“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 28 de fevereiro de 2016

De cinzas e fumo

     A longa-metragem de estreia do húngaro László Nemes, "O Filho de Saul"/"Saul fia" (2015), trata com grande dignidade e todo o respeito o drama de um Sonderkommando do complexo Auschwitz-Birkenau em 1944, o húngaro Saul Ausländer/Géza Röhrig, que por entre o seu violento e terrível trabalho de transportar as cinzas e os despojos das vítimas do Holocausto do crematório para a fossa e recolher os seus pertences encontra tempo e disposição firme para querer enterrar condignamente uma criança que toma por seu filho. 
                    A scene from the film 'Son of Saul' (Cannes Film Festival)
    Mantendo grande proximidade em relação ao protagonista e àqueles que com ele trabalham, submetidos ao comando e controlo dos senhores nazis do campo e do seu destino, fechando o espaço verdadeiramente concentracionário este filme consegue ser um testemunho humano muito bom, tanto mais quanto se sabe que membros como Saul da mesma força, judeus como os outros e como eles destinados à morte, fizeram o relato escrito da sua vida ali, o que constitui peça importante para a presente reconstituição e a faz valer como mais do que isso.
   Sem em caso algum embelezar ou de qualquer outra maneira contemporizar com o horror absoluto (nunca há o contracampo dos carrascos), nem mostrar a morte a ser dada, antes fragmentos do antes e do depois (corpos nus vivos e corpos nus mortos, à distância), Lázsló Nemes mantém um pulso firme na composição dos planos, quadro e iluminação (fotografia de Mátyás Erdély), e na representação dos actores, todos notáveis com especial destaque para Géza Röhrig, um poeta húngaro a viver nos Estados Unidos, portanto um não-profissional. Tudo aquilo que é mostrado e que os sons provenientes do fora de campo torna ainda mais negro e soturno é terrível, final, sem recuo ou escapatória, como o fim do filme confirma também relativamente àqueles que tentam a fuga, episódio real de 1944.
                   
    As poucas imagens de Auschwitz e dos outros campos de concentração e de extermínio do Holocausto como representações do irrepresentável foram exaustivamente estudadas por Georges-Didi Huberman em "Images malgré tout" (Paris: Les Éditions de Miniuit, 2003), um texto que se tornou célebre no percurso deste notável historiador, filósofo e antropólogo das imagens, nomeadamente da pintura, da escultura, da fotografia e do cinema, que mereceu um importante  desenvolvimento em "O Inimaginável: leituras dos corpos e das suas imagens - Reflexões em torno de quatro imagens distantes", de Jorge Leandro Rosa (in revista NADA, nº 12 - Lisboa: 2008, páginas 110-123).
    Com o passar do tempo e dos filmes, incluindo, desde "Noite e Nevoeiro"/"Nuit et Brouillard", de Alain Resnais (1955), os de Claude Lanzman e de Steven Spielberg, a questão proporcionou um tratamento sério e rigoroso, que desde logo impôs a Lázslé Nemes respeitar todos os protocolos para que nada fosse deixado ao acaso ou à pura especulação. Obra de ficção com largo apoio nos factos reais (argumento de Lázsló Nemes e Clara Royer), "O Filho de Saul" é um filme que é preciso ver todo e de frente, de olhos secos como o documentário possível que consegue ser, com a inclusão do fotógrafo no interior do campo.
                   
      Para o final os planos, desde o início com largo recurso à desfocagem dos fundos, vão-se tornando mais longos, embora com largo recurso aos movimentos de câmara, e por isso menos numerosos, para acabar numa imagem vazia, sobre um espaço vazio, sobre o qual ressoam os disparos provenientes do fora de campo, inequívocos. Além desta, a grande audácia do filme é mostrar um corpo de criança ainda vivo, aliás por pouco mais tempo. 
     Filmado em 35mm com uma objectiva de 40mm, "O Filho de Saul" de Lázsló Nemes representa uma viagem ao coração do horror absoluto, que o seu carácter ficcional torna mais terrível, absurdamente inumano. Mas do mesmo Georges-Didi Huberman sobre ele saiu no final do ano passado "Sortir du noir" (Paris: Les Éditions de Minuit, 2015), que aqui devo vivamente recomendar. (Sobre o cinema húngaro, ver "Nas trevas interiores", de 29 de Junho de 2012, e "O bom ponto de vista", de 11 de Setembro de 2013. Sobre o Holocausto, ver "A cidade de ficção", de 27 de Dezembro de 2015).

