“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 31 de agosto de 2013

Imprescindível

     O americano Charles Burnett é um dos nomes adiantados por Gilles Deleuze a propósito de um "cinema político" dos negros americanos (1). O seu filme de estreia, que foi também o seu filme de fim de curso na UCLA, "Killer of Sheep" (1977), é um exemplo maior de um cinema que se questiona a si próprio, aos seus meios e ao seu uso, num quadro de cinema independente.
                      Charles Burnett, Killer of Sheep, 1977. 
      Filmado no Harlen, este filme limita-se a mostrar personagens no seu dia a dia, personagens comuns de todas as idades e condições, que assim nos surgem num quotidiano desligado de uma acção, em simples "estados  emocionais ou pulsionais quebrados" (2), cuja existência o filme identifica e mostra. Centrado embora num casal, de que ele, Stan, é o killer of sheep do título, são-nos dados de todas as personagens, a começar pelo próprio casal e seus filhos, além de palavras, posturas físicas, pequenos gestos e expressões do quotidiano que as individualizam, falam pelo que cada uma delas cala, explicam melhor o que cada uma delas diz. Assim são apresentados movimentos de atracção, movimentos agressão, momentos de sedução, momentos de deriva e solidão, mas também, e até sobretudo, é sugerida a vivência comum de um inelutável sentimento de comunidade e de pertença. Um convite para um esboço de acção é declinado pelo protagonista.
   Exemplo maior do cinema independente americano, "Killer of Sheep" é uma autêntica preciosidade na memória negra americana e no próprio cinema americano. Jogando com o ponto de vista, a escala dos planos e a sua duração, Charles Burnett consegue tornar o preto e branco um processo realista e expressivo, de que tira o melhor proveito nomeadamente graças ao tratamento da luz de modo a obter em certos momentos contrastes de claro/escuro. E o filme questiona e responde "o que é a América para mim?", o protagonista diz que ele não é pobre, pobre é um outro, uma voz proveniente do fora de campo acusa "tu não és uma boa mulher", numa banda sonora em que a música tem sempre grande relevo.                    
                    
      Neste questionamento do próprio medium, Burnett questiona o meio e questiona o espectador de maneira exemplar e exemplarmente política. Sabe-se como na mesma década de 70 surgiu o cinema dito de blaxpoitation, que teve também o seus nomes de referência, como Melvin Van Peebles e Gordon Parks, cujos filmes são hoje parte indeclinável do património cinematográfico norte-americano, mas aqui estamos perante uma espécie de primitivo do cinema dos negros americanos, confrontados com os meios de filmarem a sua própria comunidade num meio comum muito relevante.
    Entre gente de trabalho, miúdos que jogam para se divertirem e desafiarem, malandragem, ociosos, com muito escassa presença de brancos, este filme, que termina com a revelação inesperada de uma gravidez e a actividade comum do protagonista no matadouro, é absolutamente imprescindível para conhecer o melhor do cinema americano dos anos 70 do Século XX, até porque é assinalado por um uso superior da linguagem do cinema - o matadouro, o rebanho - que, do real concreto ao metafórico, identifica um grande cineasta. Ainda hoje exemplarmente moderno e político, "Killer of Sheep", tomando como centro o bairro de Harlen em 1977 nem sequer o apresenta como lugar de especial marginalização racial e social (embora ela esteja obviamente implícita) mas como local onde poderá vir a ser possível a tomada de consciência de si própria de uma população.

Notas
(1) Cf. Gilles Deleuze, "L'image-temps", Paris, Les Éditions de Minuit, 1985, páginas 286-287. 
(2) Idem, ibidem (a tradução é minha).

