“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sexta-feira, 31 de julho de 2015

Uma primeira vez

    "Madame Bovary", de Gustave Flaubert, um dos melhores e mais famosos romances do Século XIX, tem justamente merecido a atenção de alguns dos grandes nomes do cinema: Jean Renoir (1934) e Vincente Minnelli (1949), Claude Chabrol (1991) e Manoel de Oliveira (1993). Contudo, o "Madame Bovary" da francesa Sophie Barthes (2014) é a primeira vez que esse romance é levado ao cinema por uma mulher.
    A cineasta, de quem não conheço a longa-metragem de estreia, "Alma Perdida"/"Cold Souls" (2009), com a participação de grandes actores de que se destaca Mia Wasikowska no papel principal mas com Paul Giamatti e Olivier Gourmet como actores convidados, consegue no seu filme o feito de não colocar a sua adaptação em lugar secundário perante tão importantes precedentes. Sem se agarrar a eles e mantendo-se como co-argumentisa, ela consegue um olhar distanciado mas próximo sobre uma mulher ambiciosa que procura subir apesar da, e com a sua insatisfação.
                      Mia Wasikowska plays Emma Bovary.
     Com momentos de pura inspiração visual, como Emma Bovary entre os cavalos, e outros bem resolvidos num filme todo ele muito bom em termos visuais (excelente fotografia de Andrij Parekh) e sonoros (embora um tanto excessiva, a música de Evgueni e Sacha Galperini é muito boa), "Madame Bovary" de Sophie Barthes cumpre bem, sem deslumbrar mas sem desiludir na sua realização, um programa narrativo conhecido, sem dó nem piedade mas traçando também com justeza um quadro social de época, com muito bom aproveitamento dos cenários naturais. E Mia Wasikowsaka vem juntar a sua interpretação, muito boa, a uma linha notável: Valentine Tessier, Jennifer Jones, Isabelle Huppert, Leonor Silveira.
      Vi e recomendo este filme porque penso que a sua narrativa e a sua protagonista se mantêm actuais, o que o filme de Sophie Barthes plenamente confirma, mas também porque, atendendo aos filmes precedentes, se trata de um especialmente importante "filme de programa" com os melhores antecedentes no cinema. Sobre Gustave Flaubert, aconselho "O Papagaio de Flaubert", de Julian Barnes (Lisboa: Quetzal, 2010 para a última edição).

domingo, 26 de julho de 2015

Abelhas e vespas

   Todos os anos por esta altura, absolutamente arrasado por um ano de trabalho e quase sempre, como este ano mais uma vez acontece, sem a perspectiva de férias decentes, entro numa sala de cinema para ver um filme. Um filme qualquer, apenas mais um filme, novo ou antigo.   
                        
    Calhou este ano ver "Mr. Holmes", de Bill Condon (2015), uma produção inglesa da BBC que aparentemente não tem nada de novo a acrescentar, mas tem. Num país que se gaba de uma cinefilia intransigente, as produções da BBC não têm boa fama mas, apreciador e conhecedor que sou da literatura policial desde antes do seu início formal com Edgar Allan Poe, não tenho por mim preconceitos desses.
    O filme de Bill Condon, de quem conheço apenas "Deuses e Monstros"/"Gods and Monsters" (1998), "Relatório Kinsey"/"Kinsey" (2004)  e "O Quinto Poder""/The Fifth Estate" (2013), tem a funcionalidade cinematográfica que seria de esperar mas sobre uma personagem célebre da literatura policial, Sherlock Holmes, surpreendida nos seus 93 anos, quando tenta de memória corrigir a memória do fatídico cronista John Watson sobre o seu "último caso", sucedido 35 anos antes. Com aquele enredar e desenredar da narrativa que, sendo óbvio, se pode tornar irritante, "Mr. Holmes" surpeende pela justeza de tom, pela própria narrativa (baseada na novela de Mitch Cullin "A Slight Trick of the Mind" - edição portuguesa "Sr. Sherlock Holmes", Topseller, 2015) e pelas interpretações, ao confrontar-nos com as memórias do protagonista evocadas para um seu jovem interlocutor e para si próprio.     
                     mr holmes 17 
     Ora o caso que motivou o afastamento do célebre detective envolve uma mulher casada, acaba mal e, contrariando a narrativa oficial de Watson, tem implicações pessoais que levam para o outro lado, pessoal, de Sherlock Holmes, sempre equívoco nos livros de Arthur Conan Doyle. E há aí, neste filme, o cruzamento do fracasso, da solidão e da morte, que o torna verdadeiramente interessante, quase comovedor sempre dentro de uma frieza britânica que a interpretação de Ian McKellen, excelente, tempera - ele que fora um admirável James Whale no mencionado filme de 1998.
     Com as lberdades temporais tomadas, ainda para mais colocando o protagonista a assistir ao filme a preto e branco da versão oficial daquele caso, se vos disser alguma coisa em termos de cultura geral (eu não acredito numa cultura exclusivamente cinematográfica) vejam este "Mr. Holmes" de Bill Condon sem a histeria do "cinema de autor", embora ele seja, de facto, um bom cineasta, e saiam do torpor de uma produção banal e bocejante como aquela em que estamos maioritariamente mergulhados. E, já agora, leiam os livros de Agatha Christie que estão a ser publicados com o jornal Público, que se contam entre o melhor da literatura do Século XX.