sábado, 27 de fevereiro de 2016

A palavra que falta

     "Salve, César!"/"Hail, Caeser!", o mais recente filme dos irmãos Joel e Ethan Coen (2016), é mais uma exuberante manifestação do seu superior talento.
    De regresso à comédia inteligente sobre a estupidez dos americanos, em que deram anteriormente grandes provas em especial em "O Grande Salto"/"The Hudsucker Proxy" (1994), "O Grande Lebowski"/"The Big Lebowski" (1998), "Irmão, Onde Estás?"/"Oh Brother, Where Art Thou?" (2000), "Destruir Depois de Ler"/"Burn After Reading" (2008) (embora ela atravesse quase todos os seus filmes), o filme leva-nos aos anos 50 e à era do macarthismo em Hollywood sob a forma, muito apropriada, de filme negro, cuja estética é muito bem explorada formalmente.
                    
    "Salve, César!" começa e acaba, com epílogo, num confessionário, que Eddie Mannix, o protagonista, homem de confiança dos estúdios interpretado por Josh Brolin, frequenta (duas vezes no intervalo de 27 horas) fundamentalmente por não estar a conseguir deixar de fumar como prometeu à sua mulher, e ele é o centro em volta do qual se desenrolam filmes, actores, actrizes, realizadores, enfim o mundo do cinema.
     E este filme dos Coen é especialmente notável por nos levar ao interior do mundo do cinema, com referências dispersas ao próprio cinema americano que só o espectador mais conhecedor poderá acompanhar (não, não vos digo nada, descubram cada um por si), numa estratégia intertextual que o aproxima do Jean-Luc Godard dos anos 60 do Século XX, em especial de "O Desprezo"/"Le mépris" (1963).
                     hail caesar
     Também autores do argumento, como costuma acontecer nos seus filmes, os dois irmãos seguem os estereótipos da época, da opinião dos líderes religiosos sobre um filme da vida de Cristo aos conspiradores e raptores argumentistas comunistas, com nomes (o cão Engels é fantástico) e submarino e tudo. Pelo meio a filmagem de um filme de sereias com DeeAnna Moran/Scarlett Johansson, actriz grávida à procura de pai, de um melodrama em que um actor de western, Hobie Doyle/Alden Ehrenreich, tem dificuldade em articular correctamente o inglês como lhe pede o realizador, Laurence Laurentz/Ralph Fiennes, e de um musical com marinheiros à maneira de Stanley Donen e Gene Kelly.        
      O ponto do delírio cómico é atingido pela técnica de montagem que é enlaçada pelo pescoço, estrangulada pelo material com que trabalha na sala de montagem, o que (além de lembrar Dziga Vertov) fará o encanto Thelma Schoonmaker. Com actores fabulosos cada um deles no registo certo, de que apreciei George Clooney e Tilda Swinton em especial, ela num duplo papel, "Salve, César!" é um filme inteligente como os Coen nos habituaram sobre uma questão sensível vista do lado da ironia e do humor em que são mestres.   
                     HC - Footage 2
     Com este "Salve, César!" percebe-se melhor a incursão de Joel e Ethan Coen pelo argumento para "A Ponte dos Espiões"/"Bridge of Spies", de Steven Spielberg, 2015 (ver "Dois por um", de 10 de Janeiro de 2016). Em França Claude Chabrol tratou com grande pertinência, no seu tempo, a "bêtise", no tempo deles os Coen tratam também superiormente a "estupidez", e é aqui notável sobretudo, repito, a recuperação do estilo do filme negro em favor de uma declaração final de (a palavra que falta ao actor Baird Whitlock/George Clooney na sua fala final perante a cruz) no cinema, ingénua e cómica na sua própria ingenuidade contra outro negócio, o da aviação (sobre os dois irmãos ver "Encontro fatal", de 20 de Janeiro de 2012, e "Uma boa surpresa", de 26 de Dezembro de 2013).
                    