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Uma despedida

     Realizado pela grega Athina Rachel Tsangari, "Attenberg" (2010) é um pequeno filme minimalista sobre uma filha de 23 anos, Marina/Ariana Labed, acompanhante do pai, Spyros/Vangelis Moutikis, muito doente, que com o aproximar da sua morte com ela prepara um "funeral alternativo". Ao mesmo tempo, porém, a filha, apreciadora dos documentários de Sir David Attenborough e das canções dos Suicide, prepara com o seu primeiro namorado a sua primeira relação sexual, depois de uns treinos proporcionados pela sua melhor amiga, Bella/Evangelia Randou, experimentada nesses assuntos.        
                      attenberg006 Athina Rachel Tsangari   Attenberg [+Extras] (2010)           
        Despretensioso e minimalismo, "Attenberg" é, assim, um filme sobre a vida e a morte, diria que sobre o que cada um de nós tem de mais certo e, portanto, essencial. Com actores em completa não-expansividade sem por isso apontarem especialmente para uma interioridade das personagens, este é um filme sobre sentimentos e acontecimentos primordiais, sem grande espectáculo, sensível e sereno.
     Um elemento formal, moderno, nele se destaca porém, que é a opção pelo plano fixo, ocasionalmente interrompido por movimentos de câmara, em geral travellings de acompanhamento ou descritivos. E esse elemento é tão importante que se torna estruturante, deixando a sua marca estética própria no filme.                 
                      attenberg008 Athina Rachel Tsangari   Attenberg [+Extras] (2010)          
       Os interiores estão muito bem e funcionalmente definidos, os corredores do hospital são muito bem explorados (e aí no final surgem os travellings), os exteriores são dados de maneira seca e por isso cativante, mas sobretudo as relações que se estabelecem a dois, pai-filha, filha-amiga, filha-namorado, amiga-namorado, estão muito bem dadas como tal, sem espalhafato e sem melodrama. Mas há também, e até sobretudo em "Attenberg" uma lógica de repetição, que se torna ela também estruturante, de acordo com a qual cada situação binária constitui uma variação estabelecida sobre as anteriores entre as mesmas personagens, do que se destacam visualmente os passos (de dança) de Marina e Bella. Dessa maneira se vão construindo os sentidos entre as diferentes personagens do filme, numa forma ela também minimalista de construção da narrativa, a que o plano fixo se ajusta muito bem.                        
                      attenberg004 Athina Rachel Tsangari   Attenberg [+Extras] (2010)
       Na sua depuração essencial, Athina Rachel Tsangari consegue fazer deste filme uma obra moderna e desinibida, cativante e comovedora contra todos os estereótipos de que o cinema se serve habitualmente em situações semelhantes. Pelas melhores razões, que incluem uma banda sonora simples e evocativa, sempre muito bem utilizada, "Attenberg" é um filme pessoal com todos os elementos necessários para fazer dele um bom filme. No final, depois de as cinzas de Spyros terem sido entregues ao mar, ficamos, num plano fixo e longo sobre o qual acaba por correr o genérico de fim, perante o vazio, o mistério da vida, da morte e da memória.
       Fala-se de um "cinema novo" grego de que "Attenberg" faria parte, o que deve ser tido em atenção. E Marina, a quem o pai, muito céptico sobre o desenvolvimento da Grécia, chama "moderna burguesa optimista", é na sua espontaneidade e candura uma personagem marcante.

Amanhã à mesma hora

        Sempre gostei de filmes sobre o próprio cinema, e então os filmes sobre a "morte do cinema" são os meus preferidos. É disso que trata "O Pai das Minhas Filhas"/"Le pére de mes enfants" (2009), a segunda longa-metragem da francesa Mia Hansen-Love, que agora aqui me traz.
                    Arthouse
       Com argumento da própria realizadora, aí começa por aparecer um muito atarefado produtor de cinema, Grégoire Canvel/Louis-Do de Lencquesaing, que, pressionado profissionalmente por problemas e dívidas, sai de cena pela sua própria mão, pela sua própria arma, a meio do filme. A viúva, Sylvia Canvel/Chiara Caselli, mãe das suas filhas, vai tentar manter de pé e a trabalhar a produtora Moon Films, retomando os contactos dele com realizadores e credores. Em vão, pois a produtora, falida, acaba mesmo por ser liquidada.
                   
