“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 30 de junho de 2013

A correr à chuva

          A terceira longa-metragem de Catarina Ruivo, "Em Segunda Mão" (2012), é um filme curioso e bem construído, cuja parte visual excede mesmo a proposta narrativa enigmática que apresenta. "Eu é um outro" adquire aqui um sentido curioso e bem imaginado, embora elementar e sem pretender deixar de o ser.
            Um escritor de romances eróticos - havia uma personagem semelhante em "Um Adeus português", de João Botelho (1986) - que por curiosidade se deixa envolver numa relação com uma mulher cujo primeiro marido desaparecera, não pode senão chegar ao cansaço dessa relação e das obrigações que ela implica e à procura desse misterioso marido, desaparecido depois de um acidente, para chegar à conclusão de que este tomara o seu lugar de escritor popular, que ele entretanto abandonara.
                                 Filme – foto 5
             De uma grande sobriedade, o filme tem momentos lentos e de espera mas tem também planos de muito feliz construção visual, com a curiosidade de a música que apresenta ser apenas a diegética. Sem pretender jogar na tensão dramática, "Em Segunda Mão" vai-se construindo aos poucos, para gradualmente expor o que tem a dizer sobre aquelas personagens e a situação que vivem, e acabar por resolver-se com alguma surpresa preparada e lógica excessiva no final.
        Depois desse final da descoberta da troca de lugares, há um plano longo em que Jorge/Pedro Hestnes contempla do exterior a mulher que acaba de deixar, Laura/Rita Durão, e a respectiva criança, André/Vasco Apolinário. Depois desse plano, o último, em que Jorge corre à chuva na direcção da câmara.     
                                 Filme – foto 2
          Sendo um filme pessoal e bem construído, mesmo o seu melhor até agora na sua sobriedade contida e muito bem dominada, este não é ainda o grande filme que Catarina Ruivo desde "André Valente" (2004) promete, mas permite manter intacta a confiança que desde aí nela se deposita. (Há ainda problemas de som, com a pós-sincronização, que prejudicam e que a realizadora pode superar no futuro.)
             A correr à chuva se despediu do cinema Pedro Hestnes (1962-2011), um grande actor que sempre soube imprimir o seu génio pessoal a tudo o que fez no cinema, como aqui, contracenando com Luís Miguel Cintra, de novo acontece, e de quem este foi o último filme.     

Filme de programa

       O francês Bruno Dumont é um cineasta sério e exigente que, para permanecer fiel a si próprio e a um conceito pessoal de cinema poético, corre o risco de ficar aquém daquilo que promete, ou, pelo menos, do que dele esperamos. Digo isto porque "Camille Claudeln 1915" (2013), agora estreado em Portugal, prometendo embora um projecto dreyeriano ou bressoniano, se fica por uma secura justa mas desarmante, mais próximo, em todo o caso de um processo que de uma paixão.
         Havia aqui o precedente do filme de Bruno Nuytten, "A Paixão de Camille Claudel"/"Camille Claudel" (1988), com Isabelle Adjani e Gérad Depardieu, que se debruçava sobre a relação de Camille com Auguste Rodin, uma relação artisticamente frutuosa mas também tumultuosa, que era um filme muito bom. Por isso Dumont escolhe um período posterior a essa relação para surpreender Camille/Juliette Binoche na sua reclusão por, na sequência da sua separação de Rodin, ter apresentado sintomas de paranóia e esquizofrenia, para o que se baseia na sua correspondência e nos escritos do seu irmão, Paul Claudel/Jean-Luc Vincent.  
                     camille claudel1
       A loucura é sempre um extremo doloroso para aquele que atinge e para quem com ela convive. Ora aqui o cineasta mantém-se estritamente amarrado ao que está documentado sobre a personagem verídica, evitando a especulação ou assumir um ponto de vista definido, a favor ou contra quem quer que seja. O que podia ser, e até certo ponto é, um trunfo do filme torna-se, desse modo o seu principal limite: o filme sobre a paixão estava feito, restava a Bruno Dumont fazer o filme do processo.
       As liberdades que o cineasta se permitiu nos seus filmes anteriores, nomeadamente em "Hadewijch", 2009, e "Fora, Satanás"/"Hors Satan", 2011 (ver "A dignidade do cinema", 30 de Julho de 2012), ficam assim limitadas pelos documentos autênticos em que se baseou, embora para sobre eles adoptar uma inspiração livre, o que lhe impede os arroubos de Carl Th. Dreyer em "A Paixão de Joana d'Arc"/"La Passion de Jeanne d'Arc" (1928), antes o amarra aos propósitos de Robert Bresson em "Procés de Jeanne d'Arc" (1962) - o que quer dizer que impede o filme de ser a paixão, o que seria redundante, e o torna o processo possível de Camille Claudel. Temos, pois, um filme austero sobre alguém que se separou, foi separada da vida e enclausurada num hospício psiquiátrico no Sul de França, onde a instâncias familiares viria a acabar os seus dias. E aí é depois de assistir ao ensaio de uma representação dom juanesca de outros internados que ela parece assumir uma maior consciência de si e da sua situação.
                            