     Nota
   Sobre os Coen aconselho "Ethan and Joel Coen", de Ian Nathan (Paris: Cahiers du Cinéma/Masters of cinema, em inglês, 2012) e "Oh Brothers! - Sur la piste des frères Coen", de Marc Cerisuelo e Claire Debru (Paris: Capricci, 2013) na bibliografia mais recente.

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Umberto Eco (1932-2016)

    Foi uma das grandes personalidades da vida intelectual europeia e mundial desde a segunda metade do Século XX. Semiólogo, filósofo e historiador prestigiado, professor, jornalista e também escritor, estabeleceu um patamar de dignidade e credibilidade em tudo o que escreveu, disse, comentou.
    O meu primeiro contacto pessoal com a sua obra deu-se com o romance histórico "O Nome da Rosa", nem sequer por causa do filme de Jean-Jacques Annaud (1986). E vai ser como romancista, historiador, filósofo e semiólogo que ele vai permanecer mesmo depois da sua morte.  
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    Não teve pejo em, como Roland Barthes, estudar a imagem banal, a imagem publicitária mais vulgar a partir da semiótica, em que, com Gilles Deleuze, recuperou o entretanto esquecido fundador da semiótica moderna, o americano Charles Sanders Pierce (1839-1914). Mas seu pensamento filosófico vai muito além disso, até porque é de uma grande actualidade e erudição. Cultivou o labirinto e a ironia de forma superior. E também se interessou pelo cinema, nomeadamente em polémica com Pier Paolo Pasolini em "La struttura assente" (1968) - "A Estrutura Ausente" (São Paulo: Editora Perspectiva, 1997 para a 7ª edição).
    Conseguiu o que ainda hoje é raro: reunir o grande prestígio intelectual e a popularidade que a sua obra de ficção e a sua actividade jornalística lhe deram. "Idade Média", que organizou e está editado em português pela Dom Quixote (2011, 2013, 2014, 2015), culminou um percurso de excelência intelectual, iniciado em 1954 com a sua tese de doutoramento sobre "O Problema Estético em Tomás de Aquino" (não editada em Portugal) da maneira mais digna. Aqui lhe presto a minha homenagem, expresso o meu respeito e a minha gratidão.

A contraprova

   No ano de 1962, em que todos situam a morte do western com "O Homem Que Matou Liberty Valance"/"The Man Who Shot Liberty Valance", de John Ford, um outro e quase desconhecido filme confirma o seu óbito: "Fuga Sem Rumo"/"Lonely Are The Brave", de David Miller, com argumento de Dalton Trumbo.
                    
   Lembro-me muito bem de ter visto este filme quando da sua estreia em Portugal e revio-o agora por mero acaso. Diz-se que Kirk Douglas, que o interpreta, o considerava o seu filme favorito (e percebe-se bem porquê da parte de quem interpretou grandes westerns de Raoul Walsh, King Vidor, Andre De Toth, Howard Hawks, John Sturges, Robert Aldrich), e o argumento do então ainda recente blacklisted, sobre o qual passa neste momento um filme em Portugal, não é indiferente para a sua excepcional qualidade.
   Jack Burns é um cowboy, que se dedica ao pastoreio de gado, e que se faz prender depois de um combate com um maneta para se juntar na prisão a um amigo, Paul Bondi/Michael Kane, e levá-lo a fugir com ele. Há antes e depois a mulher do prisioneiro, Jerry Bondi/Gena Rowlands, que tem um filho e pinta, a quem Jack se limita a pedir "a big kiss" antes de fugir sozinho depois da sua fuga solitária da prisão.
                    
