“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Poesia maior

        Portugal é por vezes qualificado como "um país de poetas", o que poderá ser considerado um elogio se pensarmos em poetas maiores - e só nesse caso. Mas são sempre necessárias as boas traduções para todos sabermos como foi a poesia antes, num tempo em que nem sequer existiam a actual divisão política da Europa ou as línguas actuais, como foi e é a poesia, antiga ou moderna, de povos e idiomas diferentes, que não dominemos. 
         A "Antologia da Poesia Grega Clássica", com tradução e notas complementares de Albano Martins, um dos poetas maiores de língua portuguesa da sua geração, cumpre de forma mais que perfeita o encargo que assumiu de verter para português a poesia de uma época e de uma sociedade absolutamente fundamental porque fundadora da cultura europeia e ocidental. Editada, em 2ª edição, pela Afrontamento (2011), ela recolhe e verte para português o cruzamento que nessa poesia se verifica entre a epopeia, a lírica e a tragédia - e com a filosofia (1) -, em geral por recurso a fragmentos, ou porque eles foram o que dessa poesia nos chegou ou então porque selecciona excertos de poemas longos.
                                      
            Nesta "Antologia da Poesia Grega Clássica" o tradutor aproveita bem as antologia que lhe foram dedicadas em França na segunda metade do Século XX, de Robert Brasillach (1964) e Marguerite Yourcenar (1981), utilizando a apresentação de cada autor feita nessas edições, embora tenha moldado a sua tradução sobre o texto grego, ao que acrescenta, no final, notas complementares. Ao lê-la somos remetidos, no caso da epopeia e do teatro para os textos completos, e sempre para uma cultura fundadora em todos os aspectos, na poesia e no teatro, na política e na filosofia, do que de mais importante veio a suceder depois, até à actualidade, no pensamento e nas artes da Europa e do mundo ocidental, de forma a nela reconhecermos uma radical modernidade e um radical fundamento de todas as modernidades que a conheceram (2). Erudito e vertiginoso.
      Aliás, também da responsabilidade de Albano Martins saiu na mesma editora "Três momentos da poesia europeia (De Safo e Píndaro a Ungaretti e Salinas)", com selecção, tradução e notas suas, um volume que recobre parcialmente a mesma época mas também inclui poesia italiana e espanhola recente menos conhecida, tudo traduzido de forma primorosa, modelar (2012). E a Afrontamento, que publicou a poesia completa deste poeta maior, "As Escarpas do Dia (Poesia 1950-2010)", com Prefácio de Vítor Aguiar e Silva, publicou em 2012 o seu novo livro de poesia, "Estão agora floridas as magnólias", em que a depuração da sua escrita poética o faz aproximar-se do hai-ku japonês.
                                             Estão Floridas As Magnólias - Ampliar Imagem             
         A tradução de poesia não está ao alcance de um qualquer tradutor, de qualquer um que domine bem várias línguas, pois exige o saber e a sensibilidade de um poeta, de preferência de um grande poeta, que a saiba sopesar, avaliar e recriar no seu próprio idioma poético, o que com Albano Martins, poeta da sensibilidade e do sensível, do silêncio e da memória, sem dúvida acontece (3). Sobretudo num momento em que as livrarias mais antigas de Lisboa encerram, ou estão em risco de encerrar, umas a seguir às outras, penso que no tal "país de poetas" devo chamar a atenção para aquilo que de mais invulgarmente importante tem sido publicado em poesia. "Espaço/em branco: a porta/de acesso ao vazio." (Albano Martins)
          Mas a propósito de traduções e de poetas, recomendo também vivamente a última edição portuguesa de "Em Busca do Tempo Perdido"/"À la recherche du temps perdu", de Marcel Proust, editada pela Relógio D'Água com tradução de Pedro Tamen. Ainda hoje o considero um dos romances mais importantes de todo o Século XX, com o qual apenas o "Ulysses" de James Joyce e William Faulkner rivalizam. Embora não tenha qualquer dúvida em recomendar, e até oferecer aos meus amigos esta última edição portuguesa da "Recherche", já decidi que, se para ela tiver tempo, a terceira e última leitura dos seus sete volumes vou fazê-la na edição original, que era por onde devia ter começado como fiz com Joyce (ver "Obsessões", 27 de Fevereiro de 2012).    

Notas
(1) Cf. sobre esta questão "A Descoberta do Espírito - As Origens do Pensamento Europeu na Grécia", de Bruno Snell (edição portuguesa Edições 70, Lisboa, 1992, 2003).
(2) Cf. "A Poesia do Pensamento - Do Helenismo a Celan", de George Steiner (edição portuguesa Relógio D'Água, Lisboa, 2012).
(3) Albano Martins, que teve a sua poesia completa reunida pela primeira vez em "Vocação do Silêncio - Poesia (1950-1985)", com Prefácio de Eduardo Lourenço, publicado pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda em 1990, traduziu antes destas duas antologias Pablo Neruda, Rafael Alberti, Nicolás Guillén, Giacomo Leopardi, entre outros, e a presente não é sua primeira tradução da poesia grega clássica.

