Há muitos anos, Godard dizia que o cinema é "a verdade a 24 imagens por segundo", ao que Fassbinder respondia que o cinema é... "a mentira a 24 imagens por segundo". Algures, Truffaut escreveu que o cinema "é a arte de fazer fazer coisas belas a belas mulheres". Por mim não sei ("não me peçam definições"), mas estas são ideias sobre o cinema que me acompanham ainda hoje, quando o cinema vive uma revolução digital em fase muito avançada, porque me ajudam a pensá-lo. Permito-me sempre questionar "o que é a verdade?", "o que é a mentira?", e se elas interessam ainda hoje - questão que me tem sido colocada - e mais, se elas interessam no cinema em especial. Quanto à beleza, embora tente manter-me fiel à perspectiva antiquíssima que identifica a verdade, a beleza e a bondade, não me surpreende nada que ela seja exibida como bem único e supremo, dissociado de qualquer outro atributo - a quem interessam ainda a verdade e a bondade? Revejo-me, porém, sempre renovadamente na ideia de Truffaut das "mulheres belas a fazerem coisas belas", e aí o que me ocorre perguntar, jogando com os conceitos de Godard e de Fassbinder, é se a beleza das "coisas belas feitas por belas mulheres" é verdade ou mentira, questão que a ele penso não o ter preocupado. A mulher, a sua beleza e a beleza do que ela faz é uma questão que ainda hoje me deixa interdito, que tem a sua verdade própria, embora pense que como definição do cinema é curto, por muito justo que fosse para François. Por sua vez, e muito justamente, Serge Daney considerava que no cinema estava envolvida, pelo menos no travelling, uma questão de moral.
A ideia que tenho, e tenho tentado fazer passar, sobre o cinema é de que ao longo do século XX os estúdios de cinema foram o equivalente dos grandes mecenas do Renascimento, o que penso ter sido mesmo a hipótese sobre a qual trabalhou Gilles Deleuze. Eu sei que o contexto foi outro, que as artes são diferentes, mas esta foi a ideia fundamentada que encontrei para tentar compreender o meu duradouro interesse pelo cinema, pelo que mais amo no cinema. Sei também, como aqueles que citei sabiam, que há coisas menoríssimas no cinema, que nem sequer valem a pena, da mesma maneira que sei que passaram por menores no cinema coisas efectivamente magníficas - veja-se a série B norte-americana -, tal como sei que hoje em dia poucos conhecem a fundo e a sério a história do cinema - e aí, como Daney, tento ver-me a mim próprio como um "passeur".
Tem sido usado contra o cinema o argumento da "sociedade do espectáculo", de que ele participaria, entendido assim, ele também, como um mero meio escapista, um entretenimento inconsequente. Embora já o tenha usado, este argumento no fundo não me satisfaz, pois sei bem como todos nós precisamos de consolação, de alguma consolação, que uns encontram na filosofia, outros na religião, quase todos no espectáculo da própria sociedade, de que participam. Não tenho dúvidas em o conceder, apesar de compreender os inconsoláveis e me contar, aliás em boa companhia, entre os que não procuram a consolação Por isso não me fecho, ou tento não me fechar, no cinema mais indiscutivelmente artístico e permaneço, ou tento permanecer aberto às lições do século XX também nessa matéria, sabendo embora que os tempos não vão de feição para conceitos antigos, por muito interesse que possa ter, e efectivamente tem a ideia de inactualidade, anacronismo no contemporâneo (1), e que a chamada revolução digital, por alguns temida e anatemizada, tem dado frutos muito interessantes no cinema em prejuízo de virtudes antigas deste.
O que tem então o cinema que mais amo, que não só não me impede de pensar, como dizia Artaud no seu tempo, mas me ajuda a pensar? Tem esta coisa simples, em que me fez pensar o último livro de Almeida Faria, "O Murmúrio do Mundo - A Índia Revisitada" - um livro mágico de um escritor prodigioso: faz-me ouvir o murmúrio do mundo. Talvez isto aconteça comigo por ser muito dado ao meu próprio rumor interior, o que me torna especialmente receptivo aos estímulos que me chegam filtrados pela arte dos grandes artistas que amo em qualquer sector artístico. No fundo, somos nós que reconhecemos (ou não) aquilo que é digno de apreço, porque nos fala, no mundo e na arte, sendo certo, contudo, que cada um de nós conhece só uma parte e alguma coisa inevitavelmente nos escapa sempre, embora com o tempo vamos conhecendo cada vez mais e melhor - o importante é não perdermos a memória nem desprezarmos o presente por princípio - e vamos desenvolvendo as indispensáveis relações. Mas também é certo que cada um de nós procura em cada obra de arte, incluindo no cinema, ou alguma coisa que nos conforte - o que, repito, acho legítimo - ou alguma coisa que nos inquiete, nos desafie. No que me diz respeito, seduz-me o que me permite aceder ao múltiplo e variegado murmúrio do mundo, sem conflituar com o meu rumor interior, independentemente da consolação que às vezes também me proporciona e a que não sou indiferente.
Mas, dir-me-ão, hoje em dia ninguém se preocupa com essas questões. O que se procura é mesmo o convívio, o divertimento, a evasão, a interactividade. Sobre a tal beleza de que falei no início, discute-se agora a estética do feio (2), que o explica, enquadra e reabilita. Mas não quero ir tão longe, ou então quero mesmo ir mais longe para dizer que a arte e a beleza não são um exclusivo das boas consciências, um refúgio e um abrigo para elas, mas algo de eminentemente partilhável, apesar de, na arte como na vida, no cinema como na literatura, na música como na pintura os gostos se discutirem, contrariamente ao que diz um antigo adágio português.
