e grosseiro até à violação a Devereaux, Ferrara e Depardieu traçam dele um retrato justo e preciso, embora eventualmente especulativo, que é também um retrato da justiça americana, que se intimida quando tem que lidar com os mais poderosos, protegidos por uma cortina de pseudo-imunidade e muito dinheiro.
                  
  Sem me escandalizar minimamente, mas também sem me surpreender que tenha escandalizado em França, "Bem-Vindo a Nova Iorque" de Abel Ferrara não assume a acusação do protagonista para além dos factos e também não o defende a não ser ao permitir-lhe explicar-se a si próprio: segundo ele, ninguém pode salvar ninguém porque ninguém quer ser salvo. E sem emenda continua.
     Mostrando não ter receio de enfrentar o mais difícil e fazendo-o com independência de espírito, com bom trabalho técnico e bons actores (a declaração inicial de Gérard Depardieu é importante e cria distância) Ferrara inicia aqui um díptico político a que não se deve permanecer indiferente (sobre o cineasta ver "O sabor do fim", de 19 de Agosto de 2012, e "O último dia", de 11 de Janeiro de 2015).   

domingo, 6 de dezembro de 2015

Medeia clássica

   Uma das mais importantes distribuidoras e exibidoras de cinema em Portugal, a Medeia Filmes de Paulo Branco não tem esquecido os clássicos do cinema, quer em ciclos sobre grandes cineastas quer na edição dvd, o que dá a medida completa da qualidade da sua programação e edição. 
                   
    Nos últimos meses a sua programação de clássicos do cinema em sentido largo tem-se estendido a matinés diárias no cinema Monumental, em Lisboa, para o que quero neste momento chamar a vossa atenção. Escolhidos pela distribuidora e exibidora, todos os filmes programados por alguma razão merecem ser vistos. A programação pode ser encontrada aqui
http://medeiafilmes.pt/release/frontend/www/index.php/
    Aconselho sem restrições, do mesmo passo que aqui felicito Paulo Branco por mais esta iniciativa em favor da independência do melhor do cinema. Também responsável pelo Lisbon & Estoril Film Festival, ele é uma referência incontornável do cinema contemporâneo, também como produtor internacional e especialmente em Portugal.

Bergman outra vez

   O Arte passou na passada semana um filme completamente inédito, "Une histoire d'âme", de Bénédicte Acolas (2014), que adapta um quase monólogo de Ingmar Bergman datado de 1972 (1), nunca por ele levado ao cinema. Com Sophie Marceau a interpretar a única personagem, Viktoria, uma mulher de 40 e poucos anos sensual e bela, somos arrastados para o universo interior dela pelas suas próprias palavras, as únicas que o filme nos dá.
                      Foto Sophie Marceau         
     Da memória ao delírio, do real ao imaginado, do desejo ao sofrimento, as metamorfoses de Viktoria são muito justamente dadas pela actriz que a realização de Acolas, aqui no seu primeiro filme, acompanha muito bem. Falta à actriz francesa o pico especial das actrizes suecas, mas aceitando-se o filme tal como ele é todo o universo atribulado de Ingmar Bergman se transmuta e nos fascina de novo. 
      O grande cineasta sueco sempre precisou das mulheres para ver bem, para ver melhor, e este filme mostra-o de novo com a personagem a dirigir-se a interlocutores imaginários com cada um dos quais as suas palavras mudam. No regozijo como na queda, no abandono como na sua superação, a Viktoria de Sophie Marceau é uma personagem que se desnuda diante da câmara até ao mais recôndito do seu ser, corpo, alma e cérebro convocados, sem sair dos interiores que se vão transformando eles também enquanto ela se desmultiplica.                                         
                     
      Feito para a televisão por quem já o tinha encenado no teatro e agora o adapta a partir de uma nova tradução sua, "Une histoire d'âme" é um filme de enorme, pungente beleza dramática e intransigente verdade, um mergulho na mente e na alma de uma mulher que não desiste de viver. Se faz lembrar alguma coisa é Anna Magnani em "Uma Voz Humana"/"Una voce umana", baseado na peça "La voix humaine" de Jean Cocteau, no filme "O Amor"/"L'amore", de Roberto Rossellini (1948), que Sophia Loren terá refeito o ano passado para Edoardo Ponti numa curta que nunca verei (Sobre Ingmar Bargman, ver "Eles, os modernos", de 22 de Janeiro de 2012).

      Nota
      (1) Cf. "Une affaire d'âme", de Ingmar Bergman (Paris: Cahiers du Ciinéma, 2002 para a edição francesa, págs. 139-172).