Um profundo desejo

        François Ozon é um cineasta voyeur, que cria dispositivos visuais e narrativos a partir dos quais observa o comportamento daqueles que escolhe filmar, como escreveu no seu blog Serge Toubiana. "Dentro de Casa"/"Dans la maison" (2012) não foge a essa regra, com que trabalha de forma particularmente feliz e interessante no prosseguimento de uma obra já extensa.
                     dentro de casa Estréias da Semana   29 de Março
       Há dois casais, um sem filhos, Germain/Fabrice Luchini e Jeanne/Kristin Scott Thomas, o outro, Rapha Artole/Denis Ménochet e Esther/Emmanuelle Seigner, com um filho, Rapha/Bastien Ughetto, e há um rapaz novo e dotado, Claude Garcia/Ernst Umhauer, que se infiltra no meio familiar do segundo casal através do filho, seu colega de turma que ele ajuda em Matemática, e estabelece uma relação de cumplicidade com o seu professor de francês, Germain - o filme inspira-se livremente na peça "O Rapaz da Última Fila", de  Juan Mayorga, já levada à cena em Portugal pelos Artistas Unidos de Jorge Silva Melo.
     O que em primeiro lugar atrai e mais prende a atenção nem sequer é cada uma das personagens individualmente, mas o princípio de instabilidade que o intruso vai levar junto daqueles com os quais passa a conviver - se quisermos, é o princípio de "Teorema" de Pier Paolo Pasolini (1968), sem o lado místico ou "sagrado" que a respeito do cineasta Gilles Deleuze assinala. Pelo contrário, neste filme François Ozon move-se ao nível do quotidiano, mantendo-se muito próximo de uma expressão teatral nos interiores. Mas, em segundo lugar, é-nos dada uma bem elaborada relação mestre-discípulo, "pai-filho", que de forma convincente faz passar o saber, filtrado pela frustração criativa do primeiro como ensinamento e estímulo para o segundo.
                     dentro da casa 2013 600x399 Dentro da Casa – Um filme francês que me lembra João Kleber
      Claro que o discípulo excede o mestre, as instruções que dele recebe, e parte de uma experiência de consentida violação da privacidade naquilo que escreve para ele. Neste contexto, em que se descobre o profundo desejo necessário à escrita como à vida, e a necessidade de o dominar e trabalhar, o cineasta usa duas instâncias narrativas na criação dos seus dois dispositivos: o do mestre, entre a sua casa e o liceu onde ensina, com passagem pela ameaçada galeria que a sua mulher dirige, e o do discípulo, entre o mesmo liceu e a casa do seu colega, com passagem pelo recinto desportivo em que os Rapha se encontram ao fim de semana, dispositivos que no final se reúnem na invasão pelo segundo da casa do primeiro. O dispositivo voyeurista do filme desdobra-se assim entre um olhar que pretende comandar um outro olhar, que contudo lhe escapa.
         O lado mais simpático de Ozon, de quem este será o melhor filme até agora, como sempre muito bem servido pelos actores, é que uma vez instalado o seu dispositivo, no caso duplo, ele não se perde com grandes artifícios de uso na linguagem do cinema, preferindo ir direito às suas personagens e ao seu assunto, sem se distrair nem nos distrair escusadamente. Será mesmo o que o distingue de João Canijo, de cujo "Sangue do Meu Sangue" (2011) este filme está, até sociologicamente, próximo. Assim, a parábola de "Dentro de Casa" funciona como um bloco, inteiro e perturbador, que abertamente questiona e inquieta.
                      dentro da casa François Ozon 600x400 Dentro da Casa – Um filme francês que me lembra João Kleber
          É agora que François Ozon passa de um cineasta promissor a um cineasta a seguir com muita atenção, mostrando também ele que, no seu melhor, o cinema francês está em movimento. Quando um cineasta como ele começa a juntar várias referências de forma pessoal, como aqui acontece, é sinal de que alguma coisa de novo nasceu e cresce (ver "Uma inglesa no continente", 17 de Março de 2012)
          A morte de Bernardette Laffont (1938-2013), actriz mítica da "nouvelle vague" francesa em filmes de Chabrol, Truffaut e Eustache, nomeadamente, vem confirmar que o cinema francês não pode continuar a ser visto em função do que foi nos anos sessenta, embora compreensivelmente lhe seja difícil dissociar-se da "nouvelle vague" - pelo menos tão difícil como ao cinema italiano foi fazê-lo em relação ao neo-realismo. No fundo, momentos tão importantes como esses foram não se ultrapassam, absorvem-se e integram-se. François Ozon ainda não está ao nível nem dos melhores nomes da "nouvelle vague" nem de Pier Paolo Pasolini, mas para lá caminha enquanto define o seu caminho (o que lhe interessa fazer), apura o seu uso dos dispositivos criativos (como lhe interessa fazer), e é isso que importa assinalar neste momento.