    Perseguido por um xerife, Morey Johnson/Walter Mathau, curioso com o que se passa fora das paredes do seu gabinete, um cão com o qual ele dialoga e que nunca se vê, Jack escapa-lhe a ele e ao próprio exército, de que abate um helicóptero. Sempre fiel à sua égua Whisky, que se recusa contra si próprio a abandonar, acaba atropelado com ela por um camião de transportes numa auto-estrada - e o filme tinha-se iniciado com a travessia difícil de ambos de uma outra. O único tiro do final é fora de campo.
    A América que se tinha tornado hostil a estes heróis puros e solitários e que se despedia do western com um grande filme, o de Ford, sobre a verdade e a lenda, tinha-se tornado um espaço hostil na actualidade para quem pretendesse viver segundo os seus códigos. No ano seguinte o Presidente John Kennedy seria assassinado (sobre o western, ver "Poética do western", de 29 de Setembro de 2013).

Das trevas para a luz

   O filme "Quarto"/"Room", de Lenny Abrahamson  (2015), baseado na novela de Emma Donoghue (publicada em Portugal pela Porto Editora), ela própria responsável pelo argumento, impressiona pela concentração espacial de mãe/Brie Larson e filho Jack/Jacob Trambley, que acompanhamos em planos aproximados (grandes e muito grandes planos) durante a primeira parte, que decorre na clausura do quarto a que estão contra sua vontade confinados quando ele faz cinco anos. Essa primeira parte termina com a fuga do filho preparada pela mãe. 
                    
    A partir da libertação de ambos, em vez de se diluir o drama aumenta pela estranheza com que se deparam ambos e que eles próprios estranham. O reencontro com a família é problemático por causa do avô, Robert/William H. Macy, enquanto que a comunicação social - leia-se, a televisão - submete a mãe a uma dura prova. Nesta segunda parte, passada já fora da clausura, no mundo real, muito justamente o contexto espacial é dado em termos mais largos.
    No final, com regresso de mãe e filho ao espaço em que viveram cativos regressam os planos muito próximos. Se "Quarto" contém uma ineludível carga metafórica e simbólica, é ao manter-se próximo de um realismo humano, que leva por exemplo a mãe a dizer que o filho é só dela, que ele se impõe e marca um espaço de interesse e curiosidade humana.                   
                    
    Com relevo para mãe e filho, os actores suportam tudo em especial no grande e muito grande plano, o que impõe o filme pelos melhores motivos. Em reacção, as instituições, nomeadamente hospitalar e médica, cumprem a sua função friamente, alheias ao que arde e queima naquela situação e naquele espaço familiar depois de o pior ter acabado. De mãos dadas, mãe e filho têm de traçar o seu próprio caminho de regresso, para ele de acesso à liberdade. Do dente dela ao cabelo dele tudo se tornou físico entre eles, por isso tanto mais forte.
     Tudo é muito difícil e ao mesmo tempo muito facilmente compreensível. Gostei da fotografia de Danny Cohen, não gostei da utilização da música de Stephen Rennicks. Não perceberei porque quem aprecia os filmes de Carl Th. Dreyer por causa do seu uso do grande-plano não aprecie este filme pelo menos pelo mesmo motivo.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Díptico chileno

   Estrearam em Portugal dois documentários do fundamental cineasta chileno Patricio Gusmán: "Nostalgia da Luz"/"Nostalgia de la luz" (2010) e "O Botão de Nácar"/"El botón de nácar" (2015). Muito curiosamento, tratam o primeiro dos observatórios astronómicos chilenos, o segundo dos povos indígenas e da importância da água na vida humana para, num olhar mais atento, se deterem sobre os vestígios da ditadura de Pinochet. 
                    
