“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Boa colheita

     O mais recente filme de Ken Loach, "O Salão de Jimmy"/"Jimmy's Hall" (2014), é mais um bom filme que faz jus à fama do cineasta como nome mítico do cinema inglês desde os anos 60. Com argumento de Paul Laverty, seu colaborador regular desde 1996 ("A canção de Carla"/"Carla's Song"), baseado em peça de Donal O'Kelly, apresenta-se como um filme de época sobre a Irlanda na primeira metade dos anos 30, uma época em que se encontrava em estado larvar o conflito entre o movimento operário e a Igreja Católica, que está justamente no centro deste filme.                       
                      Barry Ward (centre) in Jimmy's Hall
     Ken Loach começou por trabalhar para a televisão antes de se estrear no cinema com "Poor Cow" (1967) e regressou à televisão nos anos 70 por dificuldades do cinema britânico nessa década. Com uma importante obra no documentário, o cineasta tem-se afirmado pelo tratamento realista dos temas dos seus filmes, em que, contudo preserva um lado sentimental e romântico, que por vezes o prejudica quando levado até ao melodrama. Palma de Ouro em Cannes por "Brisa de Mudança"/"The Wind That Shakes the Barley" (2006), sobre a Irlanda do princípio do Século XX, tinha com esse filme deixado fraca impressão por um uso excessivo de música extra-diegética, o que me deixou má impressão por levar a uma montagem audiovisual incaracterística mas não impressionou negativamente o júri de Cannes.
   Em "O Salão de Jimmy" o problema não se repete porque o próprio filme inclui grande quantidade de música diegética, o que lhe confere uma justificação específica e equilibra a música extra-diegética, que assim não compromete. A história é muito simples, linear mesmo, e o seu conflito por causa da abertura de um salão de baile, também destinado a outros usos de convívio e didácticos, pelo protagonista, James Gralton/Barry Ward, é muito elucidativo sobre a Irlanda e uma época. Penso mesmo que haverá quem, a esta distãncia, considere o conflito mostrado difícil de compreender, mas nele estão presentes todos os elementos de época, nacionais e internacionais, que permitem entendê-lo.
                      Jimmy's Hall                
     Iniciando-se com imagens documentais, o filme a elas regressa durante uma sessão de cinema, como que para incluir tudo o que é indispensável para revestir inteira credibilidade. Que um pároco de aldeia, Father Sheridan/Jim Norton, se oponha ao salão de Jimmy invocando contra ele a defesa da música tradicional irlandesa é muito curioso e está à altura da persistência de Jimmy no seu projecto em favor da celebração e da festa, com grande apoio da população local. E em volta da posição da Igreja Católica movem-se outros interesses, que acabam por mostrar-se muito claramente. Um dos lados mais incómodos do cinema de Loach é, além do pendor melodramático, o seu propósito demasiado didáctico, o que por vezes o limita mas não chega a acontecer neste caso, embora ande perto na figura de Father Seamus/Andrew Scott.
      Com personagens femininas muito boas - Oonagh/Simone Kirby (muito boas as cenas com James Gralton, notável a dos dois no salão vazio), Marie/Aisling Franciosi e a mãe de Jimmy (notável a cena em que ela colabora com o filho na sua fuga) - "O Salão de Jimmy" consegue ultrapassar um simples conflito de ideias e atitudes perante a vida com um respeito integral pelos argumentos em jogo e pelo peso das forças em confronto, que é também um confronto de modos de vida, e até a um final feliz somos poupados. Com boa realização, fluente e escorreita, atenta aos pormenores mas sempre sobre as personagens, boa fotografia de Robbie Ryan e sem que a música, de George Fenton, comande a montagem, justa e funcional, de Jonathan Morris, este é, portanto, um filme de Ken Loach de boa colheita.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Descobrir o mundo