O regresso da Hammer

     A Hammer Films fez história no cinema inglês pela sua produção de filmes de terror, que assinalaram uma época entre os anos 50 e o início dos 70 do Século XX e nele deixaram uma das suas marcas mais originais. Depois de nas décadas de 80 e 90 se ter dedicado à produção de séries de televisão, a Hammer está de regresso à produção cinematográfica, no género em que se celebrizou, desde 2010, com o excelente "Deixa-me Entrar"/""Let Me In", de Matt Reeves", baseado no surpreendente filme homónimo de 2008 do sueco Tomas Alfredson, e agora com "A Mulher de Negro"/"The Woman in Black", o segundo filme do inglês James Watkins (2012), com argumento de Jane Goldman baseado em romance de Susan Hill.
                    
    Saúdo este regresso, que considero muito oportuno e auspicioso, pois do seu tratamento inglês o filme de terror, manifestamente desgastado nos Estados Unidos num trabalho moderno entre living deads e evil deads, pode colher grande benefício, como mais este filme demonstra ao recuperar muito bem o estilo dos melhores filmes da Hammer dos anos 50 e 60, nomeadamente o dos dirigidos por Terence Fisher (1904-1980) - tem mesmo um casal que se chama Fisher -, interpretados por Peter Cushing e Christopher Lee. A mansão assombrada, a aldeia aterrada, tudo está muito bem recriado e filmado, com um perfeito domínio formal. A narrativa em si mesma tem uma marca feminina muito forte, pois trata de uma mulher a quem morreu o filho, que lhe tinha sido tirado por incapacidade mental para dele cuidar e entregue a uma família de adopção. Depois da sua morte, ela passa a assombrar a mansão, agora abandonada.
       A marca feminina do filme vem, naturalmente, das duas mulheres que estiveram na origem da narrativa, mas o que chamará mais a atenção é o facto de o protagonista, Arthur Kipps, ser interpretado por Daniel Radcliff, o famoso intérprete de Harry Potter, o que não será alheio ao sucesso do filme - aliás ele está muito bem num papel que lhe assenta bem, o de um jovem advogado, viúvo e com um filho, que é enviado pela firma para que trabalha com a missão de vender a mansão assombrada. Mas o que considero mais importante é a elegância do estilo que o filme assume e recupera, dos cenários aos movimentos de câmara, com o qual nos faz revisitar alguns dos lugares-comuns do filme de terror clássico na paisagem magnífica do countryside inglês.
                    
        De facto, "A Mulher de Negro" tem tudo o que é suposto ter: a mansão assombrada, a aldeia aterrada e revoltada, a maldição, velhas fotografias e gravuras, corredores escuros, portas que se abrem por si ou por si se negam a abrir, ruídos estranhos, velas, um companheiro local do herói (Jerome/Tim McMullan), o cemitério, um pântano, objectos que se movem por si próprios. Mas mais do que isso, e incluindo-o, na sua serena elegância formal o filme tem ritmo, duração dos planos - composição formal, cinematográfica, não apenas de cada plano mas no seu todo. 
       Num momento em que o cinema atravessa a crise, até de credibilidade, que se conhece, é natural que ele se volte para o passado, e a Hammer é uma das referências maiores do cinema inglês. "A Mulher de Negro" é um filme muito bom, que cumpre com inteligência e desembaraço o programa que para si mesmo traçou, confirmando assim que essa foi uma boa ideia.  
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        O que pode haver de aparentemente "fora de moda", de contracorrente em recuperar os filmes da Hammer é muito bem compensado pelo tom feminino, moderno, e pelo grande apuro formal que marca o filme e o singulariza de maneira eficiente e convincente. O filme de terror inglês está, pois, de regresso no seu melhor, e há que contar com ele. E a mulher como fantasma tem antecedentes notáveis no cinema, pelo menos desde "Rebecca" (1940), o primeiro filme feito na América pelo inglês Alfred Hitchcock, responsável pelo melhor filme de terror de sempre, "Psico"/"Psycho" (1960), um filme como este assombrado pela figura materna.