        Parcialmente inspirado no produtor francês Humbert Balsan (1954-2005), figura importante na produção cinematográfica europeia, o filme assume um tom vagamente nostálgico e triste sem cair na lamechice sentimental, sempre seguro pela cineasta no fio tenso que o separa do melodrama para o manter numa melancolia evocativa e sonhadora. Contrariamente ao que muitos poderão pensar, o cinema, sendo uma actividade fascinante, não é uma actividade fácil, quem o faz e quem permite que seja feito encontra no seu caminho as maiores e mais variadas dificuldades, de que este filme mostra sem contemplações uma parte significativa.
       O cinema é mesmo isto, feito por gente que se confronta com os problemas com que todos nos confrontamos, só que agravados por geralmente envolver muito dinheiro, como com Grégoire acontece e o leva a atingir o limite. E quando esse limite é atingido torna-se muito difícil para os outros continuar. O que resta então, depois do fim da produtora? Resta o espírito daquele que a animou, o amor do cinema, resta o espírito de continuar a fazer filmes, bons filmes.
                    
        É notável que, logo no seu segundo filme, uma jovem cineasta, Mia Hansen-Love, passe por aí da maneira como o faz em "O Pai das Minhas Filhas", um filme com duas partes contrastadas, a primeira movimentada e com deslocações no espaço para cenários belíssimos, a segunda mais centrada em Paris, ambas muito bem filmadas, em que se sente o amor do cinema.
      A ideia da "morte do cinema" é tão antiga como o próprio cinema. Quantas produtoras importantes faliram e acabaram, quantas outras começaram ou a partir delas recomeçaram. Essa é mesmo uma parte importante da vida, da história do cinema. Mas partir da ideia de que o cinema é apenas um "negócio", fácil e seguro, só ocasional e localizadamente fez sentido, e aí pode depender mesmo da dimensão do "negócio". O cinema que interessa, interessa independentemente do seu custo ou da sua rentabilidade, é antes algo em que o produtor, o realizador e os outros participantes conseguiram a colaboração criativa certa, que tem de ser construída filme a filme, como o caso de Humbert Balsan atesta e este filme demonstra - e é esse cinema que é importante que não morra. O "sucesso" é outra coisa, dependente de circunstâncias de momento, por exemplo da coincidência de um filme com os interesses de momento dos espectadores, como dizia François Truffaut - uma coincidência hoje em dia evidentemente programável, como se sabe.

Isto sim

      Quando, aqui há uns anos, andava exasperado pela falta de filmes de jeito para ver no circuito comercial, alguém mais novo falou-me em "Distrito 9"/"District 9", a primeira longa-metragem do sul-africano Neill Blomkamp (2009). Fui ver e gostei. Depois vim a saber que houve mais quem tivesse gostado.
                       Elysium          
    Do mesmo cineasta e com argumento seu estreou-se agora "Elysium" (2013), que naturalmente fui ver e me deixou sonhador, a pensar num tipo que há uns quarenta anos começou a fazer cinema com um filme de ficção científica e um filme sobre uma esquadra da polícia cercada, uns trinta anos depois de um outro tipo ter começado a fazer filmes policiais da Série B nos quais então poucos repararam. Blomkamp aparece-me como o mesmo tipo de personalidade forte e inesperada que foram no seu tempo Anthony Mann e John Carpenter, isto é, o mesmo tipo de cineasta, de grande cineasta aparentemente surgido do nada.
          Parecendo pouco ambicioso ou precioso do ponto de vista técnico, embora utilize requintes de animação em 3D e 2D no seu filme, em que tudo surge muito bem no seu lugar convencional na parte cenográfica, Neil Blomkamp não se deixa seduzir pelo grande espectáculo da grande ficção científica, que tão bons resultados tem dado no cinema americano, preferindo-lhe uma história banal de antecipação científica de pobres contra ricos, de escravos contra senhores, num estilo mais de antecipação do que de ficção científica. O resultado, como em "Distrito 9" e na linha dele, é muito bom, numa mecânica narrativa sem entraves no seu desenvolvimento implacável .  
                     