     "11 Flowers"/"Onze fleus"/"Wo 11", do chinês Xiaoshuai Wang (2011), cineasta de quem conhecíamos "Bicicleta de Pequim"/"Shiki sui de dan che" (2001) e "Sonhar com Shangai"/"Qing hong" (2005), é um filme inquieto e muito bom sobre o aproximar da adolescência na China em 1975, um ano antes do final da Revolução Cultural, na província de Ghizou. Com co-produção francesa, o filme assume referências culturais e cinematográficas francesas que lhe são essenciais.
       Wang Han/Wenqing Liu é aluno de uma escola e com os seus amigos da mesma idade faz "trinta por uma linha" à maneira dos muito jovens protagonistas dos filmes iniciais de François Truffaut - "Os Putos"/"Les mistons", 1957, e "Os quatrocentos Golpes"/"Les quatre cents coups", 1959. O pai/Jingchun Wang, que trabalha longe, procura incutir-lhe o gosto pela pintura, enquanto da mãe/Ni Yan, operária, ele espera que lhe ofereça uma camisa nova, que lhe foi imposta na escola por ser o melhor aluno de ginástica.
                     Wang Han et ses copains. (DR)              
    Vestindo a sua camisa nova, branca, dificilmente conseguida, Wang Han vai continuar com os seus amigos as suas tropelias, próprias da idade e do meio, até perder esse novo símbolo para o homem em fuga/Ziyi Wang acusado da morte de um dirigente comunista, com o qual assume uma cumplicidade tácita, feita de meias palavras e de promessas - a revelação do crime tinha surgido com o aparecimento do cadáver do homem morto. A partir daqui tudo se complica entre os quatro amigos e entre eles e os mais velhos.
    Nos tempos confusos que se seguem vai ser a conversa de Wang Han com o pai sobre pintura (o impressionismo do Século XIX) e a sua descoberta de que os homens agem agressivamente uns com os outros por causa das mulheres o que vai assinalar a parte final do filme, que termina com a execução fora de campo do assassino, depois de ter cumprido a sua promessa a Wang Han, e as palavras que no presente recordam o passado, que respondem ao início do filme, a preto e branco.
                      Une scène du film franco-chinois de Wang Xiaoshuai, "11 fleurs" ("Wo 11").                  
    De uma grande subtileza e de um grande pudor, sem abandonar o ponto de vista do seu muito jovem protagonista "11 Flowers" tem uma fotografia exemplar (Jonsong Dong e Dong Jinsong) que para o final se demora em momentos impressionistas (o rio e as suas margens, a entrada da casa de família), sem nunca abandonar um certo tom evocativo que o facto de o filme se referir a memórias distantes justifica (Xiaoshuai Wang é também co-argumentista).
    Na distância temporal somos assim levados a revisitar uma época difícil da sociedade chinesa através dos olhos, curiosos e descomprometidos, de um miúdo que não sabemos se terá colhido ensinamentos daquilo que então viveu - nós tiramo-los por via indirecta, ficcional, melhor do que tomaríamos por via directa, documental. Num meio fechado sobre si mesmo, a cenografia, os acontecimentos e as palavras falam eloquentemente sobre uma época e um meio, num filme que as contaminações culturais enriquecem como uma tomada de consciência das personagens e do seu autor.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

A memória desconhecida

      "Ida" é a quinta-longa-metragem de ficção do polaco Pawel Pawlikowski (2013), realizador e co-argumentista como costuma acontecer nos seus filmes. Num audacioso e muito conseguido preto e branco, o filme acompanha Anna/Agata Trzebuchowska em 1962 na Polónia, quando, antes de tomar votos no convento onde foi educada como orfã, vai à procura de uma tia que desconhecia, Wanda/Agata Kulesz, que a poderá esclarecer sobre os seus pais. 
                     Ida
       Para além do tema - os pais de Anna, aliás Ida, eram judeus e foram mortos durante a II Guerra Mundial -, este é um filme exigentemente construído, em que por vezes as protagonistas surgem com o rosto cortado no bordo esquerdo do plano e são repetidamente colocadas na parte inferior deste, o que sistematicamente as remete, por vezes com a ajuda de um plongé, para uma posição minorada, subalterna. Em termos espaciais são as cenas com o pai, em especial no corredor do hospital, primeiro, com o filho em casa, depois, que em termos wellesianos esclarecem o que aqui está em jogo - o cubo perspéctivo, olhar de baixo para cima as personagens na escadaria.
      A austeridade da construção formal, para a qual contribui a escassa, por vezes quase inaudível música extra-diegética, em contraste com a exaltada música diegética, e em que o preto e branco é muito importante, joga bem com o tema e sobretudo não tem um carácter gratuito, já que por si mesma fala, significa. E quando as protagonistas visitam a campa dos pais de Ida e do filho de Wanda, a floresta natural assume traços expressionistas.
                    