         Centrado embora nela, o filme consegue habilmente criar a distância justa ao introduzir, na sua segunda parte, a personagem do irmão de Camille, o escritor Paul Claudel, que acaba por trazer distância, a que é permitida por um outro olhar, um outro ponto de vista, normal. E o que isso tem de mais interessante é esse irmão, desde cedo um católico fervoroso, que foi diplomata e figura destacada da literatura francesa da primeira metade do Século XX, ter sido parte importante na insistência familiar na reclusão de Camille, que ele próprio custeou, em lugar de uma vida em ambiente familiar, o que por si mesmo permite inverter o ponto de vista do filme ao ocupar-se também do caso dele.
        De facto, ao mostrar um Paul Claudel perfeitamente seguro da sua superioridade moral, o filme de Bruno Dumont questiona-o mais a ele do que a Camille, serena e não apaziguada na segura, contida e por isso muito expressiva interpretação de Juliette Binoche. Ai dos que se proclamam superiores e normais e por isso se permitem, com segura arrogância, julgar os que pensam não o serem - superiores e normais. Por muito seguro de si próprio que ele pareça e seja, útil mesmo para a compreender a ela, acaba por ser a sua fria seguraça a ser questionada do ponto de vista humano por quem ele julga dominar do alto da sua superioridade.
                    Camille claudel 1915 jean luc vincent
        É um filme demasiado frio? Sim, é. Mas é muito esclarecedor. Fora de campo, o génio de Rodin, que viria a morrer dois anos depois, continua presente, mas nós somos levados a acompanhar o destino da sua parceira e cúmplice no percurso asilar a que o fim da sua relação a votou. Mito maior da cultura francesa do final do Século XIX e do início do XX, e uma grande escultora (excelente o momento em que ela manuseia um pedaço de barro, como se procurasse recordar), Camille Claudel é aqui uma mulher só, abandonada por todos e entregue ao seu destino, como aqueles que amaram em extremo, em excesso, sem se protegerem.
       "Camille Claudel 1915" é um grande filme, frio é certo, mas sincero e crítico de um grande cineasta. Para o certificar, só sobre o genérico final surge a música, a Missa Solemnis BWV 232 de J. S. Bach.

sábado, 22 de junho de 2013

Poética dos actores

     Houve quem escrevesse sobre uma "política dos actores" (Luc Moullet, "Politique des acteurs", Paris, Cahiers du Cinéma, 1993) e foi divertido e pertinente, até para afastar a obsessão da "política dos autores", que foi uma coisa séria que não deve, contudo, ser levada demasiado a sério - ou então deve ser mesmo radicalmente defendida e praticada. Simplesmente, os exemplos então utilizados foram todos de actores do cinema clássico americano - de actores muito bons e muito respeitáveis mas passados. E hoje, como poderá essa questão ser equacionada?
     O Método do Actors Studio veio desvirtuar um tanto a questão, porque originou actores camaleónicos, capazes de interpretar qualquer papel, qualquer personagem com a mesma qualidade, com a mesma convicção - e o cinema é uma questão de convicção, acreditar e fazer acreditar. Numa actualização de uma "política dos actores" prefiro falar numa "poética dos actores", daqueles que fizeram acreditar naquilo que de original criaram em filmes, de filme para filme.
                      Tony Soprano The Sopranos star James Gandolfini dead at 51
        Prefiro, assim, falar no que de pessoal e original certos actores trouxeram àquilo que fizeram para cinema e televisão. Falar naquilo que de pessoal e intransmissível eles trouxeram para o meio de nós. James Gandolfini (1961-2013), evidentemente.
     Quem como ele nos fez acreditar em homens solitários, confusos e confundidos na sua auto-suficiência nos filmes que interpretou, entre o excesso e a contensão? Quem como ele foi inteiramente aqueles que interpretou sem deixar de ser ele próprio, com sabedoria, inteligência e sensibilidade? Robert de Niro com o Método ou Tommy Lee Jones sem ele? 
     Eu sou um ser primitivo e primordial, que me reconheço em actores que como tal me moldaram, me deformaram se quiserem. James Gandolfini era dos meus, capaz de tornar um mafioso mais humano do que muitos que o não são. Havia, há na arte deste actor notável alguma coisa que nos pertence a todos, como espectadores, que nos acrescenta.
                   
