Como vem sendo internacionalmente assinalado, passa este ano o centenário do nascimento de Orson Welles (1915-1985), o imenso e mítico cineasta e actor que foi o único a poder, em termos diferentes, rivalizar com Charles Chaplin já em tempos de cinema sonoro. E ele foi, com Sergei M. Eisenstein, um dos raros génios que o cinema enquanto arte conheceu no seu primeiro século de existência.
Nascido em 6 de Maio de 1915 em Kenosha, no Wisconsin, desde muito cedo revela a sua preferência pelo teatro e se inicia na prestidigitação. Frequenta a Washington School de Madison e a Todd School, viaja pela Europa e o Extremo Oriente (China e Japão). Em 1931/1932 está em Dublin, na Irlanda, onde trabalha como actor e encenador na Dublin Gate Company. De regresso aos Estados Unidos, estreia-sa na rádio e realiza o seu primeiro filme, "Hearts of Age", mudo e com 5 minutos de duração, em 1934. É responsável pela edição comentada por si das obras de William Shakespeare, "Mercury Shakespeare", encena e interpreta para o teatro os grandes nomes do teatro europeu e americano, trabalha para o Federal Theatre e está na fundação do Mercury Theatre em 1937. Com a emissão radiofónica de "A Guerra dos Mundos"/"The War of the Worlds" a partir de H. G. Wells torna-se famoso nos Estados Unidos em 1938.
Após alguns projectos não concluídos, agora recuperados, estreia-se estrondosamente no cinema como realizador, co-argumentista (com Herbert J. Mankiewicz) e actor com "O Mundo a Seus Pés"/"Citizen Kane" (1941), que apenas ganharia o Óscar do melhor argumento original - e a esse nível ele nunca iria além disso, como Alfred Hitchcock nunca foi além do Óscar para o melhor filme por "Rebecca" (1940), que está longe de ter sido o seu melhor filme - nem um nem o outro receberam alguma vez o Óscar do melhor realizador. Ora "O Mundo a Seus Pés" tinha vários "segredos de fabrico": a construção temporal, com recurso ao flash-back; o uso do plano-sequência com profundidade de campo, graças à grande-angular utilizada pelo director de fotografia Gregg Toland; as vozes e os sons.
Logo no ano seguinte começaram os seus problemas com a RKO, que não o deixou terminar "O Quarto Mandamento"/"The Magnificent Ambersons", embora sem a sua montagem os últimos vinte minutos do filme funcionem muito bem em termos de recordação, portanto de tempo, não expressamente evocado em flash-back, como em "Citizen Kane" acontecera. Segue-se o documentário "It's all True" (1942), filmado no Brasil em réplica a "Que viva México!", de Eisenstein (1932), que como a este aconteceu não pôde terminar, filmar tudo o que queria e montar.
Depois de "O Estrangeiro"/"The Stranger" (1946), de que reconheceu apenas uma autoria partilhada embora tenha marcado como actor, em 1948 realiza "A Dama de Xangai"/"The Lady from Shanghai" em que o esquema narrativo de filme policial é acompanhado por uma voz-off narrativa omnisciente e ele exerce a crueldade necessária com a sua então já ex-mulher, a belíssima Rita Hayworth, estabelecendo o modelo do homem verídico e do homem falsificante e culminando na mítica cena da sala dos espelhos. Do mesmo ano de 1948 é "Macbeth", a sua primeira incursão shakespeariana no cinema e um filme notável.
Tendo prosseguido entretanto uma carreira excepcional, também ela, como actor de cinema em "A Jornada do Medo"/"Journey into Fear", de Norman Foster (!942) e "A Paixão de Jane Eyre"/"Jane Eyre" (1944), de Robert Stevenson, nomeadamente, Orson Welles, que tinha sido Cagliostro em "Magia Negra"/"Cagliostro", de Gregory Ratoff (1947), interpreta Harry Lime em "O Terceiro Homem"/"The Third Man", de Carol Reed, marcando decisivamente o filme, e vem para a Europa nos anos 50, onde realiza o seu segundo filme shakespeariano, "Otelo"/"Othello" (1952), resultado possível de condições de produção penosas e difíceis. De 1955 data "Relatório Confidencial"/"Confidential Report" ou "Mr. Arkadin", que relança o tema do verídico e do falsificante com este interpretado por ele próprio em termos perturbadores. Em 1954 interpretara Benjamin Franklin em "Se Versailles Falasse"/"Si Versailles m'était conté", de Sacha Guitry.
Regressa a seguir à América e a Hollywood para ser o pastor no início de "Moby Dick" de John Huston (1956), para o qual interpreta também "Raízes do Céu"/"The Roots of Heaven" (1958), e para "A Sede do Mal"/"Touch of Evil", mítico pelo novo uso do plano-sequência com profundidade de campo na cena inicial, que o restauro com supervisão de Jonathan Rosenbaum desmontou em 1998 na recuperação da versão do autor, pelo retomar do homem verídico e do homem falsificante depois de Shakespeare, de novo com ele próprio como argumentista e interpretando o segundo, e mítico também pelo seu final. Do seu trabalho como actor nesta época destacam-se ainda "Paixões Que Escaldam"/"The Long, Hot Summer" (1958), de Martin Ritt e baseado em William Faulkner, "O Génio do Mal"/"Compulsion" (1959) e "Drama num Espelho"/"Crack in the Mirror" (1960), ambos de Richard Fleischer.