sábado, 20 de julho de 2013

Além das aparências

     Depois de 5 anos de silêncio, estreou agora o novo filme de Brian De Palma, "Paixão"/"Passion", 2012, em que o cineasta regressa a personagens femininas duplicadas, que tinham assinalado a parte inicial da sua obra, feita sob a influência declarada de Alfred Hitchcock, e "Mulher Fatal/"Femme Fatale", 2002 (ver "Fatalidades", 17 de Março de 2012). Desde o seu início fascinado pelas personagens femininas na sua duplicidade, o cineasta neste seu mais recente filme triplica-as, mantendo numa delas a duplicidade através da figura da geminação.
                    Dirk (Paul Anderson) in typical pinstriped suit with Isabelle (Noomi Rapace) in even more typical black.
        É para mim ingrato escrever sobre este filme porque ele se baseia num filme francês anterior, "Crime d'amour", de Alain Corneau (2010), que nunca estreou em Portugal e não conheço, e porque considero que De Palma aqui se repete, em parte parodia, sem frescura nem grande novidade. Christine/Rachel McAdams, loira, é directora de uma empresa que trabalha na área da imagem na Alemanha, Isabelle James/Noomi Rapace, morena, trabalha como criativa nessa mesma empresa e tem, por sua vez, como assistente Dani/Karoline Herfurth, ruiva. A relação de rivalidade profissional entre as duas primeiras é agravada por partilharem o mesmo amante, Dirk/Paul Anderson, que trabalha para a mesma empresa e dela tem retirado proveitos ilícitos.
        Numa primeira aproximação, parecem-me mulheres a mais num filme de um cineasta que se notabilizou quanto a elas pela duplicação de uma só, e essa proliferação de mulheres com escassez de personagens masculinas - há o director da empresa-mãe e depois os polícias - embora surja a favor dos tempos actuais, em vez de beneficiar cria um certo desequilíbrio. Também os súbitos, repetidos despertares de Isabelle se revelam de utilidade duvidosa para a personagem e para a narrativa até ao fim, pois sugerem um sonho que, contrariamente ao que sucedia em "Mulher Fatal", afinal não haverá, e por isso confundem inutilmente, devendo ser antes interpretados do lado da instabilidade e da imprevisibilidade da personagem.
                     passion2_620x414
         Há, mesmo assim, duas coisas que me interessam neste filme. A primeira é a ideia de jogo que acaba por prevalecer na narrativa e na relação entre as suas personagens, e a segunda é o prosseguimento da reflexão sobre a imagem, que vem de "Mulher Fatal" e de "Censurado"/"Redacted" (2007), na linha de filmes anteriores, e aqui se manifesta em filmes, vídeos publicitário e caseiro, com a circulação do primeiro no youtube, além da composição da cena do primeiro assassinato em split screen. Ressalvadas estas duas questões, sente-se que o cineasta se acomoda aqui à sua própria fama, a que este filme, com essas duas ressalvas, pouco ou nada parece acrescentar.
                     Noomi Rapace e Rachel McAdams em cena de "Passion", de Brian De Palma
         Sob a aparência de confusão, pode, contudo, fazer sentido o estado de Isabelle entre o sono e a vigília, passível de ser relacionado com o regresso final de Christine sob a forma da sua gémea, reencarnação como punição na forma de repetição, à maneira platónica, o que poderá transformar um filme aparentemente banal num filme culto e não deve ser ignorado. Aí poderá residir mesmo o sentido mais profundo de "Paixão", o que, mesmo se rebuscado, pode mostrar que as aparências são mais do que aquilo que aparentam ser neste filme, desse modo só aparentemente confuso mas em todo o caso demasiado demonstrativo, esquemático, de um cineasta que não tem nada de ingenuidade e em cuja obra abundam as referências cultas.
           Deve, apesar de tudo, argumentar-se que De Palma é ainda o típico cineasta pós-moderno pelo lado da reflexão sobre a imagem (e o som em "Blow Out" - Explosão"/"Blow Out", 1981), o que deve ser ponderado em seu favor mesmo se a sua inicial colocação sob a égide de Hitchcock, de que se tornou um epígono inevitavelmente inferior, lhe trouxe mais prejuízo do que benefícios. Mas justamente num mundo em que tudo passa pela imagem, ao ponto de quase sermos levados a acreditar que tudo é imagem, um cineasta como ele, que até tem uma temática própria e um estilo a que às vezes apetece chamar "maneirista", e um filme como este não são de desprezar nos tempos que correm.