       Não quero aparentar o excesso de emoção que me invade neste momento, mas a morte é sempre, para quem provisoriamente fica, um revelador. No momento da morte deste grande actor, eu proponho uma poética dos actores, que pode remeter para o seu justo lugar as ideias oportunamente esgrimidas na praça pública do cinema (ver "Um autor americano", 30 de Maio de 2013).            
       Quem, como James Gandolfini, foi cada um de nós no final do Século XX e no início do XXI, nomeadamente em "Os Sopranos"/"The Sopranos" entre 1999 e 2007? Para mais numa época de justo destaque das mulheres, quem como ele nos deu esse lado secreto que nos caracteriza como homens, de forma aberta, sem pudores ou com os pudores interiorizados? Quem como ele, de origem italiana? Por mim, só Tommy Lee Jones, que não é de ascendência italiana, que eu saiba - antes dele Peter Falk, em Portugal Pedro Hestnes. Há neles um saber do humano que não se transmite de forma automática nem se mima de forma mecânica, antes se constrói a partir do que se é e do que se não é - de uma personalidade.
                     Actor James Gandolfini of 'Sopranos' fame dies at 51
       James Gandolfini foi, é cada um de nós, no olhar, no sorriso, no ar pessoal com que olha para fora sem deixar de se abismar para dentro, e isso talvez seja mais importante do que ser autor reconhecido e galardoado do cinema. Não quero contestar a política dos autores, ou a teoria deles, questão agora ressuscitada pela crítica mais proeminente, nem uma poética dos autores, proposta no seu tempo por Jean-Claude Biette (in "Poétique de auteurs", Paris, Cahiers du Cinéma, 1988), mas acrescento-lhes uma poética dos actores que foram eles próprios de forma transbordante e se excederam em tudo aquilo que fizeram, até ao fim. Ele foi tão grande e tão importante como Clark Gable ou Humphrey Bogart, de quem Luc Moullet não fala, foram no seu tempo, e é preciso percebê-lo e reconhecê-lo. A aura do único no cinema, na televisão passou por ele, como só passou e passa pelos grandes, pelos muito grandes.
      James Gandolfini foi Tony Soprano, tornando-o semelhante a cada um de nós por ser, ele próprio, como cada um de nós. Poucos como ele se podem gabar de tal feito em qualquer época da história do cinema. Se, hoje em dia, se pode ouvir o silêncio ao andar de bicicleta em Lisboa, não é por causa de Fernando Pessoa ou de Herberto Helder, do Requiem de Mozart ou da Sonata nº 23, Opus 57, de Beethoven, mas por causa dele. O meu profundo respeito e o meu maior apreço neste momento.

Desastroso

      Fazer um "O Grande Gatsby"/"The Great Gatsby", baseado no famoso romance de F. Scott Fitzgerald, em 3D, com o australiano Baz Luhrmann, o típico cineasta pós-moderno, como co-argumentista (com Craig Pearce) e realizador (2013), foi desastroso, como não podia deixar de ser.
     Ao seu jeito de planos rápidos e constantes movimentos de câmara, o realizador consegue atingir aqui o seu pior e máximo de ridículo, não passando da superfície do romance de que parte e deixando-nos abismados com a sua falta de domínio do 3D no cinema - este é o pior filme com este processo a que me foi dado assistir até hoje. Nem os actores, com um Leonardo DiCaprio a conseguir atingir a ambiguidade da personagem de Jay Gatsby e Joel Edgerton muito bem como Tom Buchanan, conseguem evitar o desastre.
                     