     Para cumprir um dever de consciência e de memória, o documentarista responsável por grandes documentários de referência sobre o seu país, nomeadamente "La batalla de Chile", em três partes (1975, 1976, 1979), regressa com cinco anos de intervalo ao grande sismo da sociedade chilena, que se seguiu ao golpe de estado que depôs o presidente eleito Salvador Allende. Para o fazer entrevista quem viveu essa época mas também quem estuda outras épocas da vida do Chile, nomeadamente o Século XIX e as populações indígenas, e os próprios indígenas actuais no segundo filme, assim aprofundando o nosso conhecimento de uma ferida tremenda que permanece ainda como chaga.
     Ao ligar as eras do Universo mas também as idades da Terra com o seu objecto de estudo principal por forma a iluminá-lo, Patricio Gusmán desafia-nos com uma realidade hedionda que deixou atrás de si um sem número de vítimas feitas por carrascos ainda hoje impunes. Todos somos fracções de segundo na vida do universo, compostos maioritariamente por água, mas quando a vida humana é espesinhada e desprezada como neste caso aconteceu cada vida, cada ser torna-se ele próprio o próprio universo.  
                     O Botão de Nácar
    Muito embora os depoimentos individuais coincidentes ocupem na economia dos dois filmes um lugar muito importante, com os rostos e as palavras da dor, importam em especial as imagens e os esclarecimentos sobre os campos de concentração da ditadura, onde foram torturados e mortos grande número de chilenos, e sobre os métodos utlilizados pelos verdugos para se desfazerem das suas vítimas, que permitem divulgar a todo o mundo uma realidade terrífica que nem todos conheceriam em pormenor.
    Cinema político nos seus mais puros termos, o cinema de Patricio Gusmán aí está de novo a esclarecer-nos e desafiar-nos, em nome da memória e dos mortos. Para que ninguém diga que não sabia e para, contribuindo para fazer um luto, ficar para memória futura. (Sobre o cinema chileno, ver "Uma trilogia de respeito", de 30 de Abril de 2013).

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Robert Frank, NYU

     Soube durante a semana passada pelo primeiro noticiário diário do Arte que foi inaugurada uma exposição muito completa do grande fotógrafo americano de origem suíça Robert Frank na New York University, uma exposição que aqui vivamente recomendo a todos.
      Membro da beat generation, este fotógrafo, que honrou a presente e muito especial exposição com a sua presença, ficou conhecido a partir do seu livro de fotografias "The Americans", com introdução de Jack Kerouac (New York: Grove Press, 1959), que representou e representa ainda hoje um outro olhar sobre a América, comum e quotidiana e por isso merecedora de especial atenção. 
                     Trolley, New Orleans, 1955, Robert Frank "The Americans"
     Personalidade decisiva da fotografia nos Estados Unidos e em todo o mundo, com um percurso longo, muito rico e variado de uma enorme atenção à realidade e à vida comum, banal mesmo se deprimida, Robert Frank é uma personalidade exemplar cujo trabalho é mais urgente do que nunca conhecer.
      Com organização de Luciana Fina, a Cinemateca Portuguesa dedicou-lhe em Junho de 1991 uma retrospectiva muito completa, graças à qual ficámos a conhecer o seu importante trabalho para cinema, em 35 e 16mm e em vídeo, que confirmou plenamente o talento visual e humano de um grande artista visual. 
                                 issue18_Breukel_Koos_09                    
       Aconselho muito vivamente esta exposição exaustiva e muito importante que a NYU dedica neste momento a um nome absolutamente indispensável da fotografia contemporânea (sobre a New York University, ver "Sobre poesia", de 18 de Outubro de 2015).

