Desde cedo no cinema (os anos 10 e 20) o produtor adquiriu má reputação por, nos Estados Unidos, se opôr ao realizador, o criador do filme. Desde os anos 60 que tal foi desmentido em vários pontos do mundo, nomeadamente em Portugal graças a um grande produtor: António da Cunha Telles.
Homem de
invulgar cultura cinematográfica e sensibilidade para o cinema, o que o
levou a fundar as Produções Cunha Telles que estiveram na origem da
primeira fase da recuperação da dignidade do cinema português num
momento decisivo para o país, ele foi, de facto, a eminência parda do Novo Cinema Português dos anos 60, que tornou possível.
Além de produtor também realizador, Cunha Telles foi a personalidade indispensável para que Paulo Rocha, Fernando Lopes e António de Macedo, mas também Faria de Almeida e Manuel Guimarães, dessem um moderno decisivo passo em frente no cinema portugês, num movimento em que os seus próprios filmes, "O Cerco" (1970) e "Meus Amigos" (1973), vieram mais tarde a ocupar lugar central. Mas desde cedo ele dedicou-se também à co-produção internacional (em filmes de Pierre Kast e François Truffaut, nomeadamente), conferindo uma outra dimensão à sua actividade.
Ele continuou a ser uma personalidade muito importante como distribuidor com a Animatógrafo, que fez chegar a Portugal Sergei Eisenstein, Jean Vigo, Jean Renoir, Roberto Rossellini, Robert Bresson, André Malraux entre muitos outros. Depois do 25 de Abril um homem do cinema raro e muito influente, quer como produtor, co-produtor e produtor executivo, quer como realizador ("As Armas e o Povo", 1975, "Continuar a Viver ou Os Índios da Meia-Praia", 1976), quer como distribuidor. Mas foi ainda responsável do Instituto Português de Cinema (IPC) e da Tobis portuguesa. Já nos anos 90, enquanto continuava a trabalhar em pleno, mesmo como realizador (depois de "Vidas", 1984, "Pandora", 1993), produziu uma notável série de tele-filmes para um canal privado de televisão
Um bom filme não pode existir sem um produtor inteligente como António da Cunha Telles contra todas as adversidades foi e continua a ser, pelo que se existe uma poética da produção (e existe) ela passa por permitir fazer o que vale a pena ser feito por quem é capaz de o fazer no momento próprio, mesmo se misturada com a ingenuidade proveniente do entusiasmo pelo cinema e sobretudo quando associada ao propósito de fazer chegar os filmes aos espectadores, o que é o sonho completo do filme. Foi por isso inteiramente justificada a retrospectiva que, misturadas todas as funções, lhe dedicou este ano a Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema.
Quem quiser estudar seriamente o cinema português e o cinema em Portugal nos últimos 50 anos tem de, forçosamente, passar pelo nome dele. Homem inteligente, culto e afável, que nunca pactuou com a mediocridade e com o seu exemplo criou escola, o António foi e continua a ser o grande senhor do cinema português, que daqui saúdo cordialmente, a quem agradeço o muito que todos, em gerações sucessivas, lhe devemos e a quem desejo mais filmes seus depois de "Kiss Me" (2004).