“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 11 de janeiro de 2015

O último dia

    "Pasolini", de Abel Ferrara (2014), de quem não conhecemos o anterior "Welcome to New York" (2014), confirma o cineasta americano como alguém que no cinema sabe o que faz, demarcando-se assim da comum produção hollywoodiana. O tema do seu último filme demonstra-o e o tratamento que ele dele faz reitera-o.  
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     A escolha do último dia de vida de Pier Paolo Pasolini (1922-1975) - o dia da sua morte - permite a Ferrara concentrar nesse breve lapso de tempo toda a sua vida, a sua obra e o seu pensamento político que, na sua virulência contundente e implacável em especial no final da vida dele, assume uma dimensão profética (1). Certamente incómoda, a actualidade do retratado, que seria a pedra de toque do "Pasolini" de Abel Ferrara, é plenamente respeitada, o que deve ser levado a seu crédito.
      Além dos excertos de "Salò ou Os 120 Dias de Sodoma"/"Salò o le 120 giornate di Sodoma" (1975) e da encenação do projecto que o escritor, poeta e cineasta tinha em curso àquela data, "Porno-Teo-Kolossal", é especialmente interessante a visualização de excertos do seu romance inacabado "Petróleo" (2), conduzidos por diferentes vozes narrativas.  
                    Pasolini                   
    Não sendo inocente, a escolha de Willem Dafoe para interpretar o protagonista resulta muito bem devido à compenetração e entrega do actor, embora também remeta, inevitavelmente, para o seu papel em "A Última Tentação de Cristo"/"The Last Temptation of Christ", de Martin Scorsese (1988), o que se percebe e tem consequências. De resto, as referências históricas estão certas e a apresentação de Pasolini como um grande criador intelectual, consciente dos seus tempos e dos seus meios e com apetência universal, faz-lhe justiça.
     Manter a actualidade da personagem e do seu pensamento, o que em qualquer caso se exigia, é assim plenamente conseguido. A fidelidade a Ninetto Davoli/Epifanio e Adriana Asti/Susanna Pasolini remete implicitamente para toda a obra para cinema do protagonista, enquanto Maria de Medeiros está muito bem na pela da mítica Laura Betti (1927-2004) com a mesma implicação. 
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    A realização de Ferrara é sempre correcta e segura, ao nível do seu melhor e do seu tema, sem jogar com a estética cinematográfica do seu protagonista, que sobre si próprio teria feito um outro filme, enquanto o final faz a opção certa de não especular, mesmo se com boa intenção, limitando-se a apresentar os factos como actualmente se considera que eles terão decorrido na morte de Pasolini.
   Em boa hora ressurgido por mão hábil, Pier Paolo Pasolini mantém-se neste filme como personalidade radical e ainda hoje criadora de divisões, o que é o melhor que se poderia esperar e exigir. E é sempre tempo de conhecer ou revisitar a sua obra (3), (4) - sobre Abel Ferrara ver "O sabor do fim", de 19 de Agosto de 2012.        
                    Pier Paolo Pasolini 
                                         
Notas
(1) De Pier Paolo Pasolini, cf. em edição portuguesa "Escritos Corsários - Cartas Luteranas: Uma antologia", com selecção de textos e apresentação de Francisco Roda (Lisboa: Assírio & Alvim, 2006).
(2) Edição portuguesa Editorial Notícias, Lisboa, 1996 (como o anterior com tradução de José Colaço Barreiros).
(3) De Pier Paolo Pasolini, cf. também "Empirismo Eretico" (Milano: Garzanti, 1972)  - edição portuguesa "Empirismo Hereje" (Lisboa: Assírio & Alvim, 1982) e, em edição portuguesa, "Poemas", com tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo (Lisboa: Assírio & Alvim, 2005).   
(4) Sobre Pier Paolo Pasolini continuam a ser fundamentais, de Gilles Deleuze "L'Image-mouvement" (Paris. Les Éditions de Minuit, 1983, em especial Capítulo 5.1) e "L'Image temps" (Paris: Les Éditions de Minuit, 1985, em especial Capítulo 7.3). Mas  actualmente, com abordagens diferentes e um outro alcance, são indispensáveis, de Georges Didi-Huberman "Survivence des lucioles" (Paris: Les Éditions de Minuit, 2009) e "L'Oeil de l'histoire, 4 - Peuples exposés, peuples figurants" (Paris: Les Éditions de Minuit, 2012).

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