Continuar a respirar

   Baseado na novela homónima, publicada em português, de Michael Punke, o mais recente e muito bem acolhido filme de Alejandro González Iñárritu, "The Revenant: O Renascido"/"The Revenant" (2015), não deixa de ser surpreendente numa obra toda ela recheada de sucessos.
   Surpeende em primeiro lugar pela época em que se situa, no início do Século XIX (1820), ainda uma época de pioneiros, poucas décadas depois da independência americana,  que torna compreensíveis as personagens (exploradores americanos e franceses, índios de diferentes tribus) e as situações conflituais. A partir daqui, surpreende em segundo lugar que o cineasta, também co-autor do argumento com Mark L. Smith, acolha com dignidade a narrativa canónica americana sobre os pioneiros, estabelecida por James Fenimore Cooper (1789-1851) no próprio Século XIX, o que se compreende melhor por se basear em factos reais.
                    The Revenant
    História de sobrevivência num meio agreste e adverso, em que a maior adversidade são os outros humanos e que termina com a vingança de um pai, desde o início que em "The Revenant: O Renascido" o protagonista, Hugh Glass/Leonardo DiCaprio, diz que é preciso continuar a respirar, o que em acto passa no final para o genérico de fim. 
   Não vou louvar os actores, em especial DiCaprio e Tom Hardy como John Fitzgerald, evidentemente excelentes, em especial o primeiro que se submete às provas muito duras que a sua personagem atravessa em especial a partir do momento em que é abandonado por morto. Vou sim dizer que não gostei dos excessivos de movimentos de câmara, que à maioria surgirão como sinais de mestria de Iñarritu, utilizados em momentos dramáticos fundamentais, salvo no caso do aparecimento da manada de bisontes. Chamem-lhe "mestria", "trabalho superior", o que quiserem: apesar de o duelo final estar bem resolvido nada daquilo tem a ver com o género western ou com o subgénero filme de pioneiros.
                    The Revenant
      Em contrapartida, o uso da natureza e dos seus elementos está muito bem tratado, com clara predonância da água, e os flashes do passado de Glass estão justa e parcimoniosamente utilizados. Claro que a narrativa, as personagens e situações se sobrepõem ao mais, e que globalmente o filme cumpre de maneira vistosa (a luta com o urso é sobretudo isso) o seu projecto narrativo e fílmico, o que o torna um favorito para os Oscars deste ano, em que pelo menos o destinado ao actor principal será sobejamente merecido. 
     A seu favor poderá jogar mesmo o paralelo com o "Derzu Uzala" de Akira Kurosawa (1975), passado ele também num meio difícil de sobrevivência, a Sibéria, mas bem melhor. Contra ele jogará o filme de Richard Serafian (1930-2013) "Um Homem na Solidão"/"Man in the Wilderness" (1971), com Richard Harris e John Huston, muito mais económico e melhor sobre o mesmo episódio verídico, como estará contra, além do desatino dos movimentos de câmara, uma música inutilmente solene e excessiva. Mas os tempos vão de feição para trabalhos do tipo deste no cinema (sobre Alejandro González Iñárritu, ver "Excesso de subtileza", de 4 de Fevereiro de 2015).

Sombras fugidias

   Baseado na novela de Patricia Highsmith "The Price of Salt", de 1952 e com várias edições em português, "Carol", de Todd Haynes (2015), vem demonstrar que os livros da famosa escritora americana (1921-1995) são especialmente apetecíveis para grandes cineastas - "O Desconhecido do Norte-Expresso/""Strangers on a Train", de Alfred Hitchcock (1951), "O Amigo Americano"/"Der Amerikanische Freund", de Wim Wenders (1977), "O Grito do Mocho"/Le cri du hibou", de Claude Chabrol (1987), "O Talentoso Mr. Ripley"/"The Talented Mr. Ripley", de Anthony Minghella (1999). 
                     Review: Cate Blanchett masters all the signals for Todd Haynes' 'Carol'
   De facto, o filme de Todd Haynes tem uma segurança e elegância de estilo que se coaduna muito bem com o seu ponto de partida literário, evoluindo no início dos anos 50 do Século XX sem qualquer embaraço ou escolho na descrição e narração da vida da protagonista, Carol Aird/Cate Blanchett, enquanto decorre o seu processo de divórcio do marido, Harge Aird/Kyle Chandler, e de entrega da guarda da filha de ambos, Rindy Aird/Sadie e Kk Heim. A relação de Carol com Therese Belivet/Rooney Mara, na sequência da anterior com Abby Gerhard/Sarah Paulson, vai no sentido da natureza dela mas é explorada pelo marido em vias de deixar de o ser.
   Os actores são, como se impumha, muito bons, com destaque para a beleza e elegância de Cate Blanchett e a espontaneidade sensível de Rooney Mara, a adaptação de Phyllis Nagy muito boa, a fotografia de Edward Lachman (1) excelente, ao que responde uma música muito variada orquestrada e dirigida por Carter Burwell e a montagem simples e sempre justa de Affonso Gonçalves.               
                     Carol
   E haverá aqui que notar a subtileza da construção narrativa, em que só o final retoma o início onde fora deixado, depois de se ter aberto e fechado o cristal do tempo, que é pretexto para uma excelente reconstituição de época. Mas o feito mais notável é a confirmação de Todd Haynes como grande cineasta actual do melodrama no cinema americano - ele realizou também a mini-série "Mildred Pierce", em cinco episódios, para a televisão (2011).