De novo na Europa, dirige e interpreta nos anos 60 um histórico e memorável "O Processo"/"The Trial" (1962), segundo Franz Kafka, e "As Badaladas da Meia-Noite"/"Chimes at Midnight" (1965), em que em volta de Falstaff reúne várias peças de Shakespeare - e esse terá sido o seu mais importante filme a partir de uma tal fonte, consigo próprio a interpretar o homem da generosidade e da dádiva. Termina a década com "História Imortal"/"The Immortal Story", filme enigmático passado em Macau baseado em Isak Dinesen/Karen Blixen, que foi o seu primeiro filme a cores.
Nos anos 70 prossegue a actividade que vinha desenvolvendo no documentário de curta-metragem baseado no seu nome e na sua fama e realiza ainda o fundamental "F for Fake" (1973) e o assombroso documentário "Filming Othello" (1978). Já depois da morte de Orson Welles de um ataque cardíaco em 10 de Outubro de 1985 são estreados o esclarecedor "Dom Quixote de Orson Welles"/"Don Quijote de Orson Welles", deixado inacabado e inédito, com montagem (discutível) do espanhol Jesus Franco (1992), e a montagem de "It's all true" feita pelo seu assistente Richard Wilson, por Myron Meisel e por Bill Krohn (1993), e é apresentado "The Other Side of the Wind" (1), pelo que dele conheço talvez a sua obra-prima absoluta, com John Huston como actor. Como actor, destaque para "La riccotta", episódio de ROGOPAG dirigido por Pier Paolo Pasolini (1964), "Casino Royal", de John Huston (1967), e "A Década Prodigiosa"/"La décade prodigieuse", de Claude Chabrol (1971), num actor imenso que financiava os filmes que realizava com o que ganhava como actor e que fez a narração off de "Directed by John Ford", feito para a televisão por Peter Bogdanovich (1971).
Responsável, com William Wyler e John Huston, pelo lançamento do cinema moderno americano, simultâneo com o neo-realismo italiano, que foi extremamente influente no futuro do cinema americano nos anos 50 e 60, nomeadamente para Robert Aldrich e Stanley Kubrick, Orson Welles excedeu-o de forma manifesta num rumo pessoal e moderno em que, além de explorar o homem verídico e o homem falsificante de forma original, explorou a própria generosidade, a "bondade" da vida em si própria (Falstaff, Dom Quixote), e rasgou os caminhos do falso na arte, na pintura e no cinema de forma decisiva (o escorpião, uma vida esgotada, degenescerescente desde "A Dama de Xangai"), colocando assim em causa a faculdade de julgamento, como nota Gilles Deleuze (2).
Salvo Chaplin, seu igual, não sei de outro como ele, mais importante do que ele - que confessava ter visto dezenas de vezes "Cavalgada Heróica"/"Stagecoach", de John Ford (1939), antes do seu primeiro filme oficial - no cinema americano. Puro génio em perda sem nunca se deixar abater, que namoriscou a Série B com o maior sucesso e exigência: "A Dama de Xangai", "Macbeth", "Relatório Confidencial", "A Sede do Mal". Só Alfred Hitchcock, que nem sequer era americano mas inglês. E para melhor cineasta mundial de sempre é o mais forte candidato com Eisenstein, Fritz Lang, Friedrich Murnau, Hitchcock, Jean Renoir e Kenji Mizoguchi. Se souberem de alguém ao seu nível depois dele digam-me (3).
Notas
(1) Filme mostrado por Oja Kodar há alguns anos na Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, sobre o qual se pode consultar "The Other Side of the Wind - Scénario/Screenplay", concebido e dirigido por Giorgio Gosetti (Cahiers du Cinéma/Festival International du Film de Locarno, 2005).
(2) Cf. Gilles Deleuze, "L'image-temps" (Paris: Les Éditions de Minuit, 1985, Capítulo 6, pág. 165).
(3) Em português, cf. "Orson Welles", de Maurice Bessy (Lisboa: Editorial Presença, 1965); "Orson Welles", de André Bazin (Lisboa: Livros Horizonte, 1991); "As Folhas da Cinemateca: Orson Welles", com organização literária de António Rodrigues (Lisboa: Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, 2004); "O Livro Orson Welles", de Paolo Mereghetti, com Mário Augusto como consultor para a edição portuguesa (Colecção Grandes Realizadores Cahiers do Cinéma - Público, 2008); "Temas de Cinema: David Griffith, Orson Welles, Stanley Kubrick", de Lauro António (Lisboa: Dinalivro, 2010).