          Feito num espírito que eu denominarei de Série B, um filme de antecipação como este, que no fundo diz tanto sobre o futuro como sobre o presente, é o equivalente de um policial da Série B dos anos 40 ou dos 70, sem precisar de prestar contas a ninguém, respondendo apenas por si próprio. De vedetas Neill Blomkamp foi buscar Matt Damon e Jodie Foster, gente séria e de grande qualidade, a que juntou o seu actor preferido, Sharlto Copley, e o filme vê-se num estado de permanente fascínio e encantamento, sem preocupação de maior quanto à verosimilhança dos avanços científicos postos em causa, mas com toda a credibilidade do conflito encenado, uma credibilidade que lhe vem do passado e do presente.
        Há em "Elysium" um ponto de partida excêntrico, a partir do mundo latino-americano, que lhe permite não se centrar apenas numa Los Angeles escravizada por senhores que se ausentaram para um outro mundo, donde comandam. Deste modo, o combate de Max Da Costa/Matt Damon para se salvar e salvar a filha da sua amiga de infância, Frey/Alice Braga, é também um combate pela liberdade, pela libertação de senhores longínquos e poderosos, como num filme de Sam Peckinpah ou de John Carpenter. 
                     
      "Elysium" tem espectáculo, cenas de pancadaria memoráveis entre humanos e entre humanos e robots, tem bondade e maldade, tem perigo, risco e sacrifício, tem sobretudo drama e acção dramática, tudo claro e sem confusões, tanto mais claro quanto o grupo para o qual Max, ele próprio em liberdade condicional, acaba por trabalhar é um grupo de marginais numa Los Angeles despovoada.    
           Com fotografia de Trent Opaloch, o mesmo de "Distrito 9", e música de Ryan Amon, Julian Clarke e Lee Smith na montagem, este é sem dúvida um dos melhores filmes do ano, estranhamente estreado em pleno mês de Agosto.    

sábado, 17 de agosto de 2013

Um cineasta sério

       O filme que Edward Zwick fez a seguir a "Diamante de Sangue"/"Blood Diamond", 2006 (ver "Negra África Negra, 12 de Fevereiro de 2012) intitula-se "Resistentes"/"Defiance", 2008, e é um filme muito bom que o confirma como um cineasta sério com o qual se deve contar no actual panorama do cinema americano.
                    defiance03
     Confirmando ser um cineasta de temas difíceis, neste filme em cujo argumento participou, como tem feito em todos os seus filmes desde "Estado de Sítio"/"The Siege" (1998), Zwick ocupa-se de um episódio verídico até há pouco desconhecido, previamente relatado em livro ("Defiance: the Bielski Partisans", de Nechama Tec), da Resistência ao ocupante nazi na Bielorrússia soviética durante a II Guerra Mundial, em que estão em causa judeus perseguidos por razões raciais conhecidas. Os irmãos Bielski, Tuvia/Daniel Craig, Zus/Liev Schreiber e Asael/Jamie Bell, depois da morte dos seus pais formam um grupo de resistência com o seu nome, em primeiro lugar destinado a salvar os judeus ameaçados.
      Tudo decorre de acordo com o previsto até o segundo resolver deixar o grupo para se juntar à resistência soviética, que ataca directamente as forças invasoras, e esse é um momento forte relativo a um dilema sério. O casamento de Asael, em montagem alternada com um ataque em que Zus participa, vai trazer o irmão mais novo para um papel mais importante, que se vem a tornar decisivo naquele grupo que, em benefício da sua humanidade, acolhe as mulheres a que reconhece um papel muito importante (sobre a ocupação da Bielorrússia pela Alemanha nazi, ver "Um sentido sensível", 15 de Julho de 2013).  
                    Defiance
         Edward Zwick faz este seu filme de uma maneira invulgar para um filme de guerra, pois mantém frequentemente a sua câmara, de novo com o português Eduardo Serra como director de fotografia, muito próxima dos rostos dos actores, o que além de dar uma maior intimidade com as personagens exige mais aos actores, numa realização, salvo nos momentos de combate, nomeadamente no final, sem recurso ao grande espectáculo, muito boa e segura de modo a não deixar esmorecer o dramatismo.
      É importante chamar a atenção para este filme porque ele trata de uma maneira extremamente digna um episódio muito importante com base no qual os seus protagonistas não procuraram reconhecimento, porque é um filme que, na sua secura e no seu classicismo, atinge a emoção pelas melhores razões e pelos melhores meios dramáticos, e porque é realizado por um cineasta sério, com uma obra já importante atrás de si sem que para o seu nome tenha chamado especial atenção até agora. Iniciado com imagens documentais, "Resistentes" é um filme muito aconselhável porque não dá uma visão idílica nem da guerra nem da Resistência, especialmente oportuno numa época em que há quem, contra a evidência da História do Século XX, estupidamente queira  recuperar o nazismo, e em que se verifica um preocupante alastrar de ideias neo-nazis e racistas, com consequências ameaçadoras, muito perigosas.    
                   Defiance
       A dignidade e o heroísmo da Resistência, com todos os seus sérios conflitos internos e com todos os seus enormes sacrifícios, está aqui retratada de maneira fidedigna e sem qualquer complacência com o inimigo nem com o colaboracionismo, com actores muito bons, incluindo Daniel Craig no seu melhor, numa interpretação difícil e superior. E a luz na floresta em que "Resistentes" decorre, que os protagonistas comentam no final ser "uma floresta bonita", foi trabalhada com grande sabedoria pelo mais internacional dos portugueses do cinema mundial.
       A este nível, o de Edward Zwick, um cineasta sério é, a partir de onde olho, sinónimo de um grande cineasta. A seguir com atenção.