     O problema maior advém de adoptar como ponto de partida uma obra maior, mítica, da literatura americana do Século XX, de que apenas as cenas festivas podem beneficiar do 3D e do estilo do realizador, o que cria um desequilíbrio manifesto com o resto do filme, em que em certas cenas, em particular em interiores, quer o 3D quer o estilo do realizador se tornam contraproducentes, no limite do risível. E então vários planos do mesmo actor enquanto este fala não é mau, é péssimo.
        Mas o pior mesmo é ser este o tipo de leitura de "O Grande Gatsby" e o tipo de filme que se calhar está mais de acordo com a América actual, mais apto para, com o estilo vistoso próprio do cineasta, captar a atenção desatenta dos espectadores actuais, famintos de divertimento ligeiro e que se bastam num melodrama inofensivo, mais melodrama e mais inofensivo do que "Dallas" ou "Falcon Crest", séries estimáveis feitas para a televisão numa época de crescimento desta, foram no seu tempo. É que o romance de F. Scott Fitzcerald não é um simples melodrama e o cinema americano já fez melodramas muito melhores do que aquele que neste filme Baz Luhrmann cria.
                      gatsby3
       Não me espanta nada que tenha sido este o momento escolhido por gente tão respeitável e responsável como Steven Spielberg e George Lucas para vir falar na "implosão de Hollywood". Eles sabem do que falam e sabem o que dizem. Resta-me comentar que de situações semelhantes Hollywood soube renascer das suas próprias cinzas, mas também acrescentar que a situação actual é especialmente melindrosa porque já toda a gente percebeu que não é o 3D que vai resolver agora os problemas cridos pela concorrência da internet, que parece capaz de ganhar em qualquer terreno ao cinema.
       Não se salva nada deste "O Grande Gatsby" de Baz Luhrmann? Os dois actores referidos, a música de Craig Armstrong e a reconstituição de época dos momentos mais festivos escapam. Além disso, confirma-se apenas o estilo do realizador, também co-argumentista, por certo um autor segundo todos os critérios, mas um daqueles que eu só frequento mesmo por dever de ofício e que, apesar de com ele manter prudentemente baixa a expectativa, sempre me desilude. Salvar-se-á, se se salvar, o resultado de bilheteira, que por si mesmo nunca salvou um filme inferior, como este é, de o ser. Talvez em 2D resulte melhor. Em 3D é um desastre.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Um regresso inusitado

       Quando não são esquecidas, há personagens que se tornam míticas depois da morte, de quem a morte constrói ou amplia o mistério. "À Procura de Sugar Man"/"Searching for Sugarman", do sueco  Malik Bendjelloul (2012), trata em forma de documentário de um caso paradigmático em que tal começou por não acontecer: desconhecido na América, muito popular na África do Sul por volta de 1970, o cantor conhecido por Rodriguez ter-se-ia suicidado durante uma actuação ao vivo, como foi noticiado na época, e depois disso caído no esquecimento.
        A forma de inquérito jornalístico que, com recurso a depoimentos, reconstitui aquele que foi efectivamente feito, permite ao filme construir-se, de forma inteligente e hábil, com a criação do mistério da sua personagem, e esse é o principal motivo do interesse deste documentário. Ora criar um mistério não é fácil num documentário, mas este também não foi um filme fácil de fazer, já que em certos momentos, na falta do equipamento comum de 8mm o realizador filmou com um iPhone, o que dá conta da dimensão da sua fé e da sua proeza, do mérito do seu sucesso
                      1 Searching For Sugar Man 460x258 Folking Legend: Malik Bendjellouls Searching For Sugar Man (2012)   Blu ray review
       Em momento nenhum "À Procura de Sugar Man" deixa entrever a solução do mistério que constrói para o desvendar, uma explicação que surge apenas no tempo justo, tarde e no momento certo, com a naturalidade da descoberta de um enigma retirando o véu que o ocultava: o do desaparecimento e do silêncio. Desse modo, o regresso de Rodriguez é como se ele viesse de um outro mundo, de entre os mortos, para um reaparecimento como homem comum encarado com naturalidade, quando o que entretanto lhe sucedeu é prosaicamente explicado pelas suas filhas e por ele próprio, contudo uma personagem verdadeiramente invulgar.
        A fama tem destas coisas: é possível escapar-lhe sem que ela deixe de perseguir quem dela foge. No caso, a descoberta deste homem e o estabelecimeto da verdade a seu respeito tornaram-se motivo para a recuperação de um grande artista popular, injustamente tratado de um lado do Atlântico mas profundamente popular do outro lado. Quando Sixto Rodriguez procurou (e mereceu) a fama ela fugiu-lhe perto para, sem que ele o soubesse, não o abandonar longe, e quando já nada esperava ela foi de novo ter com ele.
                    
