“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Boa colheita

     O mais recente filme de Ken Loach, "O Salão de Jimmy"/"Jimmy's Hall" (2014), é mais um bom filme que faz jus à fama do cineasta como nome mítico do cinema inglês desde os anos 60. Com argumento de Paul Laverty, seu colaborador regular desde 1996 ("A canção de Carla"/"Carla's Song"), baseado em peça de Donal O'Kelly, apresenta-se como um filme de época sobre a Irlanda na primeira metade dos anos 30, uma época em que se encontrava em estado larvar o conflito entre o movimento operário e a Igreja Católica, que está justamente no centro deste filme.                       
                      Barry Ward (centre) in Jimmy's Hall
     Ken Loach começou por trabalhar para a televisão antes de se estrear no cinema com "Poor Cow" (1967) e regressou à televisão nos anos 70 por dificuldades do cinema britânico nessa década. Com uma importante obra no documentário, o cineasta tem-se afirmado pelo tratamento realista dos temas dos seus filmes, em que, contudo preserva um lado sentimental e romântico, que por vezes o prejudica quando levado até ao melodrama. Palma de Ouro em Cannes por "Brisa de Mudança"/"The Wind That Shakes the Barley" (2006), sobre a Irlanda do princípio do Século XX, tinha com esse filme deixado fraca impressão por um uso excessivo de música extra-diegética, o que me deixou má impressão por levar a uma montagem audiovisual incaracterística mas não impressionou negativamente o júri de Cannes.
   Em "O Salão de Jimmy" o problema não se repete porque o próprio filme inclui grande quantidade de música diegética, o que lhe confere uma justificação específica e equilibra a música extra-diegética, que assim não compromete. A história é muito simples, linear mesmo, e o seu conflito por causa da abertura de um salão de baile, também destinado a outros usos de convívio e didácticos, pelo protagonista, James Gralton/Barry Ward, é muito elucidativo sobre a Irlanda e uma época. Penso mesmo que haverá quem, a esta distãncia, considere o conflito mostrado difícil de compreender, mas nele estão presentes todos os elementos de época, nacionais e internacionais, que permitem entendê-lo.
                      Jimmy's Hall                
     Iniciando-se com imagens documentais, o filme a elas regressa durante uma sessão de cinema, como que para incluir tudo o que é indispensável para revestir inteira credibilidade. Que um pároco de aldeia, Father Sheridan/Jim Norton, se oponha ao salão de Jimmy invocando contra ele a defesa da música tradicional irlandesa é muito curioso e está à altura da persistência de Jimmy no seu projecto em favor da celebração e da festa, com grande apoio da população local. E em volta da posição da Igreja Católica movem-se outros interesses, que acabam por mostrar-se muito claramente. Um dos lados mais incómodos do cinema de Loach é, além do pendor melodramático, o seu propósito demasiado didáctico, o que por vezes o limita mas não chega a acontecer neste caso, embora ande perto na figura de Father Seamus/Andrew Scott.
      Com personagens femininas muito boas - Oonagh/Simone Kirby (muito boas as cenas com James Gralton, notável a dos dois no salão vazio), Marie/Aisling Franciosi e a mãe de Jimmy (notável a cena em que ela colabora com o filho na sua fuga) - "O Salão de Jimmy" consegue ultrapassar um simples conflito de ideias e atitudes perante a vida com um respeito integral pelos argumentos em jogo e pelo peso das forças em confronto, que é também um confronto de modos de vida, e até a um final feliz somos poupados. Com boa realização, fluente e escorreita, atenta aos pormenores mas sempre sobre as personagens, boa fotografia de Robbie Ryan e sem que a música, de George Fenton, comande a montagem, justa e funcional, de Jonathan Morris, este é, portanto, um filme de Ken Loach de boa colheita.

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