Um novo autor

        Nascido no Québec, província de expressão francesa do Canadá com uma importante presença no cinema da segunda metade do Século XX (Pierre Perrault, Michel Brault, Gilles Groulx, Claude Jutra, Gilles Carle, Jean-Pierre Lefebvre, Denys Arcand, Arthur Lamothe), Xavier Dolan conseguiu com a sua terceira loga-metragem, "Laurence Para Sempre"/"Laurence Anyways" (2012), ultrapassar o tom de adolescente rebelde e talentoso que marcava os seus dois filmes iniciais, "J'ai tué ma mère" (2009) e "Amores Imaginários"/"Les amours imaginaires" (2010), para construir um filme maduro, tanto narrativa como cinematograficamente. Deixando de lado e para trás "o seu caso", ele consegue aqui, continuando a tratar as questões de sexualidade, objectivá-las de maneira convincente, mantendo intactas as qualidades formais já reveladas.
                    Laurence Anyways Movie Review
       De novo a partir de argumento seu, o filme trata de um homem casado, Laurence Alia/Melvil Poupaud, que resolve revelar à mulher a sua homossexualidade, a caminho da transexualidade e da mudança de sexo, deixando de parte o trabalho anterior do cineasta de que apenas mantém, até apura a ironia, sem cair no melodrama americano que seria possível imaginar. Para um assunto evidentemente dramático, Xavier Dolan assume a complexidade que ele envolve para complexificar a sua narrativa com mudanças dramáticas e inesperadas, alargando progressivamente um sentido do humor que cria distanciamento mesmo relativamente aos momentos mais intensamente dramáticos.
        Claro que este é já um filme muito bom também devido aos seus intérpretes, nomeadamente Melvil Poupaud, que consegue manter a credibilidade do protagonista mesmo nos momentos mais paradoxais e difíceis graças a uma interpretação em retenção controlada que por vezes explode, plena de ambiguidade e de nuances, o que lhe permite manter a hesitação mas também a ironia e até o humor da personagem. Dessa maneira, e também com o abandono do lado mais formalista dos seus dois primeiros filmes, o cineasta constrói uma obra inteligente e comovedora precisamente por jogar contra a emoção mesmo quando a cria, o que o soberbo final vem explicitar.
                   "Laurence Anyways" (Xavier Dolan, 2012)
       Há em "Laurence Para Sempre" personagens originais e contrastadas, vivacidade de diálogos, variedade de situações com transições imprevistas, circularidade que não fecha, antes é rompida inesperadamente, o gosto do limite, da mudança e da reacção, sabedoria da vida e do cinema, e desejo de cinema, o que faz deste um filme invulgar e inteligente, pessoal e trabalhado em todos os seus aspectos.
            Sem qualquer tipo de concessões, Xavier Dolan mostra aqui não ser um simples cineasta obcecado com uma temática, mas um grande cineasta moderno em construção. Como tal para ele aqui chamo a atenção.

