“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 26 de janeiro de 2013

Uma mulher

   "Vénus Negra"/"Vénus noire", o mais recente filme do tunisino radicado em França Abdellatif Kechiche (2010), traça um retrato impressionante e muito forte da denominada "vénus hotentote", Saartjie Baartman/Yahima Torres, personagem histórica que, no início do século XIX, terá servido de cobaia para os cientistas franceses estabelecerem que, apesar de negra e hotentote, ela pertencia à mesma espécie que as europeias.
    Estranha mártir da ciência, o filme conta-nos a sua história entre Londres em 1910 e Paris em 1915, enquanto serve de atracção de feira e de aristocratas como espécimen bizarro e exótico, capaz de fazer coisas especiais, especialmente bizarras, exóticas e por isso atraentes, mesmo se em situação parecida com o cativeiro. O final do filme, passado na actualidade, mostra-nos a homenagem que lhe foi recentemente prestada na África do Sul, mas antes disso podemos assistir, com todos os detalhes, ao percurso de uma mulher negra em semi-cativeiro na Europa do início do século XIX, quando a superioridade branca e europeia passava também pelo estabelecimento dos dados científicos em relação à espécie.  
                    
              Devo dizer que este é o elemento que a mim me impressiona mais no filme, pois perante a natural recusa de Saartjie em colaborar, vai ser a partir do seu cadáver que vai ser possível tirar o molde de que resultam, inequívocas, as provas científicas procuradas, de uma mulher que em vida sofreu todos os abusos e vexames de uma raça que se entendia superior, para cuja elite serviu de atracção, engodo e excitação perversa.
             Abdellatif Kechiche é um bom cineasta, de quem pudemos apreciar trabalhos anteriores, nomeadamente "La faute à Voltaire" (2000), "A Esquiva"/L'esquive" (2003) e o admirável "O Segredo de um Cuscuz"/"La graine et le mulet" (2007), que aqui faz um trabalho de grande interesse e atenção ao detalhe de época e histórico, com uma planificação sem concessões de nenhuma espécie e reveladora de um estilo muito seguro que lhe permite guardar distâncias sem perder a proximidade da protagonista, respeitando com sobriedade e rigor os seus sucessivos proprietários brancos, Hendrik Caezar/Andre Jacobs e Réaux/Olivier Gourmet, personagens muito importantes porque, habilmente, o cineasta faz com que os acompanhemos por forma a estabelecer a justa distância em relação a Saartjie/Sarah.    
                    
         "Vénus Negra" era um filme necessário? A meu ver sim. E está à altura da personagem de que se ocupa? A meu ver está. Haverá quem, ainda hoje, na Europa fique incomodado por esta história e esta personagem? Se calhar, haverá. Mas, como quaisquer outros, todos temos que lidar com a verdade do passado, que como tal merece ser conhecida, sem que por isso nos julguemos, hoje, melhores do que aqueles que nos antecederam. E Yahima Torres está excelente no papel da "vénus hotentote", de que assume plenamente a humilhação, a nobreza e o orgulho.
         A questão que me fica é se, mudadas as circunstâncias, com as mesmas ou outras raças, ou mesmo dentro da mesma raça, e mudadas as pessoas, a questão de fundo de uma pretensa superioridade, racial ou outra, não permanecerá nos nossos dias. Só que, se calhar, hoje como ontem acha-se que é natural, que é mesmo assim.

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