O chileno Raoul Ruiz (1941-2011) foi um cineasta extraordinário, um dos maiores da segunda metade do século XX e do início do XXI. Depois de ter começado a fazer filmes em 1963, viu-se obrigado por razões políticas conhecidas do seu país a vir para a Europa, onde trabalhou até à sua morte. Devia-lhe escrever isto, que gostaria de ter escrito em vida dele.
Ruiz foi um grande, um enorme cineasta do tempo, talvez aquele que melhor acolheu a herança de Jorge Luis Borges no cinema, uma questão que ele estende até à possível existência de diferentes mundos incompossíveis. Não creio que alguém tenha, no cinema, levado tão longe como ele esta temática, de uma forma permanentemente expressa em termos de grande qualidade e exigência fílmica, sem prejuízo de fazer muitos filmes, por vezes mais do que um por ano (1).
Diria mesmo que ele foi o cineasta típico do cinema clássico, da "época de ouro" dos grandes estúdios, transposto para uma época de cinema moderno, em que trabalhou e de que foi um protagonista destacado.
Se a sua obra feita no Chile, até 1973, tem um dos seus pontos mais altos em "La colonia penal" (1970), baseado em Franz Kafka, vai ser "L'Hypothèse du tableau volé" (1978), com a participação de Pierre Klossowski, feito já em França, que, com a precedente curta-metragem "Colloque de chiens" (1977) e "La Vocation suspendue" (1977), baseado em novela do mesmo Pierre Klossowski, vai lançá-lo como um novo, grande cineasta. Ora a via que aí, pelo menos, ele abre vai ser prosseguida nos filmes seguintes, nomeadamente naqueles que, entre o terror e o mito, o sonho e a fábula, ele vai dirigir de seguida em Portugal: "O Território"/"Le Territoire" (1981), "Les Trois Couronnes du matelot" (1983), "A Cidade dos Piratas"/"La Ville des pirates" (1983), "Manuel na Ilha das Maravilhas"/"Les Destins de Manoël" (1985), também mini-série televisiva, baseado em ideia de João Botelho e Leonor Pinhão, "A Ilha do Tesouro"/"L'Île au Trésor"/"Treasure Island" (1986), baseado em Robert Louis Stevenson. Nomeadamente nesses filmes, Raoul Ruiz foi um grande cineasta da fantasia, do imaginário, quando poucos no cinema, em volta, dessa maneira os investiam.
A partir de pretextos narrativos minimais, ele soube convocar toda a memória da literatura, toda a memória do cinema. "L'Éveillé du pont d'Alma" (1985) vai precisamente nesse sentido, em que o fantástico se transmuta em fantasmático, em fantomático. Estou longe de conhecer toda a sua filmografia, pelo que não poderei evitar omissões lamentáveis, mas sei que, numa obra tão extensa como a sua há, inevitavelmente, filmes maiores e filmes menores. Mas, sabendo isso, sei também como as obras ditas menores podem iluminar toda uma obra. Depois de na primeira metade dos anos 90 ter voltado a filmar no Chile e em Portugal e ter filmado também em Inglaterra e em Itália, "Três Vidas E Uma Só Morte"/"Trois Vies et une seule mort" (1995) é um filme admirável sobre as diversas personagens, as diferentes vidas que habitam um mesmo homem, sempre interpretadas pelo mesmo Marcello Mastroianni. "Genealogias de um Crime"/"Génealogies d'un crime" (1997) vai prosseguir num caminho semelhante com uma inteligência superior, desta feita com Catherine Deneuve num papel duplo, tal como no anterior com Pascal Bonitzer como co-argumentista. Caminhos indecidíveis que se abrem de novo.
Antes de prosseguir, devo dizer aqui que a poética de Paoul Ruiz foi não apenas uma poética do tempo, foi também uma poética das personagens e da sua perplexidade, da perplexidade que elas sentem e da que provocam, uma perplexidade que advém do mistério que ele constrói, e torna transfigurador, em termos fílmicos. Além disso, essas mesmas e outras personagens fazem nos seus filmes afirmações assertivas que são, em si mesmas, um mistério dentro do mistério que cada filme é. Talvez tenha sido mesmo esse quadro que esteve na origem de que o seu Proust-filme, "O Tempo Reencontrado"/"Le Temps retrouvé" (1999), tenha sido um filme tão surpreendente, fora das leituras textuais a que o cinema se sente por via de regra obrigado. Esse terá sido um filme fundamental do cineasta, tão importante quanto incompreendido - mesmo por mim (2). O filme em que ele melhor soube trabalhar de novo esse lado surpreendente dos seus filmes para de novo deslumbrar veio a ser "Klimt" (2006). Em 2000 voltara a filmar em Portugal "Combate de Amor em Sonho"/"Combat d'amour en songe", um filme prodigioso que se conta entre os seus melhores, com os seus encaixes de histórias umas com as outras, seguido no mesmo ano por "Comédie de l'innocence" e "As Almas Fortes"/"Les Âmes fortes", inspirado em romance de Jean Giono, e em 2003 dirigira "Aquele Dia"/"Ce jour-là" e "Une place parmi les vivants".