A quarta dama

        Tenho um apreço muito especial pela actriz francesa Sandrine Bonnaire, homenageada esta semana no canal cultural franco-alemão Arte depois dos ciclos que dedicou a Alfred Hitchcok e Luis Buñuel. O filme interpretado por ela que foi mostrado, que me lembre pela segunda vez, embora seja muito bom é inédito comercialmente em Portugal : "Un coeur simple", de Marion Laine (2008), inspirado no conto homónimo de Gustave Flaubert.
        Neste filme ela interpreta com grande sabedoria Félicité, a criada de uma senhora do século XIX, e toda a sua arte pessoal de actriz se concentra na relação entre as mãos, sempre ocupadas, e os olhos, vaguentes num olhar impreciso mas sempre eloquente no que sem palavras diz.
                   Un coeur simple
          Sandrine Bonnaire é uma criação de Maurice Pialat em "Aos Nossos Amores"/"À nos amours" (1983), filme que a revelou e descobriu de um realizador com quem voltou a trabalhar em "Police" (1985) e "Ao Sol de Satanás"/"Sous le soleil de Satan" (1987), baseado em Georges Bernanos, em que foi Mouchette. Mas foi Agnès Varda em "Sem Eira Nem Beira"/"Sans toit ni loi" quem viu bem nela a inocência selvagem, de animal ferido, que, vinda de Pialat, Jacques Rivette explorou em "Joana d'Arc, a Donzela: As Batalhas"/"Jeanne la Pucelle I - Les batailles" e "Joana d'Arc, a Donzela: As Prisões"/"Jeanne la Pucelle II - Les prisons" (1994) e Claude Chabrol trabalhou em "A Cerimónia"/"La cérimonie" (1995), em que contracena com Isabelle Huppert, e em "No Coração da Mentira"/"Au coeur du mensonge" (1999), posterior a "Secret défense" (1998) em que voltou a trabalhar com Rivette.
           Em "Un coeur simple" podemos admirar de novo a sua arte e a sua beleza singular ao contracenar com Marina Foïs no papel da senhora, na devoção que Félicité dedica a tudo o que faz e no amor por todos com quem trabalha, dos trabalhos mais humildes aos de maior responsabilidade e confiança, imprimindo à personagem uma marca pessoal que advém da sua simples presença, olhos frequentemente baixos ou suplicantes como compete a uma serva, mas uma presença que se sente mesmo quando ela está fora de campo ou nos planos em que ela não entra.
                 Sandrine Bonnaire.© Rezo Productions et ARTE France Cinéma.      
          Desconheço a sorte crítica deste filme em França, mas por ele pude retomar contacto com uma grande actriz francesa que aprecio, apenas três anos mais nova do que Juliette Binoche mas que já deixou uma marca indelével no cinema francês - dirigiu mesmo um documentário sobre a sua irmã, autista, "Elle s'appelle Sabine" (2007), e uma longa-metragem de ficção, "J'enrage de son absense" (2012).
        O cinema tem destas coisas, como uma grande actriz, que exigem atenção e gosto mas valem muito a pena. Com Catherine Deneuve, Isabelle Huppert e Juliette Binoche, Sandrine Bonnaire é a minha quarta dama do cinema francês numa pessoal política das actrizes. A matar um porco, na praia, a depenar uma galinha, a lavar a filha morta da sua patroa, na ternura e na exasperação, como que espantada por existir ela é comovente, extraordinária em "Un coeur simple".

Nota
Sobre Gustave Flaubert é neste momento fundamental "Flaubert's Parrot"/"O Papagaio de Flaubert", de Julian Barnes (edição portuguesa Quetzal, Lisboa, 2010).

O amor, a morte

        "A Batalha de Tabatô" (2013) é a primeira longa-metragem de ficção de João Viana, de quem não conheço os trabalhos anteriores. Filmado na Guiné-Bissau com actores locais, o filme recorda a guerra de libertação contra o colonizador português que ali decorreu antes da independência do país, mas refere também a grande instabilidade que este tem vivido nos últimos anos.  
                      http://www.berlinale.de/media/filmstills/2013_2/forum_9/20131418_1_IMG_543x305.jpg     
        Devo, contudo, dizer desde já que este filme, a preto e branco com esporádicos momentos a cores, sobretudo no final, se impõe desde o seu início por uma grande qualidade visual e uma realização serena e muito boa, com grande apuro na escala dos planos, na profundidade de campo, na exploração das linhas horizontais da paisagem - portanto, no tratamento do espaço. Sem precipitações nem fantasmas pessoais a exorcizar, João Viana centra na personagem mais velha, que vai assistir ao casamento da filha, a memória contraditória da guerra, com os seus fantasmas pessoais, acabando por substituir um ritual matrimonial por um ritual fúnebre. O amor, a morte.
     Tirando o melhor partido de uma situação minimal mas que implica um percurso físico, o cineasta filma as suas personagens com desassombrada admiração pela sua beleza física inscrita na beleza da paisagem, com cada plano a durar o tempo necessário para conferir a "A Batalha de Tabatô" um tom encantatório, de melopeia, que a música abertamente vem culminar no final. Feito com escassos recursos, quase que não se sente essa escassez, notória apenas no sistemático recurso ao plano fixo, que até pode passar por opção estética do realizador.      
                     
        No envolvimento encantatório que o filme cria somos levados a visitar na actualidade um povo muito antigo que sabe que o futuro nasce do passado - o que, embora hoje em dia pouco comum, é sabedoria antiga e universal -, um povo que aqui assume traços concretos que o mostram a viver apoiado nas suas memórias e tradições, transmitidas de geração em geração, apesar das dificuldades do presente e para as enfrentar. João Viana é, manifestamente, um realizador com um domínio assinalável da linguagem do cinema, com coisas novas, importantes e interessantes para fazer, para dizer, pelo que este é um filme a saudar e o seu um nome a reter no cinema português.
     "A Batalha de Tabatô" é um filme muito bom e muito diferente da banalidade e boçalidade audiovisual em que vivemos submersos, um filme que, deslocando-se no espaço para um espaço pouco frequentado pelo cinema, ao mostrar com originalidade e contra o lugar-comum, revela.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Um sentido sensível

     Sergei Loznitsa é natural da Bielorrússia, onde decorre a sua segunda longa-metragem de ficção, "No Nevoeiro"/V tumane" (2012), baseada em romance de Vasily Bikov. A impressão muito favorável deixada pelos seus documentários e pela sua primeira longa-metragem de ficção, "A Minha Alegria"/"Schastye moe" (2010), mantém-se com este filme, perturbador e inquietante.
       Trata-se de um cineasta invulgar quer pelas personagens e narrativas que cria quer pelo estilo fílmico, elíptico e poético, que utiliza. Em "No Nevoeiro" há um homem, Sushenya/Vladimir Svirskiy, que escapa a uma execução por enforcamento a que são condenados os seus três companheiros durante a ocupação pela Alemanha nazi da Bielorrússia soviética em 1942, e por ter sido poupado ele torna-se suspeito de traição. A Resistência envia dois dos seus para o matar, mas um deles, Burov/Vladislav Abashin, é gravemente ferido enquanto percorrem a floresta com o seu prisioneiro e cada um deles recorda episódios do seu passado.
                    
