“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

A dívida e a dádiva

      Já aqui exprimi o meu grande apreço pelo cineasta turco Nuri Bilge Ceylan (ver "Por Ceylan", de 30 de Maio de 2014), cuja obra conheço bem. O seu último filme, "Sono de Inverno"/"Kis uykusu" (2014), confirma inteiramente a conta em que o tenho, como um dos melhores cineastas da actualidade. De facto, neste seu mais recente filme, que recebeu a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2014, ele regressa de maneira mais extrema ao microcosmos do seu filme anterior, "Era Uma Vez na Anatólia"/"Bir zamanlar Anadolu'da", 2011 (ver "A grande fronteira", de 20 de Maio de 2012), mas desta vez, a partir de contos de Anton Tchékhov (1), esse microcosmos, perfeitamente localizado na actualidade, algures na Anatólia, assume ainda maior ressonância universal.
                     
      Jogando-se entre dois irmãos proprietários de um hotel, Aydin/Haluk Bilginer e Necla/Demet Akbag, ele também colunista no jornal local, ex-actor e aspirante a escritor, mais a mulher dele, Nihal/Melisa Sözen, muito mais nova do que ele, a partir desse núcleo progressivamente revelado Ceylan tece a sua narrativa no confronto destes entre si e com um inquilino que não paga o que deve, Ismail/Nejat Isler, acompanhado pelo irmão, Hamdi/Serhat Mustafa Kiliç. Sem se afastar desse rumo e da ideia de dívida, a partir de um argumento seu e de Ebru Ceylan o cineasta constrói um filme denso e despojado, com uma composição visual em tapeçaria em diferentes espaços que rara mas repetidamente a música suavemente comenta.
      Deste modo, sem nunca cair no melodrama que expressamente rejeita, "Sono de Inverno" é um drama familiar que agarra o lugar-comum para com ele, para nosso espanto e confusão, construir uma viagem abissal pela vida humana, no que ela tem de mais trivial e comum. Mas dizendo isto não digo ainda nada do que este filme subtilmente é sobre as relações sociais, sobre os confrontos mais íntimos mas também mais verdadeiros de todos nós.
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     O casal de idades diferentes, Aydin e Nihal, não tem filhos, a filha da irmã dele, Necla, vive em Inglaterra, de maneira que a parte dos mais novos recai sobre o filho do inquilino em falta, Ilyas/Emirhan Doruktutan, enquanto a parte dos mortos recai sobre o proprietário, cuja primeira mulher morreu, enquanto a sua irmã está divorciada e justamente discute com o irmão essa sua situação.
     Com uma primeira parte centrada no conflito com o inquilino, uma segunda parte sobre os dois irmãos, uma terceira parte sobre o casal, o filme resolve-se com a separação deste, o rumo de cada um dos seus membros, a ideia de dádiva e o modo como ela é rcebida. Aos cavalos selvagens que haviam surgido, um dos quais fora capturado e mais tarde simbolicamente devolvido à liberdade, responde no final a caçada que significa o regresso à normalidade, para a conclusão pelo protagonista do seu projectado livro sobre o teatro turco.
                      Destaque da Semana: “Sono de Inverno”
     Contando com todos os apontamentos culturais, sociais e religiosos pertinentes e com actores excepcionais, "Sono de Inverno" é um filme excelente de um cineasta imenso. A meu ver à altura de "A Regra do Jogo"/"La règle du jeu", de Jean Renoir (1939), e este é o maior elogio que lhe posso fazer.

Nota
(1) Incluindo os seus contos, Tchékhov está traduzido em português em edição da Relógio D'Água.

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