      A conclusão parece-me muito apropriada: depois do suicídio de Wanda, perante a alternativa de "compramos um cão, casamos e temos filhos, como é costume", Anna/Ida opta pelo hábito, pelo presumível regresso convento. Com grande dignidade narrativa e estética, "Ida" cumpre-se no sentido das linhas curvas que, em semi-círculo, repetidamente preenchem a parte superior do plano.
      O cinema polaco tem uma história e uma tradição muito importante, perante as quais não sei ainda como situar Pawel Pawlikowski - se é aí que ele deve ser situado, já que tem tido uma carreira internacional depois de ter feito a sua formação em Inglaterra, onde se estreou no documentário em 1991. Agora este filme dá-me a certeza de estar perante um grande cineasta, senhor dos meios próprios do cinema e da sua linguagem, perfeitamente à altura do passado do cinema do seu país. Vamos, por isso, segui-lo com atenção.

A verdadeira história

     De Bruno de Almeida conhecia apenas "Em Fuga"/"On the Run" (1999) ), um filme desembaraçado, e "The Lovebirds" (2007), um filme cativante na simplicidade e concentração da sua construção epacio-temporal, que me tinha deixado muito boa impressão. Dele estreou no final do ano passado "Operação Outono" (2012), um filme comprometido com a história, muito bom e emotivo.
          Ocupando-se do assassínato do General Humberto Delgado pela PIDE em 1965, com base no livro escrito pelo seu neto e biógrafo Frederico Delgado Rosa, "Humberto Delgado - Biografia do General Sem Medo" (Lisboa: Esfera dos Livros, 2008), é um filme sério e conseguido que cumpre com dignidade e brio um dever de consciência perante os crimes cometidos pelo Estado Novo contra aqueles que se lhe opuseram. O caso de que trata foi um dos mais graves, quando não o mais grave dos crimes políticos do regime fascista contra uma das mais destacadas figuras que assumiram o combate cívico e político contra ele, com especial destaque a partir da sua candidatura às eleições presidenciais de 1958.
                   
     No dispositivo narrativo que o realizador, também co-argumentista com Frederico Delgado Rosa e John Frey, adopta assume particular importância, para além da figura do próprio Humberto Delgado/John Ventimiglia, a própria polícia política e cada um dos seus membros, com realce para os que participaram na Operação Outono que dá o título ao filme, incluindo os que trabalharam como infiltrados na sua preparação. Penso que essa foi uma decisão acertada, pois com base em composições rigorosas dos actores permite mostrar a rotina criminosa de uma organização odiosa, que foi o principal sustentáculo do regime e aqui surge como um gang criminal que além do mais foi.
      Com uma realização clara e precisa, sem qualquer concessão ao mau gosto mas também sem qualquer concessão perante os factos e a realidade que desvenda, o filme na sua primeira parte acompanha a figura carismática do General durante o seu exílio até à cilada a que foi conduzido com a sua secretária, Arajaryr Campos/Renata Batista, próximo de Badajoz, numa segunda parte, em paralelo com as diligências oficiais espanholas, segue a gestão pela PIDE do crime cometido por forma a ocultá-lo, para dedicar a sua parte final ao julgamento que teve lugar a partir de 1978, já depois do fim do regime, a partir do qual o filme é habilmente construído. Os actores, impecáveis e dos quais não quero destacar nenhum, cumprem com brilho invulgar na composição das difíceis personagens que lhes cabem, de modo a que na qualidade dos seus desempenhos possa assentar o invulgar sucesso do filme, embora muito acertadamente Bruno de Almeida recorra frequentemente a planos aproximados para deles captar nos rostos a maior expressividade e utilize a música dos Dead Comb para exponencializar a emoção, no que também deixa a sua assinatura como cineasta.                             
                   
