“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 12 de janeiro de 2014

Corre, negro, corre

    A terceira longa-metragem de Steve McQueen, "12 Anos Escravo"/"12 Years a Slave" (2013) apresenta-se como um excelente filme pela forma directa como trata o seu tema. Baseado nas memórias de Solomon Northup/Chiwetel Ejiofor, o filme retira o seu melhor do realismo das personagens e dos ambientes, sem que o cineasta se preocupe excessivamente com questões de mise en scène, deixando ao cuidado dos actores a restituição fiel da violência e crueldade da escravatura no Século XIX no Sul dos Estados Unidos.
    E aqui penso que a opção do cineasta se revela correcta, pois perante a crueza da situação não havia que procurar efeitos cinematográficos que a atenuassem. Sempre com muito bom gosto e grande atenção aos pormenores comportamentais - excelentes, além do próprio protagonista, Michael Fassbender como Edwin Epps e Lupita Nyong'o como Patsey -, o cineasta mostra de novo o seu gosto pelos temas fortes tratados sem meias-tintas.  
                     Twelve Years a Slave 
     Atingindo pontos culminantes na tentativa de enforcamento de Solomon, tratada em duração, e no brutal espancamento de Patsey, "12 Anos Escravo" constrói-se gradualmente, por sucessão de situações, no início com recurso a recuos temporais justificados. E há um momento em que, já próximo do final do filme, Solomon, que do seu próprio nome fora destituído, nos olha do lado esquerdo do plano como se nos olhasse do fundo do tempo com a memória da negritude e da escravatura no rosto, nos olhos.
    História exemplar, demasiado exemplar mesmo a deste filme, que por intermédio de Patsey e de todos os outros nos recorda todos aqueles que, permanecendo esquecidos, nasceram e morreram escravos,  - ela, eles os recordam.  
     Deve, no entanto, dizer-se que o cineasta, ao pretender dar-nos a realidade nua a crua estetiza em excesso o seu filme na procura da beleza da imagem, o que faz problema e reduz o seu potencial efeito e alcance, estetizando uma brutalidade inominável sem exceder um realismo imediato. Comparativamente, mesmo "Django Libertado"/"Django Unchained", de Quentin Tarantino (2012), ao brincar com os códigos de género do western fica a ganhar em coerência estética e alcance político no seu laborioso e soberbo trabalho cinematográfico. 
                    
      A condição negra escrava encontra em Steve McQueen um cineasta perfeitamente à altura, que não precisa de chamar a atenção sobre si como realizador para conseguir mostrar em toda a sua crueza uma realidade que, antes da abolição da escravatura - que contudo, como se sabe, não acabou com a intolerância racial -, foi corrente. Agora o cineasta não teve a noção de que ali era preciso um certo rigor, uma certa austeridade, ou então uma outra rugosidade, um outro arrojo, que evitassem a estetização do inominável, que marcou o Século XIX como o Holocausto marcou o Século XX. Apesar do respeito manifestado na geral manutenção da distância justa, esse é o limite, chamar-lhe-ei mesmo defeito maior do seu filme, decorrente talvez dos seus antecedentes nas artes plásticas e na fotografia (sobre Steve McQuenn ver "Estranho ou nem por isso", 29 de Abril de 2012).
       Se houve um tempo em que parecia arriscado falar destas questões, hoje vivemos um tempo em que pareceria mal não as tratar desta maneira, mesmo correndo o risco de parecer acolher uma evidência histórica e de incorrer em estetizá-la. Sem embargo das objecções colocadas, em "12 Anos Escravo" do fundo dos tempos todos os escravos, através de Solomon e dos outros deste filme, nos contemplam (1)

Nota
(1) Cf. a este respeito "História da Escravatura - Da antiguidade aos nossos dias", de Christian Delacampagne", Lisboa, Texto & Grafia, 2013.

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