Mítico e mágico

     "Lisboa, Cidade Triste e Alegre", de Victor Palla e Costa Martins (Pierre von Kleist editions, 2015) era até agora um livro de fotografia mítico mas absolutamente inacessível nas suas duas singelas edições, que com esta nova edição se pode certificar também mágico e perceber seminal. Nunca lhe tinha posto a vista em cima mas agora não me escapou.
    De uma assombrosa beleza visual que resulta da sua verdade, as fotografias dos dois arquitectos são um poderoso testemunho de Lisboa nos anos 50 do Século XX, uma cidade como ninguém a tinha visto na época nem viu depois. Acompanhado por poemas de alguns dos mais conhecidos poetas portugueses de então, alguns anteriores (o título do livro vai ser procurado num poema de Álvaro de Campos), outros inéditos à data, com eles as fotografias da dupla dialogam de modo justo e muito feliz.
      Não se pode excluir o carácter poético das próprias fotografias, embora o seu enquadramento gráfico ajudado pela passagem do tempo para ele contribua. Mesmo que tal não seja posto de parte no texto introdutório de José Rodrigues Miguéis, é toda um tempo histórico que este como as fotografias convoca. A dureza e clarividência do preto e branco fazem muito pela poética de uma fotografia que se quer documental ao percorrer as diferentes questões/personagens-tipo na cidade do seu tempo, sempre presente.
                                    LISBOA, CIDADE TRISTE E ALEGRE by Victor Palla and Costa Martins
     No final, um índice exaustivo permitiu aos autores comentarem as fotografias todas, uma a uma, no seu recorte gráfico único no livro. Victor Palla e Costa Martins sofreram sem dúvida influências da fotografia do pós-guerra, como é assinalado por Gerry Badger no caderno junto ao livro, mas foram incalculáveis as influências que exerceram sobre o futuro, maiores agora que o livro se torna mais acessível. E o cinema esteve antes e depois dele, como é bem assinalado.
     Enquanto o folheio até o saber de cor, "Lisboa, Cidade Triste e Alegre" faz enevoarem-se-me no presente os olhos da memória do passado que ele actualiza de forma inédita e pungente. Vejam, leiam e aprendam como o melhor da fotografia aconteceu em Lisboa, Portugal, nos anos 50. Por mim não esperava algo de tão declaradamente bom, justo e comovente como este livro e as suas fotografias.
     Se o tempo parou para permanecer em Portugal no Século XX com a fotografia foi aqui. Parou e permanece impresso num duro e intransigente uso de um equipamento e de um dispositivo gráfico em forma de livro.

domingo, 29 de novembro de 2015

Dois irmãos (algumas rosas)

    "Minha Mãe"/"Mia madre", o mais recente filme de Nanni Moretti (2015), que se segue a "Habemus Papam - Temos Papa"/"Habemus Papam" (2011) na sua obra, revela mais uma vez uma mestria que já nem sequer é inesperada nele. Depois da morte do filho, em "O Quarto do Filho"/"La stanza del figlio" (2001), é pela experiência da morte da mãe que o cineasta passa de forma muito, cada vez mais discreta, em surdina.
                      http://www.filmitalia.org/Files/2015/03/26/1427384863709.jpg?1427384863733              
    Deixando a parte principal para a irmã, Margherita/Margherita Buy, realizadora de cinema enquanto trabalha nas filmagens de um novo filme, o cineasta remete-se como actor para um discreto irmão, Giovanni, que acompanha mais de perto a idosa e doente mãe, hospitalizada, Ada/Giulia Lazzarini, para o que chega a pedir uma licença sem vencimento no seu emprego (que depois tenta passar a algo mais radical).
    Mas muito curiosamente Moretti transfere para outrem o papel que lhe deveria caber, o de realizador de cinema, o que lhe permite, como cineasta, ver mais e ver melhor nos problemas com que Margherita se defronta no trabalho, nomeadamente com um actor americano de segunda ordem mas muito convencido, Barry Huggins/John Turturro, e com os seus flashes de sonho, de alucinação, medo e desejo. Quer o filme a ser feito quer os sonhos da sua realizadora introduzem uma outra, segunda ou terceira dimensão em "Minha Mãe".
                     http://www.filmitalia.org/Files/2015/03/26/1427384895715.jpg?1427384895737                    
     Há ainda Livia/Beatrice Mancini, filha de Margherita e neta de Ada, que a propósito do latim que estuda e a avó ensinara com esta estabelece uma relação especial - a tal ponto que sobre ela a avó conhece o que a sua mãe desconhecia.
     O foco em Margherita permite a Nanni Moretti tratar melhor de si e da sua experiência sem a pessoalizar em si próprio, criando com uma excelente Margherita Buy uma figura à beira de passar da neurose ao colapso total que um actor completamente inapto, além da situação clínica da mãe dela que se agrava e da sua progressiva queda na rotina profissional, favorece. E aí são, de facto, os flashes, os sonhos dela que, de uma forma consistente com o que acontece na obra do cineasta vêm pontuar e esclarecer uma experiência dos limites que ela atravessa com o escasso apoio do irmão, só consigo própria e com a sua falta de razão, até ao fim. Por seu lado, as instruções insistentes dela com os seus actores relevam de uma insatisfação que procura ultrapassar-se sempre através do mesmo método, pelo que passaram a fazer parte da sua rotina que ela quer combater.              
                     Mia Madre, il film di Nanni Moretti è stato venduto in oltre trenta paesi
    Com uma grande secura cinematográfica, que nem a música, maioritariamente de Arvo Part anula, Nanni Moretti consegue um filme notável sobre mães e filhas que convivem dificilmente umas com as outras, e com os outros - sobre a ternura, a impaciência, o despero. A elipse da morte de Ada é notável, tal como o plano final de Margherita.
     Incluindo uma alusão expressa num sonho de Margherita de "As Asas do Desejo"/"Der Himmel über Berlin", de Wim Wenders (1987), com a fila de espectadores a esperar pela entrada na sala para assistirem ao filme, Nanni Moretti confirma em "Minha Mãe" ser um dos maiores cineastas contemporâneos. Se a psicanálise pode ser, como em Woody Allen, uma boa, indispensável entrada na sua obra, ela não pode para o efeito ser usada de forma simplificada ou simplificadora (sobre Nanni Moretti ver "Um lugar vazio", de 4 de Março de 2012).