Um génio de passagem

   O mais recente filme do inglês Peter Greenaway, "Que viva Eisenstein!"/"Eisenstein in Guanajuato" (2015), com a estética ágil, hábil e formalista do cineasta trata da viagem de Sergei M. Eisenstein (1898-1948) ao México onde, em 1931, rodou o célebre "Que Viva México!", que nunca pôde finalizar.
                     Photo 1 pour QUE VIVA EISENSTEIN !
    Mais centrado na vida pessoal do que no trabalho do cineasta, o filme de Peter Greenaway trata a experiência homossexual dele naquela ocasião, com o seu guia mexicano, que é tornada inteiramente compreensível pela inocência inexperiente de um homem então com 33 anos de idade. Interpretado por Elmer  Bäck com entusiasmo e extroversão infantis, Eisenstein recebe aqui uma boa figuração cinematográfica numa época que se sucede aos seus grandes filmes dos anos 20, com excertos pertinentemente incluídos - apenas se estranha a ausência de "O Velho e o Novo" ou "A Linha Geral"/"Staroié I Novoie" ou "Generalya Lynea" (1926-1929).
    Que tenha sido sob a acusação (!) de homossexualidade que um dos grandes génios da história do cinema se viu proibido de continuar a fazer filmes depois do seu regresso à União Soviética de então foi um dos maiores crimes do estalinismo. Um crime verdadeiramente odioso de gente tacanha, mesquinha e fanática, que prolongou o mau fado do seu filme mexicano, aqui aludido de passagem, e que contra outros cineastas soviéticos com outros pretextos se repetiu na mesma época.
                     Que viva Eisenstein2
    Longe de minimizar o seu objecto, "Que viva Eisenstein!" engrandece-o ao olhar da história e sobretudo humaniza-o, o que é muito importante, ligando o sexo e a morte. Peter Greenaway continua assim a tratar da arte e da sua história de uma maneira feliz, a que o seu formalismo e esteticismo se ajustam bem, do que estamos, porém, sem notícias desde "A Ronda da Noite"/"The Nightwatching" (2007) neste miserável panorama da distribuição comercial portuguesa (sobre o cineasta ver "Outro filme histórico", de 30 de Abril de 2014).
    Porque tem tudo a ver com a experiência narrada e descrita neste filme, veja-se de S.M. Eisenstein "Desenhos Secretos", de Jean-Claude Marcadé e Galia Ackerman (Lisboa: Quetzal, 2003).     