      Fica assim cumprido para além de qualquer expectativa, sem mácula, um projecto que visa constituir-se como o verdadeiro processo de um crime brutal e de um regime medonho, homenageando o herói, corajoso, destemido até à temeridade, e condenando impiedosamente os criminosos que o assassinaram. Qualquer país que teve de lidar com uma ditadura sente o dever de homenagear as suas vítimas e aqueles que a combateram, e de expôr os seus torcionários e criminosos, e é esse dever que, para a história, "Operação Outono" de Bruno de Almeida cumpre exemplarmente.
      Em contraste com as imagens do 25 de Abril, o uso de algumas fotografias conhecidas do General e de imagens documentais de televisão a preto e branco é muito apropriado, e a elisão do crime na narrativa cronológica está muito justamente preenchida pelo final a preto e branco. Da parte de um cineasta que tanto tem trabalhado o documentário como o filme de ficção, aí fica uma obra de respeito que se impõe para a história, contra o medo e os seus fantasmas. Com a devida palavra de muito apreço e grande respeito a Iva Delgado e toda a família do General Sem Medo, que em diferentes gerações trabalhou denodadamente para que a verdade deste filme, contra todas as mistificações anteriores e posteriores ao 25 de Abril, fosse possível (sobre o Estado Novo, ver também "Memória irrecusável", de 30 de Agosto de 2012).

domingo, 17 de agosto de 2014

Homens de confiança

     A terceira longa-metragem de ficção de Anton Corbijn, "Um Homem Muito Procurado"/"A Most Wanted Man" (2014), que foi o último filme interpretado por Philip Seymour Hoffman, não é apenas mais um filme baseado em romances de John le Carré, é um grande filme de espionagem situado na actualidade.
                     A Most Wanted Man
    É longa e muito proveitosa a relação do cinema e da televisão com os romances do autor, o grande mestre do romance de espionagem contemporâneo ao longo de mais de 50 anos. Chamar mítico ao autor não é exagero, e esse estatuto foi acompanhado no cinema e na televisão por actores míticos a interpretarem os filmes e séries baseados nos seus livros: Richard Burton, James Mason, Alec Guiness, Diane Keaton, Sean Connery, Pierce Brosnan, Ralph Fiennes, Gary Oldman, agora Philip Seymour Hoffman (ver "Negra África Negra", 12 de Fevereiro de 2012). Refiro-o à partida porque essa é uma obra literária destinada a grandes actores.
  "Um Homem Muito Procurado" baseia-se em personagens verídicas do actual conflito desencadeado pelo 11 de Setembro de 2001, de má memória, com refugiados de primeira e de segunda classe que procuram o Ocidente e que o Ocidente e os Estados Unidos procuram. O protagonista é um espião alemão batido, Günther Bachmann/Philip Seymour Hoffman, que fuma e bebe muito e, ajudado pela sua assistente, Irma Frey/Nina Hoss, assume a missão de resgatar um refugiado muçulmano tchecheno, Issa Karpov/Grigoriy Dobrygin, que é apoiado por uma advogada, Annabel Richter/Rachel McAdams, em Hamburgo. Para isso vai ter que estabelecer contacto com um líder muçulmano, Abdullah/Hoamayoun Ershadi, o discutível "homem de confiança" desta história, que se tratará de capturar com a colaboração do "homem de confiança" de Issa, o banqueiro Tommy Brue/Willem Dafoe.
              A Most Wanted Man                               
     Anton Corbijn, que se estreou na longa-metragem de ficção com "Control" (2007) e fez a seguir "O Americano"/"The American" (2010), adopta aqui o estilo clássico do segundo para conseguir cobrir toda a gama de situações dúbias entre serviços secretos concorrentes, que cooperam mas também rivalizam entre si, típicas da obra de John le Carré. Mais uma vez batido no final pelos americanos (Martha Sullivan/Robin Wright) num assunto de candente actualidade, Günther Bachmann tem o carisma que os heróis, ou anti-heróis dos romances de le Carré costumam ter e que Philip Seymour Hoffman integral e superlativamente lhe confere.
    De grande qualidade na sua narrativa, seca e crua mas emotiva, com momentos de acção e de tensão dramática muito bem resolvidos, este é um filme que se torna histórico por ter sido o último de Philip Seymour Hoffman, que entre o corpo e rosto resolve uma interpretação superior e memorável, com a qual se despediu e reforçou o seu estatuto de referência do cinema americano. Além disso, os outros actores e actrizes estão muito bem, a fotografia, a música e a montagem são excelentes e sobretudo a realização de Anton Corbijn confere unidade e coerência ao filme, o que por si mesmo o impõe.    
                    mostwanted2
     Na linha do que anteriormente sobre romances do autor fizeram Martin Ritt ("O Espião Que Saiu do Frio"/"The Spy Who Came in from the Cold", 1965), Sidney Lumet ("Duas Plateias para a Morte"/"The Deadly Affair", 1966), George Roy Hill ("A Rapariga do Tambor"/"The Little Drummer Girl", 1985) e Fred Schepisi (" Casa da Rússia"/"The Russia House", 1990), em tempos mais recentes John Boorman ("O Alfaiate do Panamá"/"The Taylor of Panama", 2001), Fernando Meirelles ("O Fiel Jardineiro"/"The Constant Gardener", 2005) e Tomas Alfredson ("A Toupeira"/"Tinker Tailor Soldier Spy", 2011), que a espionagem, "a mais antiga profissão do mundo" a seguir à outra, a este nível superior precisa de ser tratada em termos claros, precisos e perceptíveis, o que em geral é pouco compatível com o grande arrojo ou a inovação formal, "Uma Homem Muito Procurado" fica muito bem situado na já longa lista de adaptações de John le Carré ao cinema. E Anton Corbijn é um cineasta a seguir.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

