Um novo filme de Jean-Luc Godard é sempre um acontecimnto muito aguardado, o que voltou a acontecer com "Filme Socialismo"/"Film Socialisme" (2010), a sua primeira longa-metragem de ficção desde "A Nossa Música"/"Notre musique" (2004). Na sua construção, este é um filme que faz lembrar "História(s) do Cinema"/"Histoire(s) du Cinéma" (1988-1998), o filme em quatro partes em que fez a sua história do cinema e, para a fazer, fez a história do século XX, o século do cinema. A diferença é que agora faz a história do século XX e, para isso, recorre de novo à história do cinema. Em ambos os casos, contudo, o que está em causa, mais do que um filme de ficção, de que "Filme Socialismo" tem excertos, é o conceito de filme-ensaio.
De facto, logo na sua construção "narrativa" verifica-se que o cineasta recorre a textos de um grande número de autores muito variados, com os quais procede em modo de colagem que lhe permita pensar o passado, nomeadamente o século XX, mas também o presente da Europa (e do mundo). Ora a simples ideia de pensar no cinema vem colocar este filme fora da moda actual, que privilegia um cinema de evasão e de alta tecnologia, que faça esquecer os problemas do dia a dia com o recurso aos mais recentes avanços tecnológicos. Daqui Godard apenas guarda o suporte digital, de que aliás retira o melhor partido na imagem (e também no som) durante a primeira parte, "Des choses comme ça", passada a bordo de um navio de passageiros e sob o signo de "La porte étroite", de André Gide, quer do ponto de vista da iluminação ofuscante, com desfocagens e contrastes, em interiores, quer do ponto de vista do tratamento da geometria e das cores em exteriores, no convés, guardando planos separados para o mar revolto e para o horizonte marítimo com o sol ao fundo.
O filme começa com uma reflexão sobre o dinheiro e acaba com uma reflexão sobre a justiça, no culminar da sua terceira parte, "Humanité", em que se desloca para um passado mais antigo, em busca das raízes de uma civilização. Na segunda parte, "Quo vadis Europa", sob o signo de "Illusions perdues", de Balzac, tal como a primeira muito concentrada, desta feita numa estação de serviço cujos donos se vão candidatar a uma eleição, motivo pelo qual são visitados por uma equipa de televisão, somos confrontados com o presente, a actualidade em França, e brindados com uma construção visual e sonora que de novo faz lembrar o melhor de Godard. Isto significa que neste filme o cineasta prossegue, em estilo de filme-ensaio, uma rigorosa e intransigente criação audiovisual, no sentido de visual e auditiva, um rumo pelo qual enveredou sobretudo desde os anos 80 do século passado. Mas isto do ponto de vista formal, que nele é sempre muto importante, pois do ponto de vista das ideias, do pensamento, o que aqui impressiona são as aproximações fulgurantes de palavras e de imagens, por vezes mais do que um motivo na mesma imagem, como a jornalista contra uma parede sobre a qual se projectam as sombras das pás em movimento de um moinho de vento.
Se no tema que o título, "Filme Socialismo", implica está subjacente a revisitação dessa ideia no percurso que fez ao longo do século XX, esse é sobretudo o objecto da primeira parte, com as suas referências à Guerra Civil de Espanha, à II Guerra Mundial e a Israel. Mas mesmo aí surge como indispensável e fundamental a referência aos judeus, nomeadamente os que fundaram Hollywood, e portanto ao cinema, que segundo se diz, e bem, no filme pôs toda a gente a olhar para o mesmo lado na sala de projecção. Mas sintomaticamente o que vai estar recorrentemente em causa vai ser o destino do ouro, do Banco de Espanha ou do Banco da Palestina, o que remete para as fissuras dos grandes sonhos do século do cinema - na primeira parte o velho senhor chama-se Goldberg e no início da terceira parte será questão do ouro do Sudão.