       O filme abre com um longo plano-sequência que acaba com o enforcamento dos condenados fora de campo e a esse cenário regressa na recordação de Sushenya, quando ele aí chega para encontrar os corpos pendurados. Dá vontade de falar em o ser e o nada a este respeito, pois o protagonista afirma repetidamente a sua inocência, e apesar de explicar que a sua sobrevivência é a outra morte a que os nazis o condenaram, a todos fica a dúvida de ele ser um traidor, colaborador dos ocupantes.
      Numa sequência lógica implacável, por mais explicações que encontrem e dêem, um a um vão morrendo os homens que atravessam a floresta - e a natureza é o cenário sensível, embora impotente, em que se desenrola a tragédia, como se preenchesse a função de um coro. Sem em momento algum lhe escapar, "No Nevoeiro" percorre até ao fim a sua imparável linha descendente, de perda, de abismo, sem qualquer paliativo ou complacência, o que se torna o seu grande motivo de interesse.
                    O realismo segundo Loznitsa
        No absurdo e na crueldade da ocupação o absurdo da suspeita, da traição, da vingança a que um homem, mesmo se inocente e vítima de uma armadilha, como diz, não pode escapar, num filme feroz e concentracionário sem efeitos ou enfeites de qualquer espécie, que prescinde mesmo da música, secamente narrando a sua experiência extrema no coração duma natureza exuberante, povoada por pequenos animais (os corvos) a que só falta falarem. O recurso ocasional a desfocagens parciais enriquece a imagem sem anular a secura, mesmo a frieza do filme.
        Na linha de "A Minha Alegria" e dos filmes anteriores do cineasta, há neste "No Nevoeiro" uma presença do sensível que a composição visual, a cor, as personagens e a construção da narrativa convocam e transmitem, trabalhando a emoção de forma cinematograficamente sóbria, subtil mas muito expressiva, o que se torna evidente nos diálogos entre os humanos, nos silêncios, nos "comentários" da natureza e confere sentido pleno ao filme. Argumentista e realizador dos seus próprios filmes, Sergei Loznitsa é um cineasta notável, merecedor da nossa melhor atenção.

Depois do fim

          "Imperador"/"Emperor" (2012), a terceira longa-metragem do inglês Peter Webber, até agora conhecido sobretudo por "Rapariga com Brinco de Pérola"/"Girl with a Pearl Earring" (2003), filme com que se estreou no cinema, não é nada extaordinário mas mostra claramente a consciência da história do cinema americano.
     Todos sabemos que Hollywood tem uma acentuada preferência pelo filme de guerra espectacular, pois para os seus mentores é o espectáculo da guerra que mais pode interessar. Aliás, a relação do cinema com a guerra foi muito bem estudada por Paul Virilio em "Guerre et cinéma I - Logistique de la perception" (Paris, Cahiers du Cinéma, 1984, 1991), ainda hoje uma obra de referência. Ora é precisamente por, sendo bem feito, este filme se ocupar do tempo imediatamente a seguir ao fim da II Guerra Mundial, após a rendição incondicional do Japão, que ele me interessa. Embora sem assumir explicitamente um lado de propaganda, "Imperador" descreve o percurso pelos bastidores do General Bonner Fellers/Matthew Fox para, sob o comando de Doug MacArthur/Tommy Lee Jones, o famoso general americano que fez as campanhas das Filipinas e foi Comandante Supremo das Forças Aliadas no Sudoeste do Pacífico e depois no Japão, apurar as responsabilidades do Imperador Hirohito/Takataro Kataoka na guerra, nomeadamente no ataque a Pearl Harbour, em ordem a determinar a futura atitude americana relativamente a ele.
                                                              