Assim, cada um de nós tem um núcleo essencial de preferências, artísticas e do mundo da vida, que vai desenvolvendo e aperfeiçoando ao longo da vida e que é capaz de expôr e defender, em que se revê a si próprio no que considera mais importante. Aqui deixo, por isso, a lista dos dez melhores filmes da história do cinema que fiz por ocasião do centenário do dito, em 1995:
1. Aurora
("Sunrise"), de Friedrich W. Murnau (1927);
2.
A
Regra do Jogo ("La Règle
du Jeu"), de Jean Renoir (1939);
3.
A Mulher Que Viveu Duas Vezes ("Vertigo"), de Alfred Hitchcock (1958);
4. O Mundo a Seus Pés
("Citizen Kane"), de Orson Welles (1941);
5. Gertrud
("Gertrud"), de Carl Th. Dreyer (1964);
6. O
Atalante ("L'Atalante"), de Jean Vigo (1934);
7. Os Contos da Lua Vaga
("Ugetsu Monogatari"), de Kenji Mizoguchi (1953);
8.
A
Terra ("Zemlia"), de Alexandr Dovjenko (1930);
9. Aves de Rapina
("Greed"), de Eric von Stroheim (1924);
10. Libertação
("Paisà"), de Roberto Rossellini (1946).
Nunca a
publiquei, rarissimas vezes a partilhei e sei que hoje não faria uma lista de preferências idêntica a esta. Mas porque a fiz com data, aqui a deixo. Devo, contudo, esclarecer que estes eram os dez
melhores de três listas de cem - portanto, de uma lista de trezentos - filmes, e que o
11º nessa lista, hoje talvez o 1º, era
11.
A Desaparecida ("The Searchers"), de John Ford (1956).
Mais esclareço que me lembro muito bem de quando vi esses (e muitos outros)
filmes pela primeira vez e que o de Ford foi mesmo o primeiro filme que me
lembro de ter visto - portanto primeiro até neste sentido. E também esclareço que ainda hoje me vejo como uma personagem de Jean-Pierre Melville - o Gu Minda de "O Segundo Fôlego"/"Le Deuxième Souffle" (1966), por exemplo -, cineasta que, recordo, morreu cedo (1917-1973) e se confessava influenciado pelas suas primeiras leituras: Edgar Allan Poe, Jack London, Herman Melville. Por sua vez, os anos 60 foram uma década prodigiosa no cinema, durante a qual conviveram com a "nouvelle vague" e os cinemas novos os últimos filmes de grandes clássicos vindos do tempo do mudo e do início do sonoro, dos melhores filmes dos modernos do pós-guerra e os primórdios do que viria a ser a Nova Hollywood.
Ninguém tem que concordar comigo, como eu não tenho que concordar com mais alguém, nem nisto nem em considerar, como considero, "O Murmúrio do Mundo" o melhor romance (a palavra pode ser limitadora) português desde o início do século XXI, pela escrita brilhante, serena e depurada, que trata muito inteligentemente a coincidência no mesmo espaço e tempo de diferentes figuras e figurinhas da História de Portugal a partir do que delas permaneceu, numa construção literária vária e superior que é também um regresso em prosa a Camilo Pessanha ("E a vista sonda, reconstrui, compara,/Tantos naufrágios, perdições, destroços!") e que foi o motivo próximo de ter escrito isto.
Eu sei que há a arquitectura nos filmes da trilogia de
Antonioni, o acelerador de partículas do CERN, uma poética do desejo em
Ingmar Bergman, alguns filmes com interesse feitos em 3D (embora os óculos me incomodem). Sei que há a world wide web, a globalização,
Charlize Theron, "O Cavalo de Turim" e "Ultrage", o último filme de
Takeshi Kitano que tem tido a sua estreia em Portugal sucessivamente
adiada. Mas qualquer que seja a vossa atitude perante estas e outras coisas, devem ler este livro para compreender, a partir de uma escrita literária superior, o que é a vida, o que são o espaço e o tempo declinados em português, e que de grandes acontecimentos transformadores pouco permanece após cinco séculos de história para além de dispersas ruínas, de vagas marcas, da memória e da consciência do ser no tempo, em especial na criação literária e artística, que essa sim, continua a ser essencial.
Mas chamo também, e muito vivamente, a atenção para "O Efeito Pigmalião - Para uma antropologia histórica dos simulacros"/"The Pygmalian Effect. From Ovid to Hitchcock", de Victor Stoichita, uma edição portuguesa KKYM de 2011 de uma edição original da Chicago University Press de 2008, que é uma excelente surpresa no mercado editorial português. De uma grande erudição, este livro vem dar razão a Truffaut sobre o cinema.
Não quero, contudo, deixar de reproduzir aqui a melhor definição do cinema que conheço: "Os filmes são como um campo de batalha: amor, ódio, acção, violência, morte. Numa palavra: emoção." (Samuel Fuller em "Pedro, o Louco"/"Pierrot le fou", de Jean-Luc Godard, 1965)
Notas
(1) Cf. Giorgio Agamben, "Che cos'è il contemporaneo?", Nottetempo, 2008 - edição francesa "Qu'est-ce que le contemporain?", Rivages, Paris, 2008.
(2) Cf. "O feio para além do belo", Adriana Veríssimo Serrão et alii (organização), Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2012