A revolta

    "King of Devil's Island"/"Les révoltés de l'ile du diable"/"Kongen av Bastoy", do norueguês Marius Holst (2010), é um excelente filme, duro e impiedoso, sobre um centro para jovens delinquentes na ilha de Bastoy, na costa ao largo de Oslo, corria o ano de 1915, baseado em factos reais. Inédito em Portugal, vale a pena deter-me aqui sobre ele. 
                     Stellan Skarsgard in The King of Devil's Island
   Os jovens internados são tratados por números de código, C1/Trond Nilssen, C5/Magnus Langlete, C19/Benjamin Helstad entre muitos, todos os outros, e acompanhamos os dois últimos desde a sua chegada. Sob as ordens do Director Bestyreren/Stellan Skarsgârd e do encarregado Brathen/Kristoffer Joner, submetidos a uma disciplina rígida e sujeitos a castigos corporais a vida deles torna-se muito difícil. C19, que não sabe ler nem escrever e foi tripulante de um baleeiro, conta a C1 uma história de mar, navios e baleias, que este redige - memórias de "Moby Dick", de Herman Melville e John Huston (1956). 
     As condenadas tentativas de fuga sucedem-se, até que no final rebenta a revolta generalizada suscitada sobretudo pelo comportamento de Brathen com C5, que levara este ao suicídio.
                    
     Interpretado maioritariamente por jovens em início de carreira, alguns deles com passagem pela prisão, este filme detém-se e demora-se na solidariedade e na revolta dos jovens detidos na situação muito difícil, precária e desumana, em que são mantidos por aqueles que agem em nome da sociedade, da lei e da religião ao exercerem a autoridade que lhes foi conferida de modo abusivo, prepotente e cruel.
      Com desempenhos notáveis, incluindo os dos dois actores profissionais mais velhos, "King of Devil's Island" estabelece-se como uma referência histórica no cinema norueguês e no cinema europeu devido a uma realização rigorosa e exigente, que mantém constantemente presente o mar em volta da ilha, no que ele significa como fronteira inultrapassável e como convite a vencê-la - aquele mar é a liberdade. Quão precário ele é mostra-o o final de grande dramatismo, que culmina sobre blocos de gelo.
                    
    De facto, uma inequívoca e legítima energia rebelde contra um domínio opressor e injusto resulta das interpretações e da realização, numa bela homenagem a personagens verídicas e a situações verídicas. A elas como àqueles que aqui as recriaram para o cinema presto aqui a minha homenagem. Ao Arte o meu apreço pela sua actual programação de cinema.