       Operário da construção civil em Detroit, durante o seu desaparecimento este homem invulgar fez um curso de filosofia e criou três filhas, que lhe fazem os maiores elogios. Pergunta-se se não teria sido melhor para ele permanecer onde estava, como estava depois de ter circulado a notícia da sua morte. Mas o seu súbito regresso parece não ter alterado o seu modo de viver, fez a alegria de muitos, talvez também a dele próprio, e em todo o caso a sua história, agora emotivamente contada, contém várias lições para o presente.

A viagem no tempo

         "Antes da Meia-Noite"/"Before Midnight" (2013) é o terceiro filme em que Richard Linklater reúne Julie Delpy e Ethan Hawke, depois de em "Antes do Amanhecer"/"Before Sunrise" (1995) Celine e Jesse, que eles desde aí interpretam, se terem encontrado pela primeira vez e em "Antes do Anoitecer"/"Before Sunset" (2004) se terem reencontrado. Gostámos deste par desde o primeiro filme e é por isso um gosto vê-los de regresso. Nem o realizador nem os actores são quaisquer uns - tanto Julie Delpy como Ethan Hawke já realizaram filmes por si próprios (ver "Uma cineasta completa", 21 de Outubro 2012) -, e aqui, como no anterior, reúnem-se os três no argumento do filme. O resultado é muito bom.
                     Before Midnight
      Passada mais de uma hora do filme, todos esperamos a continuação do tom benevolente e caloroso de umas férias, que estão a acabar, do agora casal Jesse e Celine na Grécia, muito bem filmadas e superiormente interpretadas por todos, em especial pelos dois actores principais. O Sol, as férias, os amigos, tudo parece reunido para que se prolongue uma descontraída, amena e revigorante convivência, que lhes deixa aos dois o tempo e o espaço para longos diálogos a sós. Sobre eles os dois, o filho dele, as filhas gémeas de ambos, o passado e o futuro. Eis senão quando o casal é empurrado para um quarto de hotel, onde vai decorrer o que falta do filme e para alguns será a sua parte mais fraca, que contudo, apesar da excelente, estimulante primeira parte, em contraste com ela considero a melhor, porque decisiva.           
       Postos frente a frente como numa jaula, a conversa de doce torna-se ácida, a benevolência é substituída pela agressividade, as recordações partilhadas por recriminações mútuas. Se antes os dois actores tinham estado muito bem, ao nível do seu melhor apurado pela idade, aí ambos se excedem em depuração da representação, sempre contida mas sempre à beira da explosão, em que, no gume da ironia em que sempre se entenderam, Jesse e Celine abertamente se desentendem. Tudo está acabado com a última saída dela, sem regresso, do quarto, quando ele, que é escritor, se vai juntar a ela no terraço com a ideia da carta que, do futuro, ela escreve a si própria.
                     Before Midnight Julie Delpy
      Tudo se joga nessa segunda parte do filme entre diálogos sempre justos e representações soberbas de naturalidade e quotidiano. Não há ofensa mútua poupada, não há qualquer princípio de aceitação ou compreensão. Tudo se joga e tudo se perde - ou ganha - para ambos os lados. O final... bem, o final tinha de ser aquele para que a série de filmes possa continuar, depois da meia-noite, um destes dias, mas tenho ideia de que todos percebemos que por ali, entre os dois, passou a ideia da separação, que até seria uma solução possível, mesmo eventualmente favorável.
      Não importa. O que faz o fascíno deste "Antes da Meia-Noite" é que permanentemente, de princípio a fim, nos é dada a percepção do tempo que passa, sem regresso passa entre os dois e para cada um deles, o que a conversa em volta da mesa com os seus amigos gregos mais torna sensível. Como nos filmes anteriores, mais do que neles, nós assistimos a um cristal do tempo em formação sobre cristais do tempo passados, sabendo nós que os dois protagonistas o sentem também como tal, e é mesmo por isso que a ideia dele da viagem no tempo é muito bem achada. E não são só as referências mútuas, pessoais, que são aqui relevantes, são as referências repetidas à história da literatura, de uma civilização, do próprio cinema, que nos dão a convergência neste filme de múltiplos tempos e outras circunstâncias - o filme a preto e branco dos anos 50 que ela viu é "Viagem em Itália"/"Viaggio in Italia", de Roberto Rossellini (1954), que se percebe por mais esta apropriada referência continua vivo na memória e influente, por isso perene, ,já que este filme é, para os protagonistas, a sua "viagem à Grécia".
                     Before Midnight Julie Delpy Ethan Hawke
         Não sei como este "Antes da Meia-Noite" tem sido visto e tratado, talvez como comédia sentimental, o que até está na moda, mas para mim ele é um momento de cinema notável construído por Linklater, Julie Delpy e Ethan Hawke, aos quais por isso presto aqui a minha homenagem. Mas por mim acho mesmo que deveriam encarar a sério o divórcio...