domingo, 22 de novembro de 2015

A loucura dos deuses


  A terminar o festival do documentário que esteve a apresentar, o Arte mostrou na sexta-feira passada "Sleepless in New York", do suíço  Christian Frei (2014), que conta com a participação da antropóloga  Helen Fisher. 
     Com o director de fotografia Peter Indergand, o realizador percorre a cidade em busca de gente que rompeu, terminou uma relação de amor, para ouvir de alguns, os que segue em especial (Michael Hariton, Rosey La Rouge, Alley Scott), os seus queixumes, desabafos e memórias. Com a antropóloga como guia, o filme passa pelo scanner que identifica no cérebro a mesma zona onde decorre o amor e a dor da separação, demonstrando que equivalem a uma forte dor de dentes, a maior dor que se conhece.  
                       
      O sentimento de desolação que se instala de personagem para personagem toma conta do filme, mau grado as intervenções animadoras e moralizadoras de Helen Fisher, que chega a definir por palavras o amor de que o filme trata. O que se torna mais fácil, porque mais claro, quando ele acaba.
     As imagens de New York são inéditas e belíssimas, no crepúsculo, no lusco-fusco, nos transportes, na rua, nos jardins - embora haja também a parada das sereias em Coney Island - e a análise dos movimentos de acasalamento no bar para solitários adianta alguma coisa mais sobre o assunto. Nada que não soubéssemos já mas que nos interessa a todos. 
                           
     "A loucura dos deuses" era como os gregos na Antiguidade consideravam o amor. Por mim, continuo com Jacques: "não há amor, mas apenas as provas desse amor" (in "Les Dames du Bois de Boulogne", de Robert Bresson, 1945), e chamem-me o que quiserem. Sobre o assunto é "Romance", de Helder Macedo, acabado de sair (Lisboa: Presença, 2015), que vivamente recomendo a quem ainda souber ler poesia portuguesa (sobre este escritor, ver "Era Nantes e amanhecia", de 30 de Abril de 2013, e "Estudos de referência", de 14 de Fevereiro de 2014). 
     Entre o amor do amor e o temor do amor, nunca estamos preparados para o seu início, para o seu desenrolar, para o seu termo. De resto, apesar da excelente música com base em Max Richter, Eleni Karaindrou e Giya Kancheli, e incluindo Bach, embora dando todas as respostas a todas as perguntas que formula "Sleepless in New York"de Christian Frei apenas se aproxima de um mistério que permanece intacto. 