É também por isso, pelo seu lado surpreendente e deslumbrante, que "Mistérios de Lisboa", duplo de filme (2010) e série televisiva (2011) baseado em Camilo Castelo Branco e rodado em Portugal, se vai tornar no culminar de uma obra extraordinária, justamente pela sua absorvente teia temporal, muito bem usada e dominada pelo cineasta em termos formais e em termos narrativos, que lhe devolve o espírito folhetinesco. Tenho mesmo a ideia de que nenhum cineasta português, nem mesmo Manoel de Oliveira, teria sido capaz de agarrar em tal fonte temática e narrativa para um filme com a audácia, o brio e o apuro formal que ele aí atinge e demonstra.
"Linhas de Wellington" (2012), em cuja preparação terá trabalhado e que veio a ser rodado pela sua viúva, a também chilena Valeria Sarmiento, é, pois, isso mesmo: um presumível filme póstumo de Raoul Ruiz, dirigido por ela - dele não é certamente, que ele não filmava assim. O labirinto do tempo e das personagens, em que o cineasta se excedeu, terminou mesmo, e terminou em grande, com "Mistérios de Lisboa". No seu "presumível filme póstumo", como lhe chamei (3), assinale-se e ressalve-se, contudo, a homenagem que constitui a presença dos seus actores preferidos: Melvil Poupaud, Michel Picolli, Catherine Deneuve, Isabelle Huppert, Marisa Paredes, Chiara Mastroianni, John Malkovich, além dos portugueses Adriano Luz, Maria João Bastos, Carloto Cotta, que vêm dos "Mistérios", e Diogo Dória, que vem dos anos 80. De assinalar ainda, e com um sublinhado especial, a colaboração do compositor, também chileno, Jorge Arriagada, que acompanhou o cineasta desde os anos 70, do produtor Paulo Branco, que o acompanhou desde os 80, e da própria Valeria Sarmiento, assídua na montagem dos seus filmes desde os anos 70. Por sua vez, o argumentista de "Linhas", o português Carlos Saboga, é o mesmo de "Mistérios".
Homem de bom e grande coração e de enorme talento, Raoul Ruiz deixou atrás de si, nos seus filmes, uma marca ruiziana com a impressão do seu génio pessoal, que pode comparar-se com o bergmaniano, o felliniano ou o cassavetiano, e que no caso dele tem tudo a ver com o imaginário, com o sonho e com a fantasia até ao fantomático e com o tempo até ao paradoxo temporal, mas também com o arrojo formal - enquadramentos, movimentos de câmara, transições, que por si mesmos podiam bastar para justificar um filme de qualquer dimensão, e que nos seus melhores requintavam por forma a permanecerem como sua marca inconfundível. Sempre argumentista ou co-argumentista dos seus próprios filmes, ele foi um grande cineasta do tempo, na linha de Orson Welles e de Alain Resnais que Gilles Deleuze identifica (4) e ao mesmo nível deles, porém desinquietado e desalinhado por uma muito importante veia surrealista, desarrumadora e ordenadora, parcialmente responsável pela sua originalidade, muito devedora também da grande literatura latino-americana da século XX, da própria história e do próprio cinema. Algures entre Leibniz e Borges, na resposta de Borges a Leibniz (5), Raoul Ruiz foi um mestre, um grande mestre. E sempre senhor de uma enorme sabedoria do cinema, das suas formas, da sua linguagem e do seu dispositivo próprio. Génio da poética cinematográfica de Raoul Ruiz (6).
Notas
(1) No dossier que lhe dedicou seu nº 611, de Janeiro de 2012, a revista francesa Positif adianta um total de cerca de 150 filmes de Ruiz, dos quais conheço menos do que um quinto.
(2) O melhor estudo que conheço sobre este filme foi publicado no nº 11, Cosmologie, da revista francesa Cinergon, de 2001, e é da autoria de Maxime Scheinfeigel: "Le monde de Proust selon Ruiz". Aí se demonstra que este é um filme muito mais complexo do que aquilo do que aparenta à primeira vista. O último número, duplo, 19/20, Spéculaire, desta mesma revista, de 2010, inclui um outro estudo muito interessante: "Narcisse contre le conflict central? (Raoul Ruiz)", de Daphné Le Sergent.
(3) Verdadeiros filmes póstumos de Raoul Ruiz, porque realizados por ele mas estreados após a sua morte, são a curta "Epistolar" e "La noche de enfrente", concluído por Valeria Sarmiento, ambos de 2012, de facto os seus últimos filmes.
(4) Cf. Gilles Deleuze, "L'Image-temps", Les Éditions de Minuit, Paris, 1985, em especial Capítulo 5, pág. 129.
(5) Idem, ibidem, pág. 171: "... a linha direita como força do tempo, como labirinto do tempo, e também a linha que bifurca e não cessa de bifurcar, passando por presentes incompossíveis, regressando sobre passados não-necessariamente verdadeiros." (A tradução é minha.)
(6) Raoul Ruiz escreveu sobre a poética do cinema: "Poéthique du cinéma", Dis voir, Paris, 1995; "Poéthique du cinéma 2", Dis voir, Paris, 2006. Existe também uma recolha de entrevistas de Raoul Ruiz: "Entretiens", com apresentação de Jacinto Lageira, Éditions Hoëbeke, Paris, 1999. O nº 611 da Positif, citado na nota 1, supra, reúne um conjunto de trabalhos muito interessantes, que inclui inéditos e uma entrevista também inédita do cineasta e conclui com uma filmografia.