domingo, 12 de julho de 2015

Por Jafar Panahi

     O muito aguardado "Táxi de Jafar Panahi"/"Taxi", do iraniano Jafar Panahi (2015), é mais um filme superior deste grande cineasta, que traz de novo até nós a difícil situação do seu país e a muito difícil situação em que ele próprio vive e trabalha.  
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     Optando de novo, como no anterior "Isto não é um Filme"/"In film nist" (2011), por expor-se a si próprio, desta feita como motorista de táxi, de forma menos rígida o cineasta reinventa o dispositivo de "Dez"/"Dah", de Abbas Kiarostami (2002), para conversar com alguns passageiros sobre o seu quotidiano - o ferido num acidente e a sua mulher, as senhoras com os peixes, o seu antigo amigo dos filmes clandestinos.
     Mas a grande invenção do filme passa pela sua sobrinha pequena, que quer ela própria fazer um filme (e faz) seguindo as regras que lhe ensinam na escola sobre "um filme distribuível". Com esse pretexto, o cineasta constrói um filme dentro do filme, fala ele próprio e dá a palavra a uma sua amiga, advogada - a senhora das rosas. Tudo simples, com a irreverência da sobrinha mas sem perder a gravidade do próprio Panahi, que o final completamente esclarece.
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     Se fosse preciso (e era), "Táxi de Jafar Panahi" confirma um grande cineasta no cativeiro que, longe se deixar abater ou desistir, a partir da sua situação constrói mais um grande filme sobre o seu sombrio país na actualidade. E com estas coisas faz-se humor, claro, mas não se brinca (sobre o cineasta ver "Para Jafar Panahi", de 17 de Fevereiro de 2015).

Um actor invulgar

    O egípcio Omar Sharif (1932-2015) foi um grande actor com características pessoais próprias, que se tornou internacionalmente conhecido com "Lawrence da Arábia/"Lawrence of Arabia" (1962) e "Doutor Jivago"/"Doctor Zhivago" (1965), ambos de David Lean. Nessa mesma década interpretou outros filmes importantes, como "O Rendez Vous"/"The Appointment", de Sidney Lumet (1969), em que contracenou com Anouk Aimée, e "Che!", de Ricard Fleischer (1969).
                     omar-sharif
    Tendo começado no cinema em filmes do seu compatriota Youssef Chahine - ver "Youssef Chahine (1926-2008)", de 18 de Janeiro de 2012 -, teve uma carreira notável, durante a qual trabalhou com outros grandes realizadores, como Anthony Mann, John Frankeiheimer, Herbert Ross, Andzrej Wajda, Bob Rafelson, John McTiernan, Valeria Bruni Tedeschi. E em tudo o que fez para o cinema, e também para a televisão, deixou a sua marca pessoal e inconfundível, tornada indissociável, porém, dos dois referidos filmes de David Lean dos anos 60. Honra à sua memória.

sexta-feira, 10 de julho de 2015

Génio de Orson Welles

      Como vem sendo internacionalmente assinalado, passa este ano o centenário do nascimento de Orson Welles (1915-1985), o imenso e mítico cineasta e actor que foi o único a poder, em termos diferentes, rivalizar com Charles Chaplin já em tempos de cinema sonoro. E ele foi, com Sergei M. Eisenstein, um dos raros génios que o cinema enquanto arte conheceu no seu primeiro século de existência.
      Nascido em 6 de Maio de 1915 em Kenosha, no Wisconsin, desde muito cedo revela a sua preferência pelo teatro e se inicia na prestidigitação. Frequenta a Washington School de Madison e a Todd School, viaja pela Europa e o Extremo Oriente (China e Japão). Em 1931/1932 está  em Dublin, na Irlanda, onde trabalha como actor e encenador na Dublin Gate Company. De regresso aos Estados Unidos, estreia-sa na rádio e realiza o seu primeiro filme, "Hearts of Age", mudo e com 5 minutos de duração, em 1934. É responsável pela edição comentada por si das obras de William Shakespeare, "Mercury Shakespeare", encena e interpreta para o teatro os grandes nomes do teatro europeu e americano, trabalha para o Federal Theatre e está na fundação do Mercury Theatre em 1937. Com a emissão radiofónica de "A Guerra dos Mundos"/"The War of the Worlds" a partir de H. G. Wells torna-se famoso nos Estados Unidos em 1938.
                     citizen-kane-1941-08-g
     Após alguns projectos não concluídos, agora recuperados, estreia-se estrondosamente no cinema como realizador, co-argumentista (com Herbert J. Mankiewicz) e actor com "O Mundo a Seus Pés"/"Citizen Kane" (1941), que apenas ganharia o Óscar do melhor argumento original - e a esse nível ele nunca iria além disso, como Alfred Hitchcock nunca foi além do Óscar para o melhor filme por "Rebecca" (1940), que está longe de ter sido o seu melhor filme - nem um nem o outro receberam alguma vez o Óscar do melhor realizador. Ora "O Mundo a Seus Pés" tinha vários "segredos de fabrico": a construção temporal, com recurso ao flash-back; o uso do plano-sequência com profundidade de campo, graças à grande-angular utilizada pelo director de fotografia Gregg Toland; as vozes e os sons.
      Logo no ano seguinte começaram os seus problemas com a RKO, que não o deixou terminar "O Quarto Mandamento"/"The Magnificent Ambersons", embora sem a sua montagem os últimos vinte minutos do filme funcionem muito bem em termos de recordação, portanto de tempo, não expressamente evocado em flash-back, como em "Citizen Kane" acontecera. Segue-se o documentário "It's all True" (1942), filmado no Brasil em réplica a "Que viva México!", de Eisenstein (1932), que como a este aconteceu não pôde terminar, filmar tudo o que queria e montar.  
                   