Os círculos do além na terra

     "Behemoth - Le dragon noir"/"Bei xi mo shou", de Zhao Liang (2015), é mais um documentário chinês sobre a China actual, que se ocupa da devastação ecológica e humana consequente ao grande progresso alcançado pela política económica do país nos últimos anos. A que preço, justamente, é a sua questão.
     Sempre com um grande apuro de construção, o filme estrutura-se com uma narrativa em off do próprio realizador e Sylvie Blum livremente inspirada na "Divina Comédia", de Dante, por forma a que, de degrau em degrau, vamos percorrendo o país, das montanhas da Mongólia às minas de carvão, mostrando sempre os rostos dos que nestas trabalham em grande-plano. Magníficas panorâmicas laterais dão conta da majestade mas também da devastação da paisagem.
                     © Viennale
      Quando a câmara substitui a panorâmica pelo travelling sobre estruturas calcinadas surge o fogo de uma siderurgia, e então o ecrã torna-se inteiramente vermelho antes de se regressar aos rostos, às dificuldades respiratórias, para mais tarde se tornar todo amarelado de poeira que se levanta.
     No final, uma visita ao cemitério e, a partir do azul do céu, a uma urbanização de grande qualidade que seria ali o paraíso na terra. Mas somos informados de que, à semelhançe de centenas de outras "cidades-fantasma", se encontra desabitada e as zonas assim desenvolvidas estão abandonadas.
                      Bei xi mo shou (2015) 4
     Em 30 anos, a extracção de carvão reduziu de 20% a superfície dos lagos da Mongólia-Interior e provocou prejuízos incalculáveis nos solos. Milhões de trabalhadores migrantes sofrem de pneumoconiose, de que centenas de milhar morreram já. Tudo isto enquanto a China progride, o que juntamente com as construções fantasma traça um retrato assustador de um país cujo progresso se faz com o trabalho mas contra a natureza e à custa do sacrifício dos próprios trabalhadores que era suposto beneficiar.
     Um espelho carregado às costas de um homem mostra o que atrás dele fica, afastando-se em sentido contrário ao dele, até ele se tornar, sempre no mesmo plano, uma pequena sombra brilhante na rua deserta. "Behemoth - Le dragon noir" de Zhao Liang passou a semana passada no canal cultural franco-alemão Arte integrado festival do documentário que ele muito apropriadamente e sempre com filmes de grande qualidade transmitiu (sobre o documentário na China ver "Um documentário épico", de 4 de Novembro de 2012).

sábado, 21 de novembro de 2015

Exigência

     A aguardada primeira longa-metragem de João Salaviza, "Montanha" (2015), vem confirmar inteiramente o talento já revelado pelo cineasta nas suas três curtas-metragens iniciais. Filmado numa linha que delas provém, com outros desenvolvimentos, este um filme que exige que para falar sobre ele seja inventada uma nova linguagem.
      Com uma construção baseada no plano fixo, frequentemente muito próximo das personagens, ele desenvolve-se sem música que não seja a que provém do espaço da diegese, salvo no genérico final, o que reforça a continuidade com os filmes anteriores. Além disso, deles se distingue por um maior recurso aos interiores, embora nos exteriores mantenha o interesse pela arquitectura urbana. 
                     
       Mostrando uma grande desenvoltura e certeza formal, em "Montanha" João Salaviza recorre a uma panorãmica de 360º num quarto e usa com pertinência deliberada a profundidade de campo em pelo menos dois momentos: quando a mãe/Maria João Pinho se afasta para sacudir um tapete do carro e David/David Mourato se lhe vai juntar, depois nos corredores do hospital onde o avô deste está internado, quando durante uma conversa entre mae e filho um funcionário hospitalar entra por uma porta ao fundo.
     Além disto, há a estupenda conversa entre David e a sua directora de turma com esta permanentemente invisível, fora de campo. Depois da cena triangular, a noite entre David e Paula é dada em três planos, mostrando, involuntariamente talvez, que, como escreve Georges Didi-Huberman sobre Jean-Luc Godard, também o contracampo é uma questão de ética (1). As baixas na narrativa são uma mota roubada e disputada com Rafa/Rodrigo Perdigão e o avô de David, num final muito bem construído só com David ao telefone, seguido pela sua conversa com a mãe, que lhe pergunta as horas. "Ainda é cedo. Dorme", responde ele, e o filme acaba.
                     ...
      A exigência de João Salaviza, que vem de trás, leva-o a concentrar-se no seu protagonista, ensimesmado e fechado sobre si e em espaços interiores, dando dele as relações indispensáveis, nomeadamente com o espaço urbano e com os outros, para o compreender no que nas circunstâncias interessa. A partir daí ele exige a atenção e a adesão do espectador sem lhe dar nada mais em troca do que rostos, corpos, palavras e uma narrativa rarificada, reduzida com sabedoria ao osso da adolescência inteira
    Se é certo que tudo é ainda muito rígido, do plano fixo aos jogos com a linguagem cinematográfica, embora sempre jusificado, o povoamento sonoro dos planos em que as coisas acontecem, proveniente do fora de campo, é excelente. Na sua intransigência apaixonada, "Montanha" de João Salaviza é um filme admirável que promete muito ao cumprir aquilo que as suas curtas iniciais anunciavam (ver "Em nome do cinema", de 31 de Maio de 2012). 

      Notas
     (1) Cf. Georges Didi-Huberman, in "L'oeil de l'histoire, 5 - Passés cités par JLG" (Paris: Les Éditions de Minuit, 2015).