       Ao assistir a este filme percebemos que ele nos mostra os acontecimentos tal como eles são supostos se terem passado - baseia-se em livro de Shiro Okamoto, com argumento de Vera Blasi e David Klass. Mas mesmo admitindo que seja parcialmente romanceado, "Imperador" mostra de maneira muito clara a diferença entre duas culturas, estranhas uma à outra, uma diferença que estabelece a distância que Fellers, ajudado pela sua memória sentimental (Aya/Eriko Hatsune), tem de vencer e com a qual MacArthur tem de lidar para que o passado não comprometa o futuro, antes possa ser usado favor dele.
      Assumindo sem ambiguidades o projecto de contar a história de uma missão difícil e de resultado incerto - embora, sendo feito hoje, essa incerteza tenha que ser encenada, o que o filme cumpre bem -, Peter Webber lida com seriedade com o material ao seu dispor para mostrar como se tornou claro aos militares americanos que aquela não era, como supunham os seus mandantes de Washington, os mesmos que tinham ordenado o bombardeamento nuclear de Hiroshima com que o filme começa, uma situação a preto e branco, antes uma situação que exigia grande atenção à especificidade japonesa e grande sensibilidade às diferenças culturais, para mais logo a seguir a uma derrota militar esmagadora e humilhante.
                     Emperor - Kampf um den Frieden : Bild
         Que um filme, para mais sobre uma guerra sem qualquer margem de ambiguidade, nos faça a todos, americanos e não-americanos, pensar é mérito maior deste "Imperador", em que Tommy Lee Jones tem uma composição histórica ao lado de Matthew Fox. Se os valores tradicionais japoneses são aqui claramente mostrados em toda a sociedade e em especial na figura do Imperador numa época difícil, com grande relevo para a honra, o respeito e a lealdade, são também os valores democráticos americanos que, bem apresentados, com dignidade surgem e se impõem.       
        Agora este filme, que com a sua preocupação de ser politicamente correcto até fica aquém daquilo que se poderia ter prestado a ser, não impede, de maneira nenhuma, que o grande filme sobre o Imperador Hirohito, Doug MacArthur e a II Guerra Mundial seja "The Sun"/"Solntse", de Alexandr Sokurov (2005). A comparação permitirá mesmo compreender com clareza a diferença entre um bom realizador de cinema e um grande cineasta (sobre Sokurov ver "Um grande artista", 20 de Abril de 2013).

sábado, 6 de julho de 2013

No limite do caos

        A quarta longa-metragem do mexicano Carlos Reygadas, "Post Tenebras Lux" (2012), é um filme muito curioso, até pelas suas especificidades técnicas, que escolhe mover-se numa linha limite entre realidade e fantasia, como num jogo, para o que o seu final explicitamente remete. Pode gostar-se mais ou menos dele, mas é dessa maneira que o filme se apresenta. Embora tenha gostado dos seus filmes anteriores, em especial de "Luz Silenciosa"/"Stellet Licht" (2007), devo começar por dizer que considero que o cineasta envereda aqui deliberadamente por uma narrativa não linear e ambígua sem que, a meu ver, daí retire grande proveito - já o fizera, talvez melhor, em "Batalha no Céu"/"Batalla en el cielo" (2005). Eu explico-me.
                    Post Tenebras Lux 
        É natural que qualquer cineasta se sinta atraído por universos conflituais que se atraem e repelem no mesmo filme. Reygadas utilizou-o bem em "Batalha no Céu" e aqui procura seguir o mesmo caminho mas por simples prazer, por gosto e divertimento, sem que se sinta uma verdadeira necessidade da sua parte. Nem sequer discuto a qualidade do filme, que me parece muito boa pela inteligente utilização do fora-de-campo, permanentemente convocado com grande pertinência, e pela boa utilização das suas especificidades técnicas (o formato do ecrã, a sombra das personagens). O que sinto é que este "Post Tenebras Lux", um pouco como o último filme de Terrence Malick, "A Essência do Amor"/"To the Wonder" (2012), gira em volta de si próprio e das suas personagens um tanto no vazio, sem  projecto definido.
         Há referências cultas (Dostoievski, Tolstoi), há limiares entre o real e o onírico, há o esboço de um jogo de sombras mútuas, junções de imagens através da montagem mas sem consequências que não se resolvam, elas também, entre o real e o onírico, num filme que nos entretém sem nunca nos agarrar verdadeiramente nem exigir muito de nós.
                    http://www.vivaverve.com/shopimages/articles/stills/Post%20Tenebras%20Lux%2050..jpg
          Há um casal, Juan/Adolfo Jiménez Castro e Natalia/Nathalia Acevedo, há as crianças, há El Siete/Willebaldo Torres que trabalhou para Juan, e enquanto acompanhamos o casal somos levados a interessar-nos por ele, sem que El Siete surja senão episodicamente e mesmo assim num registo lateral de alguma ambiguidade. Por outras palavras, não surge no filme, apesar do diabrete, um mistério que envolva as três personagens de forma criadora, que as assombre ou nos assombre, tudo se fica por sugestões, interessantes embora mas apenas esboçadas como tal, com maior efeito visual do que narrativo.
       Claro que Carlos Reygadas faz os filmes que quiser como ele quiser e lhe apetecer, utilizando o seu saber do cinema, que não está de maneira nenhuma em causa. Agora neste filme as personagens divergem de uma qualquer proximidade por caminhos paralelos e divergentes, com uma ou outra eventual intersecção, do que me parece não resultar qualquer benefício substancial, antes uma deriva por si mesma pouco significativa, da qual nem sequer fica muito espaço - ou então, excesso de subtileza, fica espaço em excesso - para a imaginação do espectador, difícil de exercer com rigor sem acesso pleno aos códigos culturais utilizados.  
                    
