O aguardado "Django Libertado"/"Django Unchained", o último filme de Quentin Tarantino (2012), é uma excelente filme, que recupera a memória do western, via o spaghetti western e a personagem de "Django", de Sergio Corbucci (1965), com Sergio Leone um dos mestres deste género,
e se erige em forma de desforra negra sobre a escravatura. É um filme indispensável por mostrar sem preconceitos a realidade da escravatura nas vésperas da eclosão da Guerra Civil americana (1861-1865), e em termos de
Tarantino-film faz todo o sentido pelo estilo, pelo género, pelo
propósito e pelo resultado, que faz dele um super-Tarantino.
Com
argumento do próprio cineasta, este é um filme que procura o lugar-comum
para o exacerbar e sobre ele trabalhar, um tanto como fez o spaghetti
western mas em termos que contêm a pessoal e inconfundível marca do
realizador. Porque
não é ingénuo, Tarantino põe um alemão em papel importante, o Dr. King
Schulz/Christopher Waltz, um caçador de prémios, o que impõe um primeiro
elemento de distanciamento, ele que vai ser o responsável pela
libertação de Django/Jammie Fox. Com este arvorado em ajudante daquele,
prosseguem a sua campanha durante um Inverno, até rumarem ao
Mississipi, onde em cativeiro está a mulher de Django, Broomhilda/Kerry
Washington, às mãos de um senhor sulista, Calvin Candie/Leonardo
DiCaprio, na sua Candyland. Como já foi observado e é muito evidente, os paralelos com "A Desaparecida"/"The Searchers", de John Ford (1956), são claros e mostram bem como o cineasta visou alto.
Ora é depois de chegar à plantação sulista que "Django Libertado" atinge o seu melhor, e progressivamente cada vez melhor, a partir das lutas de negros, o "mandingo", até à soberba penúltima sequência, em que Schulz e Django defrontam todo o gang de fazendeiro e em que o primeiro morre, depois do que Django só, com Broomhilda libertada, enfrenta o irmão de raça que passou para o outro lado, Stephan/Samuel L. Jackson, na sequência final.
Mais do que um filme de actores este é um filme de Quentin Tarantino, para o qual, com os devidos ajustes, cada actor transporta o seu carisma pessoal, que é posto a funcionar além dos seus próprios limites. Nestas condições, quem verdadeiramente surpreende e toma conta do filme é Samuel L. Jackson como Stephen, o negro que é o braço direito do seu dono branco, a que o actor confere um tom e uma espessura muito pessoal numa interpretação notável. Dito isto, há que reconhecer e ressalvar o tom de paródia que o cineasta imprime ao seu filme, que o coloca decididamente do lado da inspiração no spaghetti western, que já trabalhava filmes anteriores seus.
De facto, como Tarantino-film, e para mais western, este é um filme de retardador, de banhos de sangue, de falso, em que os óculos escuros de Django libertado funcionam como elemento de distanciamento e em que a lenda germânica de Brünhilde, que Schulz conta a Django, se cruza com a personagem de banda-desenhada norte-americana Broom-Hilda para, juntamente com a referência a "Os Três Mosqueteiros", de Alexandre Dumas, conferir reconhecíveis e apropriadas referências, demonstrando que não foi em vão que o cineasta fez na Europa "Sacanas Sem Lei"/"Inglorious Basterds", o seu filme anterior (2009).
Maneirista como sempre, Quentin Tarantino consegue voltar aqui ao seu melhor de histórias de crime e vingança, aproveitando para de caminho revisitar um género de há muito defunto, e que não vai ser por isto que vai ressuscitar. O lado de artifício não resulta apenas das personagens e das interpretações, já que a própria fotografia, de Robert Richardson, tem transições e contrastes de artifício que funcionam muito bem. Por sua parte, a música, com abundantes pilhagens no spaghetti western e uma belíssima nova canção de Ennio Morricone, contribui de forma significativa para conferir ao filme um carácter inequivocamente moderno, ou devo dizer pós-moderno, apesar de inusitadas mas compreensíveis referências clássicas, que funcionam muito bem. E a mise ern scène do final é puro Quentin Tarantino no seu melhor, com ele próprio num pequeno papel, pelo que a dedicatória final a Sergio Corbucci, Sergio Leone, Gordon Parks e Sam Peckinpah faz todo o sentido.
Quentin Tarantino é, sem dúvida, um grande, um enorme cineasta, mas enquanto não sair deste registo, conhecido mesmo por tarantinesco, será mais um eterno adolescente, mesmo se sobredotado, no cinema americano, o que está no seu pleno direito querer continuar a ser, para nosso gáudio e divertimento inteligente. Como puro Tarantino, "Django Libertado" é um filme superior e perfeito, mas devo confessar que começo a ficar um tanto farto do registo pessoal deste puro cineasta americano, reconhecendo embora que ele ocupa um lugar muito especial no cinema contemporâneo enquanto continuo a esperá-lo do lado de "Pulp Fiction" (1994), que ainda hoje considero o seu melhor filme (ver "Devastador", 21 de Fevereiro de 2012).