   Nota
   (1) Consultar a entrevista de Edward Lachman aos Cahiers du Cinéma, nº 719, de Fevereiro de 2016 (páginas 20-22), integrada no excelente Dossier Spécial Caméras que permite desmentir mais uma vez o lugar-comum de que no cinema "a técnica não é importante".

domingo, 7 de fevereiro de 2016

Um sonho mudo

    Datado de 1938, "Demasiado Johnson"/"Too Much Johnson" de Orson Welles, resgatado do esquecimento em 2013 e que só agora vi em edição dvd, terá sido feito para, em fórmula de três prólogos, passar com a peça de teatro com o mesmo título de William Gillette, de que desconheço tudo. Atenho-me por isso ao filme.
                     Joseph Cotten in "Too Much Johnson"
      Com a forma notável para a época de filme mudo, "Demasiado Johnson" conta com argumento do próprio Welles, embora a sua narrativa seja dificilmente perceptível fora dos desastres dignos do burlesco mudo em que se vê envolvido um muito jovem Joseph Cotten como Augustus Billings, perseguido por amante de uma mulher casada. Mas o que é mais curioso é que tudo neste filme remete para o tempo do mudo, anos 10/20 do Século XX, do vestuário aos adereços. Como num Chaplin ou num Buñuel mudo, com rasto visível dos keystone cops, um dos quais interpretado pelo próprio Orson.
        Na primeira parte, passada na cidade, há referências retidas para o futuro, da profundidade de campo em exteriores ao plongé/contra-plongé funcional, passando pelos montes de caixas, caixotes e gaiolas, mas o que aí surpreende mais é uma arquitectónica excepcional e excepcionalmente aproveitada. Na segunda parte tudo se passa noutros locais, entre o mar e o porto, o deserto e a montanha, notando-se pelo meio um singular jogo de chapéus e no final o regresso de Cotten com um chapéu de chuva.
                   
       Feitas as contas, este filme felizmente redescoberto mostra bem, pelo seu ano de produção, ser anterior a "Cavalgada Heróica"/"Stagecoach", de John Ford (1939), que o génio aqui em incubação dizia ter visto inúmeras vezes antes de fazer "O Mundo a Seus Pés"/"Citizen Kane" (1941), que também interpretou e foi a sua estreia oficial no cinema. É mesmo isso que me leva a escrever isto, embora tudo o que seja de Orson Welles me interesse (ver Génio de Orson Welles", de 10 de Julho de 2015, e "Poética de Orson Welles", de 30 de Outubro de 2015).
      Aproveito para chamar a vossa atenção para o que, em contexto, escreve com toda a razão Marie-José Mondzain sobre "O Mundo a Seus Pés" e Orson Welles no final do seu "Homo spectator - ver, fazer ver" (edição portuguesa Lisboa: Orfeu Negro, 2015, páginas 335-366), que aqui de novo aconselho. O filme dizem-me estar disponível na internet, tal como a curta "The Hearts of Age", também muda, que sobre argumento próprio ele co-realizou com Wlliam Vance em 1934.
                   