Uma relação condenada

    Do romeno Corneliu Porumboiu, de quem conhecíamos "12:08 a Este de Bucareste"/"A fost sau n-a fost?" (2006), chega-nos agora "Quando a Noite Cai em Bucareste ou Metabolismo"/"Când se lasa seara peste Bucaresti sau metabolism" (2013). Passado entre um realizador de cinema, Paul/Bogdan Dumitrache, e uma actriz, Alina/Diana Avramut, o filme desconcerta-nos com as suas sucessivas voltas em torno dos protagonistas, cuja relação acaba por se tornar desorientada.
     Com argumento do próprio realizador, o vago tom de absurdo que, sem a ironia do seu filme de 2006 se apodera deste filme conduz a um progressivo desalento, que poderá ser o sentimento, comum ao novo cinema novo romeno, que pretende transmitir (ver "Percurso exemplar", 14 de Abril de 2012). Numa sociedade alheada e conformista, em que a mentira e o logro se tornaram lugar-comum, na aparentemente estéril e condenada relação estabelecida entre o realizador e a actriz, em que a repetição sistemática da mesma cena ocupa lugar central, paira a obsessão pela exactidão e as suas possíveis variantes contra um pano de fundo que gira em seco.
                     Cand se lasa seara peste Bucuresti sau metabolism
     Pode o filme em preparação neste filme concluir-se e ser um sucesso, aliás dele apenas ficamos a conhecer intenções e pedaços soltos não mostrados. Agora "Quando a Noite Cai em Bucareste ou Metabolismo" passa-se nas fissuras do filme, nos bastidores da preparação da sua rodagem, e esse em termos de metacinema o seu lado mais compreensível e agradável. De resto a monotonia que estabelece diz mais de uma sociedade que de um filme que deliberadamente a procura e trabalha, em que é de ressalvar a tentativa de abrir novos caminhos.
     Há habilidade e bom gosto na construção do filme, nomeadamente a insistência no plano longo que vem aumentar a monotonia, e pode, mesmo sem conhecermos o seu filme anterior, "Politist, adjectiv" (2009), entender-se a utilidade que ele tenha tido para Cornelius Porumbiou. Não direi, por isso, que alguma coisa começa a deslizar no novo cinema novo romeno", nem que ele parece girar em círculo em torno de si mesmo, mas que esboça aqui uma procura de novos caminhos, de referências e de diversidade, que como tal se pode apresentar.

Um amor difícil

    Como Elia Suleiman nascido em Nazaré, em Israel, Hany Abu-Assad tornou-se conhecido com "O Paraíso Agora!"/"Paradise Now" (2005) e dele estreou há pouco "Omar" (2013), um novo filme a vários títulos notável, em si mesmo e na dissecação de uma situação difícil e complexa no Médio Oriente, com efeitos devastadores que todos conhecemos num conflito infindável.
                      Omar APSA nominations
    Com argumento da sua autoria e produção sua, o filme embrenha-se nas relações entre três amigos palestinianos, Omar/Adam Bakri, Amjad/Samer Bisharat e Tarek/Eyad Hourani, pela irmã do qual, Nadia/Leem Lubany, apesar do muro que os separa o primeiro está apaixonado. A partir daqui pode ser considerado a história de um difícil amor, pois os namorados se encontram separados pelo Muro da Separação, sem prejuízo de ser visto também como um filme de acção a partir do atentado contra uma unidade militar israelita perpretado pelos três amigos, na sequência do qual Omar é preso.
     Muito bem urdida e construída em termos cinematográficos, a narrativa de "Omar" vai do amor ao ódio, do conflito à traição, o que de maneira muito clara expõe de modo a interessar-nos nas suas personagens e no que lhes acontece. Frente a um polícia israelita que o manipula, tentando torná-lo seu informador, Omar tem de enfrentar a traição de Amjad, que acaba por, depois da morte de Tarek, casar com Nadia.
                      film-omar-650
    Com imaginação, Hani Abu-Assad trabalha sobre o imaginário do próprio conflito israelo-palestiniano assumindo um ponto de vista definido, o do palestiniano Omar, mas questionando-o também exaustivamente na sua coesão e coerência, na rede de cumplicidades em que ele se envolve e no destino das suas amizades e amores, o que confere todo o interesse ao filme. Com actores muito bons, "Omar" oferece-se como uma tragédia actual, de que contém todos os ingredientes numa mistura explosiva.
      Condimentado por dispersos elementos de humor (as sete irmãs de Amjad), este é um filme muito bom que fala pelo cinema da Palestina mas também pelos palestinianos de uma forma que não se pretende redutora ou simplista, antes pretende enfrentar a complexidade da situação e das suas personagens, o que o torna um filme de grande importância.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

O espaço entre

      "Bubble" é um filme com quase uma década (2005) que não teve estreia comercial entre nós e em que Steven Soderbergh se dedica a um dos seus exercícios mais pessoais, que tem alternado com filmes mais comerciais (ver "De primeira água", 11 de Fevereiro de 2012, "Bom tema, bom filme", 10 de Junho de 2012, e "Jogo fatal", 10 de Março de 2013).
                   
