“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

O encenador

      "Jerichow" é a quinta longa-metragem do alemão Christian Petzold (2008), livremente inspirada em "O Carteiro Toca Sempre Duas Vezes"/"The Postman Always Rings Twice", de James M. Cain (1934). O filme é muito bom pela maneira como o cineasta constrói o espaço e cria as personagens e a narrativa.
       Começando pelas personagens, estas revestem um carácter corporal, físico, desde a sequência de abertura, do regresso de Thomas/Benno Fürmann por causa da morte da mãe. Esse lado muito físico do filme, que se desenvolve nos encontros dele com Laura/Nina Hoss, a mulher de Ali Özkan/Hilmi Sözer, para quem ele passa a trabalhar, e nas reacções deste, faz pensar em John Cassavetes mas, neste caso, sobretudo em Rainer Werner Fassbinder e confere a "Jerichow" uma dimensão muito própria, que o tratamento do espaço torna ainda mais importante.           Esta questão do espaço é uma questão típica de realização cinematográfica, que Petzold resolve muito bem com a utilização da horizontal em espaços abertos, na movimentação dos carros, das personagens, de um comboio ao fundo, e da profundidade de campo, em interiores e exteriores, uma profundidade não meramente decorativa na medida em que nela as personagens se movimentam em direcção à câmara ou afastando-se dela, tal como acontece com as viaturas na parte final do filme, o que cria uma dinâmica muito interessante que aproveita e aumenta o lado físico do filme. Além disso, e pelas necessidades da narrativa, há momentos de plongé e de contra-plongé que são muito bem resolvidos em termos espaciais, tanto na primeira sequência na praia e na falésia, muito importante também do ponto de vista físico pois é aí que se inicia, instigado por Ali, o contacto mais próximo entre Thomas e Laura, como na sequência final, na falésia mas também na praia.
          Tratando-se de uma narrativa simples e cujos elementos fundamentais são conhecidos, o cineasta pôde dedicar-se à caracterização das personagens mas também à realização em termos sóbrios e muito seguros, num filme a que uma montagem precisa se encarrega de conferir um tom seco. Neste sentido, "Jerichow" pode ser visto como um proveitoso exercício de estilo do realizador.
                               
          É evidente que o passado, quer o de Thomas quer o de Laura, tem o seu significado próprio, tal como o facto de cada um deles por motivos diferentes ter escondido dinheiro, mas o que me parece mais interessante é que Ali seja um turco que à Turquia diz querer regressar para sempre, um turco escuro e tosco perante dois brancos, jovens e belos alemães, o que estabelece um contraste que surge como evidente e procurado pelo cineasta, também autor do argumento. Ora Ali pode ter na narrativa um papel nem de ignorante nem de indiferente, o que é uma pura construção da "mise en scène" e confere um encanto enigmático ao filme, menos simples, afinal, do que as suas premissas narrativas poderiam fazer prever. Se Ali falou verdade, ou não, no seu último diálogo com Laura nunca o saberemos, pois habilmente o final, com a queda do carro da falésia, é dado a partir de um espaço fora de campo, que Thomas e Laura ouvem sem verem.
          Se existe um novo "cinema novo" alemão, com filmes muito bons e cineastas novos e inteligentes - e eu penso que sim, que existe - ele passa por Christian Petzold como por Fatih Akin e dele há muito a esperar. É um prazer ver como um cineasta alemão desta geração constrói e resolve este seu filme em termos de realização, de pura "mise en scène", deixando espaço para o espectador exercer a sua leitura, a sua interpretação. 
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          Aproveito para felicitar o Goethe-Institut de Lisboa, que comemora 50 anos de existência com uma programação especial. Graças a ele temos podido manter um contacto próximo com uma cultura europeia de referência - também de referência no campo do cinema. E este cinquentenário decorre quando se comemoram também 50 anos sobre o Manifesto de Oberhausen, que em 1962 deu início ao "cinema novo" alemão, o que igualmente merece ser assinalado e festejado.

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