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Três vezes Anne

     É uma absoluta maravilha o último filme do sul-coreano Hong Sang-soo, "Noutro País"/"Da-reun na-ra-e-seo"/"In Another Country" (2012). Com uma Isabelle Huppert que se limita a emprestar a sua figura, a sua leveza e a sua graça a um filme em que interpreta três personagens diferentes, todas elas com o mesmo nome de Anne, nas três ficções criadas no interior do filme para três pequenas histórias que as têm no seu centro, o cineasta faz prodígios com meios muito escassos (não precisa de mais) e com o seu já conhecido talento (ver "Pintor de nuvens", 4 de Novembro de 2012), que o está a tornar numa figura mítica do cinema contemporâneo.
                      Fotogaleria do filme «Noutro País»
      Há neste filme a confirmação plena de que Hong Sang-soo é um cineasta da subtileza, que ele aqui leva a extremos abissais de forma muito simples mas muito inteligente, fazendo transitar entre cada uma das histórias algumas personagens e situações - o realizador de cinema com a mulher grávida, o nadador-salvador - e mais do que isso, fazendo a Anne do último episódio ir buscar o chapéu de chuva ao local em que a Anne do episódio anterior o tinha deixado, para com ele se afastar, talvez já só a ideia de Anne, em figura lapidarmente chaplinesca sem minimamente forçar a nota e sem que a comparação surja como estranha ou abstrusa.
      Em cada uma das pequenas histórias surge também a menção a um farol que o torna a ideia de um farol, além de surgirem em diálogos ideias muito interessantes, nomeadamente no segundo, construído sob a forma de sonho, e no terceiro, que gira em torno de um diálogo de Anne com um monge sobre a mentira, o que é tanto mais pregnante quanto em cada um dos episódios surge, de uma ou de outra maneira, a ideia de infidelidade e surge sempre um elemento estranho, uma francesa numa praia na Coreia do Sul.
                      Fotogaleria do filme «Noutro País»
       Os próprios cenários repetem-se de episódio para episódio, acentuando o tom de ficção que cada um deles tem, fruto da imaginação criativa duma jovem argumentista. No fundo, nos mesmos locais e basicamente com as mesmas personagens podem construir-se tantas histórias diferentes quantas se quiser, histórias que podem ligar-se entre si de inúmeras maneiras subtis e muito felizes, como o cineasta Hong Sang-soo aqui faz de forma superior. E nas três histórias as três Anne não serão no fundo a mesma Anne, de que são dadas em cada uma facetas diferentes?
     Claro que é possível descortinar afinidades com "A Mulher Desejada"/"The Woman on the Beach", de Jean Renoir (1947), mas não será preciso esticar muito as comparações para perceber que "Noutro País" é um imenso filme despretensioso em que no país do cinema, que é o cinema deste grande cineasta sul-coreano, tudo se passa como num filme de Hong Sang-soo, e só num filme dele, se pode passar. Aqui não é a Coreia do Sul, mas Portugal que é um país distante, um país a que apesar de tudo é imperioso que os filmes deste extraordinário cineasta cheguem de forma sistemática, para todos podermos apreciar em toda a sua extensão a sua arte, decididamente superior.
                      Fotogaleria do filme «Noutro País»
       Um cineasta como este conhece a sua arte, o seu mundo e os seus espectadores, de tal forma que não se pode permanecer na ignorância da sua obra, da sua arte sem se ser amputado duma parte muito importante e significativa do cinema contemporâneo e do conhecimento de nós próprios. Nem americano nem europeu, Hong Sang-soo é um cidadão, notável, do mundo do cinema.
  
Nota
Sobre Isabelle Huppert, ver também "Silêncios e corpos", 25 de Março de 2013.     