        "Post Tenebras Lux" tem, apesar de tudo, uma forte ligação com a natureza no início e no fim, o que de alguma maneira o contamina e lhe confere uma linha de rumo pelo menos parcialmente compreensível. Agora o interesse dos universos eventualmente diferentes que são apresentados surge-me como de reduzido alcance para lá do meramente lúdico, que para muitos bastará. Confesso que esperava mais, mesmo uma maior complexidade narrativa, com maior número de linhas, o que até já tem sido feito. Mas reconheço que formalmente é um filme muito bom de um dos cineastas que melhor permite falar de um "cinema novo" mexicano, que aprecio.

Durante o fim

    Chega-nos agora a terceira longa-metragem, segunda para cinema depois de "Salto Mortal"/"Somersault" (2004), que não conheço, da autraliana Cate Shortland, "Lore" (2012), que é um filme impressionante não apenas pela sua narrativa como pela sua construção cinematográfica. De facto, de princípio a fim a cineasta mantém-se fiel à opção pelo grande-plano ou por planos aproximados, o que nos mantém permanentemente sobre os rostos dos actores, atentos aos seus traços e movimentos faciais.
                      lore
      O filme ocupa-se de uma época pouco tratada pelo cinema, mesmo pelo cinema alemão, a que se seguiu à ocupação da Alemanha pelos Aliados no final da II Guerra Mundial. A protagonista, cujo nome dá o título ao filme, Lore/Saskia Rosendahl, percorre a Alemanha, da casa dos seus pais para a de uma familiar, Omi/Eva Maria Hagen, levando consigo os irmãos mais novos e acompanhada, a partir de certa altura, por um jovem judeu que diz chamar-se Thomas/Kai Malina. Os percalços e obstáculos são diferentes nesse percurso, ao longo de caminhos de floresta e utilizando diversos meios de transporte.          
      Não vou contar o filme mas apenas chamar a atenção para o que comecei por dizer: "Lore" mantém-se de princípio a fim fiel à opção de Cate Shortland pelo grande-plano ou planos aproximados. Ora isto significa a utilização do que Gilles Deleuze denomina Imagem-Afecção, pois o grande-plano do rosto é o meio cinematográfico apto para transmitir filmicamente o afecto ou a afecção. Cito-o: "A imagem-afecção é o grande-plano e o grande plano é o rosto..." (cf. "L'image-mouvement", Paris, Les Éditions de Minuit, 1983, pág. 125). Aliás, a realizadora não se limita ao grande-plano de rosto, já que o utiliza com grande pertinência como plano de pormenor relativamente a partes do corpo, a objectos, o que leva a que a maior parte do filme se expresse de forma afectiva e a que essa expressão o invada.
                     
        Todavia, esta opção revela-se especialmente adequada às personagens e à situação que elas vivem naquilo que apeteceria chamar o ano zero da Alemanha, não se dera o caso de esse ser o título de um conhecido e muito importante filme de Roberto Rossellini, "Alemanha Ano Zero"/"Germania, Anno Zero" (1948), de que "Lore" apesar de tudo se aproxima, diria que inevitavelmente. O filme tem momentos notáveis, relativos aos perigos que a protagonista e os seus acompanhantes atravessam e às respectivas reacções, em especial quando se trata de neutralizar um soldado alemão que em Lore sente "o cheiro da morte" e na morte do pequeno Gunter/André Frid, mas também quando as personagens descobrem o que aconteceu no seu país durante a guerra. Na grande proximidade em que, como espectadores, somos permanentemente mantidos, com abolição de qualquer profundidade de campo salvo nos ocasionais planos médios, tudo o que acontece às personagens chega-nos ampliado pela escala dos planos.
        Pode considerar-se esta opção formal de Cate Shortland, também co-argumentista com Robin Mukherjee, uma opção discutível, mas ela revela-se muito ajustada por ir contra o espectáculo que mesmo uma guerra tremendamente devastadora, como foi a II Guerra Mundial, enquanto está a acabar pode proporcionar, e implicar uma proximidade por vezes sufocante com aqueles que, durante o fim dessa guerra, sofrem e tentam chegar a salvo ao seu destino. Não conheço o romance "The Dark Room", de Rachel Seiffert, em que este filme se baseia, mas não tenho dúvidas sobre a bondade da opção da cineasta na sua transposição cinematográfica, surpreendente e muito apropriada, num caminho em que, formalmente, a precederam Carl Th. Dreyer e Robert Bresson.
                    
        Sem a distância que o filme em momento algum permite, as reacções das personagens, sobretudo da protagonista, ao que vão encontrando pela frente e descobrindo sobre o que aconteceu na Alemanha - sobre os seus próprios pais, sobre os campos e o extermínio - tornam-se inescapáveis porque se impõem por si mesmas na construção muito segura e sem concessões de "Lore". As fotografias a preto e branco, de época, são, por sua vez, muito bem utilizadas.
       Para ver várias vezes, para não deixar escapar nada deste filme corajoso, subjugante e absorvente.