      Que os filmes que jovem prodígio fez antes do célebre "Citizen Kane" fossem mudos deve ser igualmente atendido e sublinhado, pois o faz recuar no tempo e faz o cinema mudo avançar mais 10 anos, como Jean-Luc Godard disse já teria sido preferível acontecer para o próprio cinema.

A carta de Abe ou o teatro do oeste

    O oitavo, e anunciado como antepenúltimo filme de Quentin Tarantino, "Os Oito Odiosos"/"Hard Eight" (2015), traz-nos de regresso um grande cineasta, de novo, como no anterior "Django Libertado"/"Django Unchained" (2012), às voltas com o oeste americano do século XIX, na sequência da Guerra Civil (1861-1865).
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    Sobre o modelo de "Cavalgada Heróica"/"Stagecoach", de John Ford (1939), diligência + estalagem, mas sem chegada ao destino, Tarantino, também autor do argumento, introduz pela insistência no mesmo cenário uma teatralidade que talvez não estivesse presente na sua obra desde "Cães Danados"/"Reservoir Dogs" (1989), o seu filme para que este mais proximamente remete. Claro que em Portugal não podemos ver o filme nos 70mm para que foi feito, mas por mim fico com uma boa ideia pela exploração do espaço na horizontal.
    Com os movimentos de câmara indispensáveis e uma variação de planos reduzida ao essencial, primeiro o espaço da diligência, com enquadramentos frontais, depois o da estalagem, e este especialmente, são tratados como um palco em que os actores evoluem em profundidade e lateralmente, presos eles também pela abundância e importância do diálogo. Simultaneamente, a descontinuidade da narrativa favorece o interesse do espectador, que renasce quando poderia ameaçar esmorecer.
                     hateful-eight-samuel-l-jackson-walton-goggins
    Tipificadas embora, as personagens, os "oito odiosos", não têm apesar de tudo uma construção fixa como estereótipos, que era o lado mais fraco do filme anterior do cineasta, e evoluem ao sabor de uma intriga que só ao fim de quase duas horas começa a desvendar os seus meandros a partir de um dispositivo eminentemente teatral: um alçapão. E deve mesmo ter-se presente que os "caçadores de prémios", centrais no filme, foram figuras muito importantes no western.
      Tenho para mim que um dos aspectos mais importantes do cinema de Quentin Tarantino é o tom jubilatório dos seus filmes, que com um humor truculento próprio aqui está de novo presente: como na carta de Abe Lincoln, nada é verdadeiro naquela história, como pouco seria verdadeiro na história do western - o mítico "A Desaparecida"/"The Searchers", de John Ford (1956) passava-se também a seguir ao fim da Guerra Civil. A questão é que, como neste género e nessa carta em favor do mito, nos faz acreditar no que nos mostra, no que nos diz, incluindo a questão racial que aqui regressa. 
                     Quentin Tarantino, The Hateful Eight
     Depois de Sergio Leone e Sam Peckinpah, a fotografia de Robert Richardson, a música de Ennio Morricone (sim, ele mesmo) e grandes actores no registo certo e muito bem caracterizados e dirigidos fazem o resto. Porque como poucos nos tira do tédio generalizado do actual cinema americano, estamos todos à espera dos seus filmes seguintes, Quentin Tarantino! (Sobre ele ver "Devastador", 21 de Fevereiro de 2012, e "Puro Tarantino", de 31 de Janeiro de 2013.)

     Nota
    Sobre este cineasta, cf. "Quentin Tarantino - Un cinéma déchainé", dirigido por Emmanuel Burdeau e Nicholas Vieillescazes (Paris: Les Prairies ordinaires - Capricci, 2013). Mas chamo também a atenção para o "John Ford" de Ted Gallagher, reescrito pelo autor para a edição francesa (Paris: Capricci, 2014).