     Depois de "O Estrangeiro"/"The Stranger" (1946), de que reconheceu apenas uma autoria partilhada embora tenha marcado como actor, em 1948 realiza "A Dama de Xangai"/"The Lady from Shanghai" em que o esquema narrativo de filme policial é acompanhado por uma voz-off narrativa omnisciente e ele exerce a crueldade necessária com a sua então já ex-mulher, a belíssima Rita Hayworth, estabelecendo o modelo do homem verídico e do homem falsificante e culminando na mítica cena da sala dos espelhos. Do mesmo ano de 1948 é "Macbeth", a sua primeira incursão shakespeariana no cinema e um filme notável.       
      Tendo prosseguido entretanto uma carreira excepcional, também ela, como actor de cinema em "A Jornada do Medo"/"Journey into Fear", de Norman Foster (!942) e "A Paixão de Jane Eyre"/"Jane Eyre" (1944), de Robert Stevenson, nomeadamente, Orson Welles, que tinha sido Cagliostro em "Magia Negra"/"Cagliostro", de Gregory Ratoff (1947), interpreta Harry Lime em "O Terceiro Homem"/"The Third Man", de Carol Reed, marcando decisivamente o filme, e vem para a Europa nos anos 50, onde realiza o seu segundo filme shakespeariano, "Otelo"/"Othello" (1952), resultado possível de condições de produção penosas e difíceis. De 1955 data "Relatório Confidencial"/"Confidential Report" ou "Mr. Arkadin", que relança o tema do verídico e do falsificante com este interpretado por ele próprio em termos perturbadores. Em 1954 interpretara  Benjamin Franklin em "Se Versailles Falasse"/"Si Versailles m'était conté", de Sacha Guitry.
                   
       Regressa a seguir à América e a Hollywood para ser o pastor no início de "Moby Dick" de John Huston (1956), para o qual interpreta também "Raízes do Céu"/"The Roots of Heaven" (1958), e para "A Sede do Mal"/"Touch of Evil", mítico pelo novo uso do plano-sequência com profundidade de campo na cena inicial, que o restauro com supervisão de Jonathan Rosenbaum desmontou em 1998 na recuperação da versão do autor, pelo retomar do homem verídico e do homem falsificante depois de Shakespeare, de novo com ele próprio como argumentista e interpretando o segundo, e mítico também pelo seu final. Do seu trabalho como actor nesta época destacam-se ainda "Paixões Que Escaldam"/"The Long, Hot Summer" (1958), de Martin Ritt e baseado em William Faulkner, "O Génio do Mal"/"Compulsion" (1959) e "Drama num Espelho"/"Crack in the Mirror" (1960), ambos de Richard Fleischer.            
     De novo na Europa, dirige e interpreta nos anos 60 um histórico e memorável "O Processo"/"The Trial" (1962), segundo Franz Kafka, e "As Badaladas da Meia-Noite"/"Chimes at Midnight" (1965), em que em volta de Falstaff reúne várias peças de Shakespeare - e esse terá sido o seu mais importante filme a partir de uma tal fonte, consigo próprio a interpretar o homem da generosidade e da dádiva. Termina a década com "História Imortal"/"The Immortal Story", filme enigmático passado em Macau baseado em Isak Dinesen/Karen Blixen, que foi o seu primeiro filme a cores.
                   
