2011 foi um ano fértil para Steven Spielberg, em que, depois de ter estado três anos ausente como realizador, dirigiu dois filmes, "As Aventuras de Tintin - O Segredo do Licorne"/"The Adventures of Tintin" e "Cavalo de Guerra"/"War Horse", em que deixa de maneiras diferentes a sua marca pessoal.
"Cavalo de Guerra", baseado em romance de Michael Morpurgo e em peça de teatro de Nick Stafford, é um filme algo desigual mas bem intencionado, como é costume nos filmes do cineasta, em que ele parte de uma situação convencional, como também é seu hábito, para nos seus desenvolvimentos durante a I Guerra Mundial assumir um discurso pacifista, anti-belicista, de modo a explicitar o que nesse sentido se pode considerar que estava já contido nos seus anteriores filmes de guerra: "Império do Sol"/"Empire of the Sun" (1987), "A Lista de Schindler"/"Schindler's List" (1993) e "O Resgate do Soldado Ryan"/"Saving Private Ryan" (1998).
O início do filme, em Inglaterra, é sumário e filmado com alguma displicência apesar da sua importância - a luta por um cavalo, o seu ensino e a relação do instrutor com ele -, mas as coisas melhoram com a passagem para o território continental em guerra, pois é aí que se vai estabelecer o pacifismo do filme: primeiro no confronto com os alemães, devastador para a cavalaria inglesa, numa parte que termina com o fuzilamento de dois jovens desertores alemães; depois, a partir da breve passagem pela quinta de avô e neta, que se fecha com a descoberta pelo primeiro do que aconteceu do outro lado da colina, um momento bem dado em termos de cinema, a parte final em que o jovem Albert Narracott/Jeremy Irvine chega ao campo de batalha e mostra a sua perplexidade no conflito e o seu horror por matar, que é assinalada pela fuga do cavalo e depois pela sua libertação, também dois bons momentos de cinema. Claro que o tom geral é muito spielberguiano, com alguma redundância e excesso na música de John Williams e muito melodrama, o que o seu eventual modelo, "Horizontes de Glória"/"Paths of Glory", de Stanley Kubrick (1957), muito mais seco, não tinha. Ficam alguns bons momentos de cinema (as cenas dos desertores e da perplexidade do jovem Albert, a elipse sobre Emilie/Celine Buckens e a parte final com o cavalo), a fotografia de Janusz Kaminski e o propósito pacifista muito bem elaborado e demonstrado, sentimentalismo incluído, o que o cineasta nunca dispensa. Por sua vez, a rotação de personagens a meu ver beneficia o equilíbrio do filme, centrado num cavalo, e vem compensar a sua excessiva duração.
Mesmo assim, apesar de eventuais referências clássicas, nomeadamente na montagem elíptica, o filme soa em diversos momentos a academismo, que só com o passar do tempo se vai desvanecendo, à medida que a narrativa avança. Para me fazer entender, direi que o lado familiar, no início e no fim, está longe de John Ford - por exemplo, "O Vale Era Verde"/"How Green Was My Valley" (1941) - e o lado bélico não atinge a grande inocência de Howard Hawks - nomeadamente em "O Sargento York"/"Sergeant York" (1941) -, mas mesmo assim percebe-se que os tempos são outros, o contexto narrativo é diferente e o cineasta se mantém sobretudo fiel a si próprio, no melhor e no pior, muito próximo de um espírito Disney, o que nele nem sequer é raro.
"As Aventuras de Tintin - O Segredo do Licorne" é outra coisa, pois na reinvenção das personagens e da narrativa de Hergé com recurso a animação digital Steven Spielberg consegue ir direito à sua fonte para a ela se manter fiel na transposição pessoal para filme. Aqui sim, vê-se, sente-se e percebe-se o sentimento jubilatório do cinema do realizador sempre adolescente quando encontra os seus grandes motivos narrativos e visuais, como na série de Indiana Jones, e voltamos a ser arrastados pelo imaginário e pela arte de um grande cineasta no seu melhor. Mesmo se os movimentos de câmara repetem o modelo que o realizador estabeleceu como marca de estilo, a dinâmica do filme é outra, de aventura e de divertimento, de puro prazer visual, o que, com o contributo decisivo das técnicas de animação muito bem dominadas, confere a cada sequência e ao todo um delicioso sabor de revisitação da infância, de um imaginário infantil, de modo inteiramente pessoal e conseguido.
Deste modo, o filme afasta-se do academismo e do conformismo formal que atravessa várias vezes "Cavalo de Guerra" para se entregar a uma criatividade pura em termos visuais e sonoros, sem falhas e sem receios pois aquele é um terreno em que o cineasta está sempre mais à-vontade por permitir-lhe exprimir-se em termos puramente visuais de plena inventiva cinematográfica, com tanto maior liberdade quanto entra decididamente, e muito bem, pelo terreno da animação, com claro benefício para a caracterização das personagens, para a narrativa e para os cenários, em que a câmara se desloca com grande desenvoltura e sem limitações, melodramáticas ou realistas, ressalvando embora a marca pessoal do cineasta. "As Aventuras de Tintin - O Segredo do Licorne" é, por tudo isso mais a superior qualidade gráfica do seu ponto de partida, a que se mantém fiel embora dele se apropriando, um filme jubilatório e feliz.
Tendo sido um ano fértil para Steven Spielberg, 2011 foi para ele um ano sobretudo assinalado pelo sucesso com que investiu em filme a banda desenhada, logo uma das mais célebres e míticas do século XX na Europa, embora também marcado pelo reforço de um louvável propósito pacifista. Vamos ver como lhe terá saído "Lincoln", já deste ano - eu tenho sempre um certo receio do pendor sentimental e moralista do cineasta quando ele se leva demasiado a sério, o que deve ser aqui o caso, apesar das boas provas por ele já aí dadas. Mas vamos ver.
Nota
Sobre Steven Spielberg, veja-se o importante dossier que lhe dedicam os Cahiers du Cinéma, nº 675, Fevereiro de 2012: "Spielberg face à face".
Nota
Sobre Steven Spielberg, veja-se o importante dossier que lhe dedicam os Cahiers du Cinéma, nº 675, Fevereiro de 2012: "Spielberg face à face".
Sem comentários:
Enviar um comentário