Encarei "Cloud Atlas", dos irmãos Andy e Lana Wachowski e Tom Tykwer (2012), com alguma precaução, pois, embora respeite o trabalho para cinema dos famosos irmãos americanos e do conhecido cineasta alemão, não sou especialmente admirador nem de uns nem do outro, os primeiros muito identificados com os filmes da série "Matrix", o último sobretudo conhecido por "Corre, Lola, Corre"/"Lola rennt" (1998) e "O Perfume - História de um Assassino"/"Perfume: The Story of a Murderer" (2006). Devo, contudo, admitir que neste filme feito a seis mãos eles conseguem atingir um nível de expressão fílmica invulgar e, pelo menos para mim, inesperado.
Isto não deixa de ser surpreendente pois o que os cineastas neste filme fazem é perfeitamente consistente com os seus respectivos filmes anteriores, de que radicalizam os pressupostos e os traços característicos do lado da narrativa e do tempo, da vida, das personagens e da repetição. O facto de cada actor se dividir por diferentes personagens sem dúvida que é muito interessante e funciona muito bem, mas é o lado de uma narrativa que é contada desde o início até ao final, fragmentariamente e dividida por diferentes linhas narrativas que percorrem diferentes espaços e tempos de uma maneira livre e que se quer significativa de um regresso e de uma repetição, que replica o anterior ou o posterior, que em "Cloud Atlas" me interessa.
Falando com toda a franqueza, nem sequer sou especialmente sensível à questão que o filme equaciona e sobre a qual trabalha, que é uma hipótese de trabalho e de pensamento como outra, por mais atraente e convincente que se queira apresentar, por mais autorizados que sejam os fundamentos filosóficos que possa invocar em seu favor. O que aqui me fascina é a grande liberdade criadora dos realizadores e argumentistas, - a partir do romance homónimo de David Mitchell - , aliás Tom Tykwer também compositor, na realização e na montagem do filme, que os leva a estabelecer diferentes linhas narrativas em que as continuidades imediatas, em contiguidade, são utilizadas para criar novas associações e novos sentidos.
Claro que não devo esconder o gosto que me dá ver actores tão destacados e carismáticos como, por exemplo, Tom Hanks e Halle Berry, Susan Sarandon e Hugh Grant, desdobrarem-se em diferentes e até contraditórias personagens, mas a isso eu chamarei o inocente prazer do cinéfilo inveterado, para quem Doona Bae e Xun Zhou são gratas surpresas. Mas o que verdadeiramente aqui me agrada e me leva a considerar este um filme superior é a criação e utilização dos cenários, nalguns casos futuristas, o desdobramento das mesmas personagens em situações diferentes e sobretudo a dinâmica que, ao cruzar no imediato as diferentes linhas narrativas, a montagem cria repetidamente por forma a contribuir para a construção do mistério de cada personagem e do próprio filme.
Embora se possa ainda hoje pensar que um filme não se ganha na mesa de montagem, "Cloud Atlas" é um filme soberbo justamente pela criação a que procede a nível da montagem numa narrativa com diversas linhas que, se não de outra, dessa maneira criativamente se cruzam. E esta é uma questão que só se percebe enquanto se assiste ao filme, e se é levado de uma narrativa para a outra, de um tempo para o outro, de um determinado momento para outro momento determinado, de uma forma que faz lembrar os clássicos da montagem do cinema mudo, nomeadamente a "montagem de atracções" de Sergei Eisenstein, pelos novos afectos e sentidos que cria.
Há em "Cloud Atlas" um nível de expressão e de comunicação quase subliminar que é estabelecido pela montagem e valoriza simultaneamente a narrativa e a expressividade do filme. Se a isto juntarmos as excelentes intenções subjacentes ao filme, ao mostrar em cada narrativa o melhor e o pior de cada ser humano, por vezes na mesma personagem, teremos explicado com inteira clareza os motivos mais profundos de interesse de um filme que pode escapar a muitos pela referência ao assunto de que explícita e legitimamente se ocupa. Um filme que, repito, sabe muito bem construir o mistério de cada personagem e os seus próprios mistérios como filme, que são, por si mesmos, estimulantes.
Aqui fui surpreendido, e eu gosto de ser surpreendido por bons motivos, em especial num tempo como este em que as verdadeiras surpresas escasseiam, pois tudo se tornou programado e, por isso, previsível. Ora aqui os Wachowski e Tom Tykwer surpreendem de maneira muito positiva onde deles talvez menos se esperasse.
Além do mais, "Cloud Atlas" põe-nos a falar com os mortos, o que é um exercício muito proveitoso, tanto mais quanto podemos perceber que ali, naquele filme, os mortos somos também nós próprios, os espectadores de hoje.
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