      Nos anos 70 prossegue a actividade que vinha desenvolvendo no documentário de curta-metragem baseado no seu nome e na sua fama e realiza ainda o fundamental "F for Fake" (1973) e o assombroso documentário "Filming Othello" (1978). Já depois da morte de Orson Welles de um ataque cardíaco em 10 de Outubro de 1985 são estreados o esclarecedor "Dom Quixote de Orson Welles"/"Don Quijote de Orson Welles", deixado inacabado e inédito, com montagem (discutível) do espanhol Jesus Franco (1992), e a montagem de "It's all true" feita pelo seu assistente Richard Wilson, por Myron Meisel e por Bill Krohn (1993), e é apresentado "The Other Side of the Wind" (1), pelo que dele conheço talvez a sua obra-prima absoluta, com John Huston como actor. Como actor, destaque para "La riccotta", episódio de ROGOPAG dirigido por Pier Paolo Pasolini (1964), "Casino Royal", de John Huston (1967), e "A Década Prodigiosa"/"La décade prodigieuse", de Claude Chabrol (1971), num actor imenso que financiava os filmes que realizava com o que ganhava como actor e que fez a narração off de "Directed by John Ford", feito para a televisão por Peter Bogdanovich (1971). 
     Responsável, com William Wyler e John Huston, pelo lançamento do cinema moderno americano, simultâneo com o neo-realismo italiano, que foi extremamente influente no futuro do cinema americano nos anos 50 e 60, nomeadamente para Robert Aldrich e Stanley Kubrick, Orson Welles excedeu-o de forma manifesta num rumo pessoal e moderno em que, além de explorar o homem verídico e o homem falsificante de forma original, explorou a própria generosidade, a "bondade" da vida em si própria (Falstaff, Dom Quixote), e rasgou os caminhos do falso na arte, na pintura e no cinema de forma decisiva (o escorpião, uma vida esgotada, degenescerescente desde "A Dama de Xangai"), colocando assim em causa a faculdade de julgamento, como nota Gilles Deleuze (2).
                      John Huston, Orson Welles and Peter Bogdanovich
     Salvo Chaplin, seu igual, não sei de outro como ele, mais importante do que ele - que confessava ter visto dezenas de vezes "Cavalgada Heróica"/"Stagecoach", de John Ford (1939), antes do seu primeiro filme oficial - no cinema americano. Puro génio em perda sem nunca se deixar abater, que namoriscou a Série B com o maior sucesso e exigência: "A Dama de Xangai", "Macbeth", "Relatório Confidencial", "A Sede do Mal". Só Alfred Hitchcock, que nem sequer era americano mas inglês. E para melhor cineasta mundial de sempre é o mais forte candidato com Eisenstein, Fritz Lang, Friedrich Murnau, Hitchcock, Jean Renoir e Kenji Mizoguchi. Se souberem de alguém ao seu nível depois dele digam-me (3).

     Notas
    (1) Filme mostrado por Oja Kodar há alguns anos na Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, sobre o qual se pode consultar "The Other Side of the Wind - Scénario/Screenplay", concebido e dirigido por Giorgio Gosetti (Cahiers du Cinéma/Festival International du Film de Locarno, 2005).
     (2) Cf. Gilles Deleuze, "L'image-temps" (Paris: Les Éditions de Minuit, 1985, Capítulo 6, pág. 165).
     (3) Em português, cf. "Orson Welles", de Maurice Bessy (Lisboa: Editorial Presença, 1965); "Orson Welles", de André Bazin (Lisboa: Livros Horizonte, 1991); "As Folhas da Cinemateca: Orson Welles", com organização literária de António Rodrigues (Lisboa: Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, 2004); "O Livro Orson Welles", de Paolo Mereghetti, com Mário Augusto como consultor para a edição portuguesa (Colecção Grandes Realizadores Cahiers do Cinéma - Público, 2008); "Temas de Cinema: David Griffith, Orson Welles, Stanley Kubrick", de Lauro António (Lisboa: Dinalivro, 2010).                   

