“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 30 de setembro de 2012

Spielberg 2011

          2011 foi um ano fértil para Steven Spielberg, em que, depois de ter estado três anos ausente como realizador, dirigiu dois filmes, "As  Aventuras de Tintin - O Segredo do Licorne"/"The Adventures of Tintin" e "Cavalo de Guerra"/"War Horse", em que deixa de maneiras diferentes a sua marca pessoal.
             "Cavalo de Guerra", baseado em romance de Michael Morpurgo e em peça de teatro de Nick Stafford, é um filme algo desigual mas bem intencionado, como é costume nos filmes do cineasta, em que ele parte de uma situação convencional, como também é seu hábito, para nos seus desenvolvimentos durante a I Guerra Mundial assumir um discurso pacifista, anti-belicista, de modo a explicitar o que nesse sentido se pode considerar que estava já contido nos seus anteriores filmes de guerra: "Império do Sol"/"Empire of the Sun" (1987), "A Lista de Schindler"/"Schindler's List" (1993) e "O Resgate do Soldado Ryan"/"Saving Private Ryan" (1998).
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           O início do filme, em Inglaterra, é sumário e filmado com alguma displicência apesar da sua importância - a luta por um cavalo, o seu ensino e a relação do instrutor com ele -, mas as coisas melhoram com a passagem para o território continental em guerra, pois é aí que se vai estabelecer o pacifismo do filme: primeiro no confronto com os alemães, devastador para a cavalaria inglesa, numa parte que termina com o fuzilamento de dois jovens desertores alemães; depois, a partir da breve passagem pela quinta de avô e neta, que se fecha com a descoberta pelo primeiro do que aconteceu do outro lado da colina, um momento bem dado em termos de cinema, a parte final em que o jovem Albert Narracott/Jeremy Irvine chega ao campo de batalha e mostra a sua perplexidade no conflito e o seu horror por matar, que é assinalada pela fuga do cavalo e depois pela sua libertação, também dois bons momentos de cinema. Claro que o tom geral é muito spielberguiano, com alguma redundância e excesso na música de John Williams e muito melodrama, o que o seu eventual modelo, "Horizontes de Glória"/"Paths of Glory", de Stanley Kubrick (1957), muito mais seco, não tinha. Ficam alguns bons momentos de cinema (as cenas dos desertores e da perplexidade do jovem Albert, a elipse sobre Emilie/Celine Buckens e a parte final com o cavalo), a fotografia de Janusz Kaminski e o propósito pacifista muito bem elaborado e demonstrado, sentimentalismo incluído, o que o cineasta nunca dispensa. Por sua vez, a rotação de personagens a meu ver beneficia o equilíbrio do filme, centrado num cavalo, e vem compensar a sua excessiva duração.
            Mesmo assim, apesar de eventuais referências clássicas, nomeadamente na montagem elíptica, o filme soa em diversos momentos a academismo, que só com o passar do tempo se vai desvanecendo, à medida que a narrativa avança. Para me fazer entender, direi que o lado familiar, no início e no fim, está longe de John Ford - por exemplo, "O Vale Era Verde"/"How Green Was My Valley" (1941) - e o lado bélico não atinge a grande inocência de Howard Hawks - nomeadamente em "O Sargento York"/"Sergeant York" (1941) -, mas mesmo assim percebe-se que os tempos são outros, o contexto narrativo é diferente e o cineasta se mantém sobretudo fiel a si próprio, no melhor e no pior, muito próximo de um espírito Disney, o que nele nem sequer é raro. 
                     «As Aventuras de Tintin - O Segredo do Licorne» em estreia e em imagens
         "As Aventuras de Tintin - O Segredo do Licorne" é outra coisa, pois na reinvenção das personagens e da narrativa de Hergé com recurso a animação digital Steven Spielberg consegue ir direito à sua fonte para a ela se manter fiel na transposição pessoal para filme. Aqui sim, vê-se, sente-se e percebe-se o sentimento jubilatório do cinema do realizador sempre adolescente quando encontra os seus grandes motivos narrativos e visuais, como na série de Indiana Jones, e voltamos a ser arrastados pelo imaginário e pela arte de um grande cineasta no seu melhor. Mesmo se os movimentos de câmara repetem o modelo que o realizador estabeleceu como marca de estilo, a dinâmica do filme é outra, de aventura e de divertimento, de puro prazer visual, o que, com o contributo decisivo das técnicas de animação muito bem dominadas, confere a cada sequência e ao todo um delicioso sabor de revisitação da infância, de um imaginário infantil, de modo inteiramente pessoal e conseguido.
         Deste modo, o filme afasta-se do academismo e do conformismo formal que atravessa  várias vezes "Cavalo de Guerra" para se entregar a uma criatividade pura em termos visuais e sonoros, sem falhas e sem receios pois aquele é um terreno em que o cineasta está sempre mais à-vontade por permitir-lhe exprimir-se em termos puramente visuais de plena inventiva cinematográfica, com tanto maior liberdade quanto entra decididamente, e muito bem, pelo terreno da animação, com claro benefício para a caracterização das personagens, para a narrativa e para os cenários, em que a câmara se desloca com grande desenvoltura e sem limitações, melodramáticas ou realistas, ressalvando embora a marca pessoal do cineasta. "As Aventuras de Tintin - O Segredo do Licorne" é, por tudo isso mais a superior qualidade gráfica do seu ponto de partida, a que se mantém fiel embora dele se apropriando, um filme jubilatório e feliz.
                    
        Tendo sido um ano fértil para Steven Spielberg, 2011 foi para ele um ano sobretudo assinalado pelo sucesso com que investiu em filme a banda desenhada, logo uma das mais célebres e míticas do século XX na Europa, embora também marcado pelo reforço de um louvável propósito pacifista. Vamos ver como lhe terá saído "Lincoln", já deste ano - eu tenho sempre um certo receio do pendor sentimental e moralista do cineasta quando ele se leva demasiado a sério, o que deve ser aqui o caso, apesar das boas provas por ele já aí dadas. Mas vamos ver.

Nota
Sobre Steven Spielberg, veja-se o importante dossier que lhe dedicam os Cahiers du Cinéma, nº 675, Fevereiro de 2012: "Spielberg face à face".

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