África, naturalmente

       Integradas na programação Próximo Futuro/Next Future, estão neste momento na Fundação Calouste Gulbenkian duas importantes exposições de fotografia que têm em comum serem ambas sobre África.
        A primeira é a 9ª Edição dos Encontros de Fotografia de Bamako, com curadoria de Michket Krifa e Laura Serani, que são um acontecimento muito importante porque marca bianualmente uma selecção do melhor que se faz em África na área da fotografia. Com o tema "Para um mundo sustentável", é uma exposição muito boa, com fotografias que captam contrastes que relevam das problemáticas originadas pelo desenvolvimento do continente africano, das consequências paradoxais e dos obstáculos imprevistos que o próprio desenvolvimento provoca, e dão conta de um elevado grau de autoconsciência por parte de um continente normalmente considerado atrasado e pobre, que aqui se mostra e desvenda sem exotismo.
                      
     Há, de facto, grandes fotógrafos africanos na actualidade, que no seu trabalho artístico desenvolvem uma reflexão sobre os actuais conflitos africanos, nomeadamente os originados pelo desenvolvimento. Nesta exposição, através da fotografia e do vídeo somos convidados a tomar contacto com realidades diversificadas e contrastantes, apresentadas de forma crítica, mesmo política. E aí existem fotografias a cores lado a lado com fotografias a preto e branco, revelando a especificidade e utilidade própria de cada um dos processos.
      A segunda exposição, Present Tense. Fotografias do sul de África, patente na galeria de Exposições Temporárias, tem um carácter mais artístico e institucional, e volta-se por isso mais para o lado mais vistoso do continente africano, que o pode tornar mais parecido com o mundo desenvolvido, sem perder o carácter documental, que nos Encontros de Fotografia de Bamako é fundamental. Comissariada por António Pinto Ribeiro, esta é uma exposição de fotografia exigente e muito boa, que também trabalha sobre a tensão entre o preto e branco e a cor.         
                       Foto: Zeinab Badawi talks to Zimbabwe's Finance Minister Tendai Biti about the reality of being in power. With Senegalese human rights activist Alioune Tine and Kenyan environmental campaigner Ikal Angelei, they discuss whether African leaders are at last being held to account by their people.
        A Fundação Calouste Gulbenkian, que tem um longo historial no apoio e na divulgação das artes, tem sido responsável por esta programação anual, Próximo Futuro/Next Future, este ano na sua 13ª edição, que representa uma lufada de ar fresco em termos políticos, culturais e artísticos num país sombrio. Apenas uma parte dessa iniciativa, estas duas exposições de fotografia marcam-na e nela assinalam um momento artístico importante, obviamente muito recomendável.
         Mas sobre África é fundamental também o que, a partir de um ponto de vista diferente, fiquei a conhecer na BBC Word News durante vários fins de semana consecutivos no programa Rendez Vous with Zeinab Badawi, em que esta excepcional jornalista entrevistou figuras destacadas da política, da finança e da cultura africana. Aí, graças a uma mulher de beleza invulgar, de inteligência superior e de um enorme espírito de iniciativa, ela própria nascida no Sudão, fiquei a saber melhor como os africanos vêem o seu presente e o seu futuro de uma maneira que não está ao alcance de qualquer um esclarecer e divulgar (ver "Why Poverty?", 30 de Novembro de 2012, e "Isto também não é importante", 31 de Janeiro de 2013).

sábado, 10 de agosto de 2013

A melhor maneira

       O último filme de Sofia Coppola, "Bling Ring: O Gangue de Hollywood"/"The Bling Ring" (2013) faz inteiramente sentido na obra da cineasta. Enquanto acompanha o gang informal que assalta as mansões das celebridades do mundo do espectáculo e cada um dos seus membros, ela nunca perde de vista que trabalha sobre um fait-divers (o filme parte de um artigo sobre factos reais publicado na Vanity Fair), que, como no seu filme de estreia, "As Virgens Suicidas"/"The Virgin Suicides" (1999), a questão que se lhe coloca é como melhor "montar o cerco" às personagens em termos fílmicos para as mostrar tal como elas são. Para tentar compreender.
                     Watson takes a walk on the wild side for her role in  "The Bling Ring."
     Claro que o gang e a sua história são sintomáticos da Hollywood de hoje (que é a manifestação actual da Hollywood de sempre), mas o que mais interessa à cineasta é mostrar secamente como as suas personagens jovens e bonitas se entretêm como num passatempo, misto de afirmação, curiosidade e inconformismo. Há neles crueldade, mesmo maldade? Há sobretudo espírito de aventura (limitada aventura), vontade de fazer o que mais ninguém fez e de quebrar o interdito para chegar aos famosos.
       Percebe-se o gosto de Sofia Coppola em falar sobre aquilo que conhece, um meio que conhece, tal como se percebe que ela escolheu este assunto não por se ter deixado seduzir pela fama fácil, tão fácil de Hollywood, mas para tentar identificar nele aquilo que de relevante uma fama hollywoodiana também arrasta consigo, com Paris Hilton e Kirsten Dunst representando-se a si próprias e Emma Watson, a Hermione Granger dos filmes de Harry Potter, tomando conta das operações e do filme em muito boa companhia. Não tenhamos dúvidas: como os últimos de David Lynch, "Mulholland Drive" (2001) e "Inland Empire" (2006), este é um filme sobre o próprio cinema.
                    