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Maria Barroso (1925-2015)

    Acabou de nos deixar uma mulher notável que foi grande actriz de teatro e de cinema. 
   Natural da Fuseta, Maria Barroso fez  o curso de Arte Dramática na Escola de Teatro do Conservatório Nacional e licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Começou por trabalhar como actriz no teatro, nomeadamente na Companhia Amélia Rey Colaço-Robles Monteiro do Teatro Nacional entre 1944 e 1948, ano em que atrabiliariamente o regime fascista a afastou por razões políticas.
                                
      Figura destacada do movimento anti-fascista português, casou com o então líder oposicionista e futuro Presidente da  República Mário Soares e esteve entre os fundadores do Partido Socialista em 1973. Para além de regressos esporádicos ao teatro e de uma importante actividade como declamadora de poesia, a sua actividade de actriz passou também para o cinema, com interpretações de muito mérito em "Mudar de Vida", de Paulo Rocha (1966), um dos filmes fundadores do Novo Cinema Português do anos 60, e "Benilde ou A Virgem-Mãe", de Manoel de Oliveira (1974), baseado em peça de José Régio que ela interpretara para o teatro. Nesses dois filmes, e nas suas outras breves aparições no cinema, tivemos o privilégio de assistir ao trabalho de extraordinária subtileza, inteligência e riqueza expressiva desta grande actriz, que merecia ter tido uma outra vida no teatro e ter sido mais requestada pelo cinema.
                    
       Com uma vida pública e intelectual do maior relevo, nomeadamente no ensino, Maria Barroso viria entretanto a marcar fundamente a sociedade portuguesa, tendo-se tornado uma figura muito conhecida pelos seus méritos pessoais, pelas suas actividades sociais e políticas e pelas suas convicções, admirada por todos. 
       Na hora da partida desta grande senhora, activista de grandes causas, actriz de teatro e de cinema e professora, curvo-me respeitosamente perante a sua memória e deixo aqui expresso o meu muito sentido pesar à família - Mário Soares, os seus filhos João Soares e Isabel Soares, e os seus netos, bem como os seus sobrinhos Mário, Eduardo e Alfredo Barroso.

domingo, 5 de julho de 2015

O rapto

     Poderá dizer-se para começar que os factos mereciam um filme: em Dezembro de 1977 morre Charles Chaplin na Suiça, onde é enterrado. Pouco depois, o seu caixão com o seu cadáver foi "raptado" do cemitério. Escândalo, mistério.
     Baseando-se em factos reais e públicos, o francês Xavier Beauvois, sobretudo conhecido por "Dos Homens e dos Deuses"/"Des hommes et des dieux" (2010), constrói "O Preço da Fama"/"La rançon de la gloire" (2014) com argumento, adaptação e diálogos seus, Benoît Poelvoorde como Eddy Ricaart, Rocshdy Zem como Osman Bricha (os dois "raptores"), fotografia de Caroline Champetier e música de Michel Legrand, enfim, a nata do melhor do cinema francês. 
                   Imagem do filme "La rançon de la gloire", de Xavier Beauvois
     O primeiro, e decisivo, factor de sucesso do filme é a forma como os dois actores principais encarnam os respectivos papéis, no limite entre a irrisão e o burlesco, numa continuação muito bem vista do próprio "raptado enquanto actor". Tudo se joga durante a preparação até à consumação do rapto, após o qual, e enquanto eles fogem, a música de Michel Legrand como que enlouquece. Mas a partir daí o duo mantém-se como tal no mesmo registo, cada um deles com as suas características próprias, durante o confronto com a família do "raptado" a que um dispositivo circense liderado por Rosa/Chiara Mastroianni faz um contraponto muito apropriado.
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      E a homenagem a Chaplin é tanto mais justa quanto levada para o seu próprio campo expressivo por dois grandes actores, enquanto inclui excertos de pelo menos um filme seu, que o faz aparecer vivo e novo, e a música agarra repetidamente no tema de "As Luzes da Ribalta"/"Limelight" (1952), o que torna este "O Preço de Fama" um filme sobre o próprio cinema, que com um pretexto narrativo minimal continua a ser grande cinema sem qualquer tipo de concessão que lhe seja exterior, contra o negócio baratucho e o espectáculo ocioso em que ele se transformou.
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       Mesmo que Xavier Beauvois tenha tomado liberdades em relação aos factos e personagens, o seu filme coloca-nos permanentemente do lado dos dois "raptores" como pobres diabos, seres humanos, e esse facto confere-lhe um peso próprio e uma densidade original que fazem contrapeso à fama justa do morto "raptado", muito bem representado pela sua neta Dolores Chaplin. Prolongando a candura que a presença da filha de Osman, Samira/Séli Gmach, inculca desde o início, o final em termos de melodrama e de circo torna-se perfeitamente justificado porque vem dizer que, nos seus dois "raptores", Charlot continua. Mesmo mais, que é preciso continuar a raptá-lo, como na justa imagem pós-genérico final do filme (sobre este grande homem do cinema ver "Génio de Chaplin", de 7 de Fevereiro de 2014, e "Poética de Chaplin", de 28 de Fevereiro de 2014).

