O mais recente filme dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne", "O Miúdo da Bicicleta"/"Le gamin au vélo" (2011), é mais um filme muito bom dos dois cineastas belgas, de novo argumentistas e realizadores, que vem confirmar que eles abandonaram o ponto de vista fixo que marcava os seus filmes, em favor de uma maior liberdade de câmara e de pontos de vista sem que qualquer prejuízo daí resulte. Solto e mais livre, este filme não abandona o extremo rigor que caracterizava os anteriores filmes dos autores, já que eles continuam intransigentemente a perseguir o que dói na sociedade contemporânea em personagens traçadas e desenvolvidas com grande precisão e felicidade.
Falou-se muito em dada a altura da influência de Robert Bresson nos Dardenne, o que parecia um dado bastante claro, e essa é, de facto, uma influência ainda hoje manifesta na maneira como eles continuam a trabalhar as personagens, os sons e os silêncios. Há, de facto, uma grande austeridade e um grande rigor no trabalho fílmico dos autores sobre personagens e situações em parte reminiscentes da história do cinema ("Ladrões de Bicicletas"/"Ladri di biciclette", de Vittorio de Sica, 1948), mas que eles tornam suas e originais ao conferirem-lhes um forte cunho contemporâneo, que as torna simultaneamente locais e universais.
Entre Cyril Catoul/Thomas Doret, deixado pelo pai numa casa de acolhimento de que ele foge para o procurar, e Samantha/Cécile De France, que lhe resgata a bicicleta, o ajuda a procurar o pai e o acolhe em sua casa, estabelece-se uma relação de afectividade atravessada por vários gestos de rebeldia da parte do miúdo, que naturalmente procura o convívio dos da sua idade e aceita a abordagem de uma outra figura masculina mais velha do que ele, Wes/Egon Di Matteo, o que vai conduzir a um novo e sério conflito.
Os Dardenne conduzem "O Miúdo da Bicicleta" com grande sobriedade e grande acerto, por forma a que o conflito surja, evolua, mude de ponto fulcral mantendo sempre uma mesma ideia de base, a que permanece fiel: o isolamento de um miúdo abandonado, traído pelo pai, e que passa a andar sem rumo definido, tentando furtar-se às obrigações que lhe pretende impor Samantha e colocando-a mesmo perante uma opção difícil, que ela resolve a favor dele. Esse momento da escolha dela está muto bem dado, bem como, mais tarde, a fuga dele de casa dela, mas vai ser o silêncio em que Cyril se afasta do pai, que procurara pela segunda vez, de noite na bicicleta, como numa fuga no vazio, e o silêncio que ele resolve guardar no final, depois de recuperado de uma queda consecutiva a uma perseguição, o que vai marcar de maneira mais forte o seu isolamento e o filme.
Muito bem defendido do lado das interpretações, que mantêm um registo de sobriedade, e coberto do lado musical com grande sabedoria, "O Miúdo da Bicicleta" de Jean-Pierre e Luc Dardenne é um excelente filme em que os cineastas dão conta de uma renovada inspiração, livre e sentida, com uma maior liberdade formal, sem abandono das personagens complexas e em crise que caracterizam o seu cinema.
Nota
Sobre os irmãos Dardenne, ver "Au dos de nos images (1991-2005), suivi de «Le Fils», «L'Enfant» et «Le Silence de Lorna» par Jean-Pierre et Luc Dardenne", de Luc Dardenne, Paris, Éditions du Seuil, 2005 e 2008.
Sobre os irmãos Dardenne, ver "Au dos de nos images (1991-2005), suivi de «Le Fils», «L'Enfant» et «Le Silence de Lorna» par Jean-Pierre et Luc Dardenne", de Luc Dardenne, Paris, Éditions du Seuil, 2005 e 2008.
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