Sufocante

      Cristian Mungiu é um dos nomes mais importantes do "cinema novo" romeno, de quem já conhecíamos "4 meses, 3 semanas e 2 dias"/"4 luni, 3 saptamâni si 2 zile" (2007) e "Histórias da Idade do Ouro"/"Amintiri din epoca de aur" (2009) (ver "Gente comum", 26 de Janeiro de 2013), e dele nos chegou agora o seu mais recente filme, "Para Lá das Colinas"/"Dupa dealuri" (2012), aguardado com a expectativa que os filmes anteriores justificavam.
       Sem defraudar essa expectativa, este é um filme que, baseado em factos reais, é construído pelo realizador a partir de um argumento da sua autoria (como já sucedia nos anteriores) de uma extrema violência concentracionária, no caso monacal, vivida por mulheres em convívio com o seu líder espiritual masculino, o padre que tratam por Pai/Valeriu Andriuta, e sobretudo com uma intrusa, Alina/Cristina Flutur, que, regressada da Alemanha à Roménia em busca de uma companheira de orfanato que ali vive, Voichita/Cosmina Stratan, vai trazer para aquele meio a confusão e o conflito devido à sua instabilidade psicológica, então plenamente revelada.
                   
       A violência física e psicológica do conflito vivido naquela comunidade ortodoxa é, sem qualquer distância, salvo no final, restituída pelo filme em toda a sua morbidez e negrume. Por esse motivo, este é um filme que, embora muito verdadeiro, se torna terrivelmente perturbador por não dar ao espectador qualquer ponto de referência sólido na realidade exterior, salvo nas duas deslocações de Alina ao hospital, a primeira para um internamento temporário, a segunda para a pura e simples verificação do seu óbito. Entre esses dois momentos, e mesmo desde o seu início, o filme segue as peripécias e dificuldades de uma mulher perturbada que quer à viva força convencer a amiga a partir consigo para a Alemanha, e a séria perturbação que a sua estadia naquele meio provoca.
      Se podemos compreender o conflito, e podemos, é-nos muito difícil a ele aderirmos completamente devido à distância cultural que nos separa da religião ortodoxa romena. Por isso, e apesar da distância introduzida muito apropriadamente no final - aquele foi um caso clínico que, partindo do pressuposto da possessão, o convento tentou tratar através do exorcismo e que acaba na acusação de homicídio na sequência de violências -, o mais longe que podemos ir a respeito deste "Para Lá das Colinas" é identificar nele momentos muito curiosos relativos a uma prática religiosa que nos é estranha - ver por todos a "lista dos pecados" a confessar. Mas ao colocarmos a questão desta maneira estaremos provavelmente a ser injustos por não identificarmos neste filme também o clima da Europa Oriental, desses terríveis e temíveis Cárpatos em que, na pena de Bram Stoker, nasceu Drácula, que tão larga posteridade teve no cinema e poderá não andar muito longe deste filme.
                   
             Abrindo assim a leitura do filme para uma região e um tempo histórico mais largo, com a sua cultura própria e as suas tradições específicas, talvez possamos aceder melhor ao âmago do conflito do filme, que acaba por inteligentemente colocar o progresso alheio, estrangeiro, sob o anátema da patologia e da origem do mal, dos males que traz àquela comunidade ancestral e fechada. Desse ponto de vista "Para Lá das Colinas" torna-se mais compreensível e acessível, embora sem perder em nada da sua enorme violência.
         Talvez se possa considerar mérito do cinema ele permitir o uso que dele aqui Cristian Mungiu intransigentemente faz, mostrando de forma clara uma sociedade dilacerada entre tradição e modernidade. Talvez o filme se mantenha mesmo fiel a essa contradição básica do ponto de vista narrativo e da própria realização cinematográfica. Talvez justamente por isso este deva ser considerado um grande filme, até um filme indispensável. Mas é sufocante na sua justeza sem concessões, em que residirá a sua principal qualidade.     
                    O realismo segundo Cristian Mungiu   
          Permito-me remeter-vos a este respeito para a resposta de Jean-Claude Carrière a Umberto Eco, em que, num outro contexto, ele considera que, mais do que "a cocaína do povo", a religião é "uma mistura de ópio e cocaína", e, retrospectivamente, "o marxismo e o nazismo como duas estranhas religiões pagãs." (in "A Obsessão do Fogo", de Umberto Eco e Jean Claude Carrière, edição portuguesa DIFEL, Lisboa, 2009, pág. 176). E digo isto porque considero a religião um elemento central deste filme, que as suas, aliás notáveis, personagens femininas e actrizes não devem impedir de como tal identificar e reconhecer.      