A terceira parte do filme, em busca das origens de uma civilização, sucede-se à cena da noite dos tempos, com que encerra a segunda, e vai deter-se primeiro nos vestígios egípcios, depois nas origens da guerra civil, nascida do casamento da democracia com a tragédia, e também nas do cinema, o que vai ser pretexto para revisitar na actualidade a famosa escadaria de Odessa, celebrizada na sequência que aí tem lugar de "O Couraçado Potemkine"/"Bronenosetz Potiomkine", de Sergei Eisenstein (1925), de que mostra excertos, depois de outros de filmes de Charles Chaplin, John Ford e Vsevolod Pudovkine, o que vem dar a essa parte final um carácter vertiginoso do ponto de vista visual. Aliás, essas citações cinematográficas, que não são as únicas, vêm juntar-se a outras, literárias, pictóricas e musicais, o que permite melhor compreender o carácter citacional de todo o filme. Mas o que marca verdadeiramente "Filme Socialismo" é tentar fazer a história de uma ideia e colocá-la como questão para a actualidade, para o presente.
Mas para o fazer o cineasta recorre a uma construção audiovisual brilhante, com grande recurso ao fora de campo visual e sonoro, de modo que permite dizer que aqui ele trata as imagens como imagens e os ruídos, as palavras e a música como sons, o que origina, com largo recurso à não sincronização, uma percuciente composição audiovisual. Desse modo um filme brilhante em termos fílmicos é também um filme político que vai tão longe quanto um grande cineasta de 80 anos entendeu dever ir - é preciso mostrar, não falar do invisível mas mostrá-lo, diz-se na segunda parte às repórteres da televisão, e esse é um programa que o filme defende para si próprio, no seu jogo de luz e sombra sobre a história.
Mas para o fazer o cineasta recorre a uma construção audiovisual brilhante, com grande recurso ao fora de campo visual e sonoro, de modo que permite dizer que aqui ele trata as imagens como imagens e os ruídos, as palavras e a música como sons, o que origina, com largo recurso à não sincronização, uma percuciente composição audiovisual. Desse modo um filme brilhante em termos fílmicos é também um filme político que vai tão longe quanto um grande cineasta de 80 anos entendeu dever ir - é preciso mostrar, não falar do invisível mas mostrá-lo, diz-se na segunda parte às repórteres da televisão, e esse é um programa que o filme defende para si próprio, no seu jogo de luz e sombra sobre a história.
Claro que, mais uma vez, Jean-Luc Godard faz o seu filme, não aquele que seria esperado que fizesse, em que fala do que foi importante no século XX e no cinema, e fá-lo com um enorme brio audiovisual e com uma enorme sabedoria das ideias e da história, no que faz inteiramente justiça quer ao cinema quer à história, encarados ambos como desafios para o presente. E se nas raízes distantes de uma civilização vai até ao Egipto e à Grécia Antiga, nas suas origens próximas vai até à Resistência francesa durante a Ocupação, no decurso da II Guerra Mundial, o que deixa perfeitamente claro o seu pensamento sobre esta questão. O mito, esse deixa-o do lado dos ditadores, já que essa é, de facto, outra história, que sendo-o não deixa de fazer parte da mesma história e deve por isso ser questionada também, em simultâneo com ela.
Tudo acaba por ser muito rápido, como acontece nos filmes. "Filme Socialismo" serve, assim, para não esquecermos e para pensar - e pensar, mesmo no cinema, nunca fez mal a ninguém, e em especial com Godard torna-se estimulante, tanto mais quanto ele não pretende aqui dar lições de história mas colocar as interrogações da história, que procura iluminar, ciente, embora, de que nela permanecem largas manchas de sombra.
Tudo acaba por ser muito rápido, como acontece nos filmes. "Filme Socialismo" serve, assim, para não esquecermos e para pensar - e pensar, mesmo no cinema, nunca fez mal a ninguém, e em especial com Godard torna-se estimulante, tanto mais quanto ele não pretende aqui dar lições de história mas colocar as interrogações da história, que procura iluminar, ciente, embora, de que nela permanecem largas manchas de sombra.
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