      Tudo se resolve de forma amável e serena com o funcionamento dos meios que o sistema proporciona, como se ninguém tivesse sido ofendido e tudo não tivesse passado de uma brincadeira, guardando-se a última palavra sobre o assunto para a internet, que tinha sido utilizada na preparação dos assaltos, e ao mostrá-lo como tal a cineasta guarda a justa distância crítica, que transmite intacta ao espectador. Em termos visuais e espaciais "Bling Ring: O Gangue de Hollywood" está muito bem construído em interiores e em exteriores - notável o assalto a uma casa filmado à distância, a partir do exterior. A música, de Daniel Lopatin e Brian Reitzell, e as canções, muito bem escolhidas e utilizadas, acentuam o tom "nativo americano" do filme. 
                     The-Bling-Ring
       Sofia Coppola é uma grande cineasta, inteligente e sensível, que não falha um filme, como se acolhesse em si a herança artística das gerações anteriores da sua família. Como sempre está presente também no argumento e o filme é dedicado ao grande director de fotografia Harry Savides (1957-2012), que trabalhara com ela em "Somewhere - Algures"/"Somewhere" (2010) - mas também trabalhou com David Fincher, James Gray, Gus Van Sant, Ridley Scott e  Woody Allen -, de quem este foi o último filme.

A natureza nos sentimentos

   Há múltiplas versões cinematográficas de "O Monte dos Vendavais"/"Wuthering Heighs", o romance de Emily Brontë (1818-1848) que marcou uma época na literatura inglesa do Século XIX. Assim de repente, há os filmes de William Wyler (1939), de Luís Buñuel (1953), de Jacque Rivette (1984-85), que são filmes de referência. Mas a partir de agora há também o filme da inglesa Andrea Arnold (2011), de quem é a terceira longa-metragem, que é um filme muito apreciável, feito a seguir ao notável "Aquário"/"Fish Tank" (2009)
                    
    Sendo este um daqueles casos em que se pode falar de um repertório cinematográfica de raiz literária, anteriormente trabalhado por grandes cineastas, há que começar por dizer que o filme de Andrea Arnold está inteiramente à altura dos seus antecessores, até pelo tom pessoal que ela lhe imprime. Para além de um Heathcliff negro, Solomon Glave quando jovem, James Howson quando adulto, o filme destaca-se por um trabalho aturado sobre o plano, as suas linhas de força, o seu enquadramento - com apontamentos preciosos da natureza turbulenta, na primeira parte, da natureza mais apaziguada, mas entre a água da chuva e o fogo da lareira, na segunda -, e um trabalho rigoroso sobre a iluminação, o grande-plano, insistente até ao muito grande-plano, a desfocagem sempre oportuna e justificada do fundo ou do primeiro plano, os movimentos de câmara, que direi excessivos.
     Os apontamentos esparsos que recortam a natureza assumem uma importância muito grande numa história marcada por uma paixão primitiva e precoce, que acaba por se frustrar, e esse lado do amor que passa ao lado do casamento e do casamento - de Cathy, Shannon Beer quando jovem, Kaya Scodelario quando adulta - que passa ao lado do amor está muito bem restituído pelo filme. Além disso, há as pancadas brutais que atingem Heathcliff, na segunda parte a bota da própria Cathy sobre o seu rosto, a fuga dele depois da não-escolha dela entre ele e o marido, Edgar/James Northcote, o que exprime a presença de uma violência ela também primitiva - sem esquecer a perturbadora Isabella, Eve Coverley quando jovem, Nichola Burley quando adulta, que funciona como testemunha não-indiferente.
                    