Duro de roer

     Grego de nascimento, mas naturalizado francês, Constantin Costa-Gavras, que nunca teve nada que ver com a "nouvelle vague" francesa e o seu bando, realizou a sua primeira longa-metragem, "Compartiment tueurs", um bom policial, em 1965. Como esse filme anunciava e os seguintes confirmaram, ele estava mais do lado do cinema americano, nomeadamente nos seus filmes mais políticos - e quase todos o foram, pelo menos no início: "Z - A Orgia do Poder"/"Z" (1969), com argumento de Jorge Semprún, "A Confissão"/"L'aveu" (1970), com adaptação e diálogos do mesmo Semprún, "Estado de Sítio"/"État de siège" (1972), com argumento de Costa-Gavras e Franco Solinas, "Secção Especial"/"Section spéciale" (1975), com argumento de Costa-Gavras e Semprún, "Missing´- Desaparecido"/"Missing" (1982), com Costa-Gavras como co-argumentista, "O Enigma da Caixa de Música"/"Music Box" (1989), com argumento de Joe Eszterhas, para só referir os principais. Mas se há um cinema político na Europa da segunda metade do Século XX é o dos seus filmes.
                     Photo du film Le Capital (Gad Elmaleh)
       Por isso não surpreende que ele regresse agora com "O Capital"/"Le capital" (2012), um filme em que, ao nível do seu melhor, aborda frontalmente as origens da crise financeira em que o mundo mergulhou em 2008. Baseado em romance de Stéphane Osmont e com Costa-Gavras como co-argumentista, o filme segue o percurso de Marc Tourneuil/Gad Elmaleh desde a sua subida à direcção de um grande banco de investimento europeu, o Phoenix Bank, para substituir o anterior presidente, Jack Marmande/Daniel Mesguich, que adoece, até à resolução do grave problema em que a sua contraparte americana, dirigida por Dittmar Rigule/Gabriel Byrne, o fizera mergulhar.
     Poderia pensar-se que, com este tema, era possível construir um amável melodrama, bem intencionado e inóquo, mas essa não é a escolha do cineasta. Agarrando o tema pelo seu lado mais difícil, o dos responsáveis pela crise financeira, Costa-Gavras faz-nos acompanhar desde o início a voz-off narrativa de Marc Tourneuil e este mesmo, dando-nos desse modo o seu ponto de vista, comprometido e implacável, como o meio em que se move, interna e externamente, lhe exige. Ora isso faz com que este não seja o filme inofensivo que poderia ser, antes o filme contundente que efectivamente é.
                       
        Cineasta de grandes causas e boas causas políticas, Costa-Gavras não vacila em momento algum no seu retrato directo, implacável e lúcido do meio que dirige o sistema nos tempos cruciais que precederam o desencadear da crise financeira. Sem piedosas intenções, que passariam por colocar frente a Marc um antagonista credível, deixa essa função, além de Dittmar, a personagens secundárias de aparecimento ocasional: o tio de Marc, Bruno/Jean-Marie Frin, Maud Baron/Céline Sallette, no final à própria mulher de Marc, Diane Tourneuil/Natacha Régnier. Por elas e pelo conflito interior do próprio protagonista passa, contudo, o suficiente para que a capacidade de julgamento seja devolvida, intacta, ao espectador.
       Há, assim, alguma coisa de langiano e premingeriano que aqui surge na raiz da inspiração cinematográfica de Costa-Gavras, que com este filme se torna um nome absolutamente indispensável do cinema político deste início do século XXI, agora e por este motivo confirmado como nome maior do cinema político tout-court pela pertinência, a argúcia e a penetrância da sua observação, que em momento algum se afasta para o lado filosófico, antes se mantém permanentemente ao nível das personagens, das situações e das questões envolvidas. Além disso, e não despiciendo, há um rigor, mesmo um brio na construção cinematográfica que não é costume associar a este tipo de filmes, embora caracterize o cineasta desde o seu início.
                     Céline Sallette comédienne actrice actress : Rôle de Maud Baron - LE CAPITAL - Costa-Gavras
           Que não haja, pois, confusões: "O Capital" é um grande filme de um cineasta honesto, generoso e muito bom, que é preciso ver. Aí ele procura o lugar-comum, acena mesmo ao melodrama, colocando-os, contudo, ao serviço das personagens e da narrativa exemplar do seu filme. Que Marc Tourneuil acabe por se tornar um possível "herói" dos nossos tempos será sempre um sibilino sinal de alarme, a que até a actualidade noticiosa confere contornos perfeitamente reconhecíveis. Se o filme for ignorado ou minimizado será, obviamente, sinal de que incomoda.