    Passado entre operários de uma fábrica de bonecas no Midwest, local inusitado que o marca decisivamente, entre eles o filme destaca e segue um triângulo improvável: a gorda Martha/Debbie Doebereiner, o instável Kyle/Dustin Ashley e a recém-chegada Rose/Misty Wilkins, com uma filha de 2 anos, que se vem intrometer na amizade que os liga. Interpretado por não-profissionais, tudo se joga na sobriedade expressiva dos actores e na dinâmica sóbria mas muito expressiva da realização.
   Explicando o menos possível sobre a motivação de cada um, "Bubble" deixa muito maior espaço ao espectador para, na fresta aberta entre o que mostra e o que, sugerido, esconde, interpretar, decifrar o que está por trás do comportamento de cada personagem. Com uma segura definição do espaço em que se inscrevem as personagens, definido pela distância certa a estas, e um ritmo que, distendido, a música e a montagem (com pontuações clássicas) criam, o filme apresenta-se forte e cativante, algures num espaço não identificado de cinema independente - com argumento de Coleman Hough (o mesmo de "Vidas a Nu"/"Full Frontal", 2002), tem fotografia e montagem do próprio cineasta (sob pseudónimo) e música de Robert Pollard.
                  
   Com simplicidade, secura e elegância, longe de Hollywood e das suas receitas de sucesso Steven Soderbergh prosseguiu aqui uma outra faceta da sua obra em que se tem exprimido mais à-vontade, sem constrangimentos de produção, o que lhe tem permitido ser experimental, inventivo e cinematograficamente muito bom em termos mais pessoais - a edição dvd em português tem como título "Bubble - Uma Nova Experiência de Steven Soderbergh". E penso que ele próprio assim tem conseguido respirar melhor e gerir melhor a sua actividade em Hollywood, que inclui a participação na produção de filmes relevantes.   

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Sair devagar

   "Ciúme"/"La Jalousie" (2013) é um estranho filme de um grande cineasta francês, Philippe Garrel, o grande moderno sobrevivente da "nouvelle vague". No seu intransigente preto e branco, o cineasta investe de novo, como nos seus inícios, uma história familiar mas já não simplesmente triangular no modelo da sagrada família (o que na linguagem bárbara de hoje se chama "par monoparental"), antes bicuda.
                     gelosia
   Nem sequer é o Garrel tradicional este filme que nos pega pelas ventas com o seu despretensioso ar de crónica do quotidiano de um jovem adulto, Louis/Louis Garrel, colhido nas passagens entre mulheres, de Clothilde/Rebecca Convenant para Claudia/Anna Mouglalis. Sem fixação definida, num meio teatral o protagonista adopta um comportamento algo teatral que contamina as suas relações. Contudo, como o cineasta ele é um puro, que acredita, o que hoje fará o descrédito do filme e do cineasta.
    Desse modo, por intermédio da filha "Ciúme" leva-nos atrás do lado feminino do filme sem deixar rasto senão no próprio Louis. Philippe Garrel é um grande cineasta do amor, do par primordial e das relações múltiplas, que aqui atinge, em muito curta duração, uma síntese superior da sua arte, despretensiosamente mas com o seu tom pessoal, fazendo o filme do costume, que dele se esperava sem esperar, e com ele voltando a surpreender e encantar.
                     La Jalousie
      Como no seu melhor, tudo aqui passa pela simples expressão física e facial das personagens e pelos diálogos, de uma forma hoje em dia pouco usual mas que aproveita e expressa as possibilidades maiores do cinema como arte visual, sonora e narrativa, sem se aproveitar de um esquema típico de acção, antes concentrando todas as relações e emoções das personagens no seu corpo no espaço e no tempo do plano, aquele e não outro, de que só ele tem a arte e o segredo.
     Paris 2013 a preto e branco, de "Ciúme" de Philippe Garrel deve sair-se devagar, acendendo um cigarro por um cinema que só por ele ainda existe, num filme que me faz lembrar "Beijos Roubados"/"Baisers volés", de François Truffaut (1968).   
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       Pois é preciso ver e perceber que, descartado Louis na sua teatralidade segura, ficam as mulheres na sua segurança fugidia, flutuante, que diz neste filme tudo aquilo que de fundamental, contra a evidência há a dizer. Sobre elas mais que sobre ele, suprema mestria. Com Esther e lembrando Maurice Garrel (1923-2011).