      Embora não seja especialmente apreciador dos movimentos rápidos com a câmara ao ombro, entendo que os travellings conferem a Heathcliff e à sua paixão um sentimento de premência, mas também de tormento, que os justifica. Juntamente com o acima referido, nomeadamente a presença de uma natureza elementar, por vezes vazia, que contamina o filme e as suas personagens, eles conferem ao filme de Andrea Arnold um sentido de natureza primitiva e selvagem, de destino imparável. Ora tudo isto faz com que este filme se afaste da teatralidade televisiva e do academismo das produções habituais da BBC, mesmo e especialmente quando baseadas em clássicos da literatura inglesa, por mérito da própria realizadora que assim nele deixa a sua marca pessoal.
                    
      Andrea Arnold, participante no argumento como nos seus filmes anteriores, confirma-se assim como um nome muito interessante, a seguir atentamente no actual panorama do cinema inglês. Este seu "O Monte dos Vendavais" é um filme original e pessoal, o que aqui deve ser devidamente reconhecido e assinalado. Não se compara, evidentemente, com "Vale Abraão", de Manoel de Oliveira (1993), mas aí penso mesmo que só ao próprio Manoel de Oliveira podemos exigir que faça filmes como os dele.

Viagem de autocarro

     O francês Michel Gondry é ainda hoje sobretudo conhecido por "O Despertar da Mente"/"Eternal Sunshine of the Spotless Mind" (2004), a sua segunda longa-metragem, com argumento de Charlie Kaufman, que para o seu nome chamou a atenção, embora ele sempre se tenha movido preferencialmente no campo da imaginação e da fantasia. A sua mais recente longa-metragem, "A Malta e Eu"/"The We and the I" (2012), decorre no interior de um autocarro que atravessa New York com adolescentes que regressam do seu último dia de aulas, antes das férias, e tira bem partido desse ponto de partida que funciona como dispositivo básico, de que raramente sai.
                     The We and the I
      Com o tom descontraído que adopta, o filme deixa-se ver como um objecto agradável e consciente de si, sobre um tempo de juventude vivido na actualidade. A pouco e pouco vamos identificando cada uma das personagens, com as suas especificidades próprias, e somos levados a aceitá-las assim mesmo, tal como cada uma delas é e se comporta quando em grupo, naquele grupo em concreto, o que as torna específico motivo de interesse.
        O tom descontraído do filme, que inclui flashes do passado, nomeadamente de imagens de telemóvel, dá-lhe um carácter próprio, mas "A Malta e Eu" acaba por incluir um espisódio dramático, que implica gravidade e se insere bem na lógica criada depois do convívio ter mudado de tom com a única saída com regresso do autocarro, permitida por um engarrafamento, e sobretudo com o episódio do par gay desavindo. Também gradualmente, em especial a partir daí cada um vai revelando mais de si próprio, de quem verdadeiramente é, como se este episódio se tornasse contagioso, precedendo as sucessivas saídas do autocarro no destino de cada um.
                     A Malta e Eu
         Michel Gondry faz bem em não adoptar um tom sério e sizudo para tratar de personagens que vivem descomprometidamente a sua juventude, com a ligeireza, a crueldade feliz própria da idade e do meio. De novo com participação no argumento, sem pretenciosismo nem falso moralismo, antes como quem olha com atenção uma realidade que como tal respeita e quer mostrar, com desenvoltura o cineasta faz-nos embarcar nesta viagem de autocarro com as suas personagens e segui-la até ao fim. Não há grandes questões? Não, não há, mas é assim mesmo que se vive naquela idade, se descobre a vida e o mundo, e os actores que se representam a si próprios estão todos muito bem, sempre no tom certo e no registo justo.
                    
       A grande questão de "A Malta e Eu" é o próprio filme, a sua criação e construção, que implica imaginação, esforço e empenhamento pessoal de todos, e conduz a um resultado final coerente e feliz, em que a revelação do Eu do título surge, inesperada, no momento próprio.