         Nota 
        Acaba de sair em português a nova biografia escrita por Peter Ackroyd, "Charlie Chaplin" (Lisboa: Teodolito, 2015), que obviamente aconselho.

Mulher enquanto actriz

    O mais recente filme de Olivier Assayas, "As Nuvens de Sils Maria"/"Clouds of Sils Maria" (2014), é uma obra surpreendente e muito boa tanto em termos narrativos como em termos fílmicos, em que o cineasta se acrescenta a si próprio enquanto continua a demarcar um perrcurso pessoal muito bom e extremamente interessante..
                  
    Definidamente centrado numa actriz, Maria Enders/Juliette Binoche, que 20 anos depois regressa ao mesmo texto teatral para representar, já não a personagem mais nova, mas a personagem mais velha, muito justamente o filme começa com a morte do autor da peça. Embora ele tenha deixado uma continuação desta, Maria está entregue a si própria para criar uma personagem, Helena, que primitivamente conheceu interpretada por uma outra actriz, já falecida.
     Os ensaios entre ela e a sua assistente, Valentine/Kristen Stewart, que decorrem nos Alpes suíços, permitem-lhe confrontar-se com os seus fantasmas pessoais, nomeadamente os decorrentes do seu próprio envelhecimento a que Juliette Binoche confere a espantosa dignidade da maturidade
                  
     Durante os ensaios, lembrando Ingmar Bergman - "Depois do Ensaio"/"Efter repetitionen", 1984, mas também, e até sobretudo, "A Máscara"/Persona", 1966 (1) - decorre o mais importante de "As Nuvens de Sils Maria", sem embargo do esclarecimento que o epílogo, passado em Londres com a jovem actriz americana que vai interpretar a personagem anterior de Maria, Jo-Ann Ellis/Chloë Grace Moretz, vem trazer: esta nem a mínima pausa de segundos lhe vai permitir à saída de cena. Entretanto, Valentine, talvez o duplo da actriz enquanto jovem, desaparecera sem deixar rasto nem margem de manobra para Maria como actriz e como mulher.
      Com o decisivo contributo de Juliette Binoche numa interpretação excepcional (2), muito bem acompanhada por Kristen Stewart, Olivier Assayas, de novo também argumentista, consegue aqui o feito notável de mostrar as duas faces da mesma personagem, como mulher e como actriz, em função de dois momentos da sua vida distantes no tempo. Quando na actualidade a personagem que interpretara primitivamente lhe é recordada por outra, por outras diferentes dela (sobre Olivier Assayas ver "Outra dimensão", de 19 de Maio de 2014).
                   

      Notas
     (1) Cf. "Conversation avec Bergman", de Olivier Assayas e Stig Björkman (Paris; Éditions de l'Étoile/Cahiers du Cinéma, 1990). 
     (2) Esta é a segunda aparicipação da actriz em filmes do cineasta, depois de "Tempos de Verão"/"L'heure d'été" (2008).