O mais recente filme de Martin Scorsese, o quinto em que ele dirige Leonardo DiCaprio, "O Lobo de Wall Street"/"The Wolf of Wall Street" (2013), é um filme frenético e assombroso, em que o cineasta esboça uma síntese entre as diferentes vertentes da sua obra, iniciada na curta-metragem há mais de 50 anos.
Devo começar por dizer que sempre admirei em Scorsese o desassombro e a coragem de abordar temas difíceis sem os procurar amenizar, antes levando-os ao excesso paroxístico. Esse excesso é aqui atingido na personagem de Jordan Belfort, um corretor de Wall Street que começa a partir da criação da sua própria empresa rudimentar para, à custa de diversas manigâncias mas também de um verdadeiro talento de vendedor para o negócio, chegar ao topo fazendo-a crescer graças ao seu esforço e aos seus múltiplos recursos e capacidades.
Superiormente interpretado por DiCaprio em excesso de despesa, de energia, Belfort faz-se rodear de parceiros de confiança para montar um negócio que faz dele um parente próximo dos mafiosos que povoam a obra do cineasta - de "Tudo Bons Rapazes"/"Goodfellas" (1990, "Casino" (1995) e "The Departed - Entre Inimigos"/"The Departed" (2006), na linha dos seus filmes iniciais, "Os Cavaleiros do Asfalto"/"Mean Streets" (1973) e "Taxi Driver" (1976), assombrados ainda pela presença do jovem Robert De Niro. Mas ao centrar-se em Belfort, personagem verídica com uma pequena aparição no filme e em cuja autobiografia se baseia o argumernto de Terence Winter, "O Lobo de Wall Street" através dele não esconde que o verdadeiro protagonista, que ali está em causa, é o dinheiro, verdadeiro ou já meramente abstracto, virtual.
O contraponto do tom dramático, empolgante mesmo, do filme é dado pelo tom de comédia, de sarcasmo em diversos momentos assumido, chamando para lugar mais evidente uma distância que é crítica sem perder a empatia com Jordan Belfort, na sua histeria e na sua paranóia. Esse tom de comédia vai o cineasta buscá-lo a "O Rei da Comédia"/"The King of Comedy" (1982), filme mal-amado que na sua filmografia se situa entre "O Touro Enraivecido"/"Raging Bull" (1980) e "Nova Iorque Fora de Horas"/"After Hours" (1985), que kafkianamente o prolongava.
Pode sempre julgar-se reconhecer em Belfort uma alusão ao próprio Scorsese enquanto jovem cineasta, cujos excessos eram conhecidos, mas o que aqui verdadeiramente interessa é o evidente e fortíssimo poder do dinheiro, que a todos arrasta literalmente para tudo, ao ponto de tudo justificar. Com tanta força e de tal modo que os excessos de palavras, de sexo, de drogas não o escondem como não escondem nem escamoteiam o excesso de vazio que o rodeia, que rodeia o protagonista e os seus homens no seu evidente amoralismo que o tem em vista e que ele justifica.
Que apesar de tudo Martin Scorsese consiga manter, com apoio num trabalho prodigioso de Leonardo DiCaprio, a simpatia contagiante que gera a empatia de Belfort é um dos maiores motivos de interesse e uma das maiores proezas deste filme com assomos wellesianos ("O Mundo a Seus Pés"/"Citizen Kane", 1941, com pelo menos duas citações expressas na parte final). Impiedoso, o cineasta diz o que quer sobre a sua narrativa, as suas personagens e a própria América num filme que não dá tréguas a ninguém, muito menos ao espectador.
E é o tom de comédia que aguenta o excesso delirante do protagonista sobetudo na parte final, a partir da assombrosa sequência da droga fora de prazo que actua ao retardador no momento mais importante para Belfort, prodigiosamente interpretada por DiCaprio, soberbamente dirigida, filmada e montada. Sem contemplações, o cineasta não poupa nada nem ninguém num ambíguo jogo de espelhos em que todos reconhecem o dinheiro que os chama e move, ou pode mover, seu traço-comum e poderoso atractor a que ninguém é imune.
E é o tom de comédia que aguenta o excesso delirante do protagonista sobetudo na parte final, a partir da assombrosa sequência da droga fora de prazo que actua ao retardador no momento mais importante para Belfort, prodigiosamente interpretada por DiCaprio, soberbamente dirigida, filmada e montada. Sem contemplações, o cineasta não poupa nada nem ninguém num ambíguo jogo de espelhos em que todos reconhecem o dinheiro que os chama e move, ou pode mover, seu traço-comum e poderoso atractor a que ninguém é imune.
Sempre com a fiel Thelma Schoonmaker na montagem, por incompreensões ingénuas e pudibundas de ignorantes que possa convocar (este o caso em que para se avaliar tem que se mostrar o que está em causa em toda a sua extensão e mesmo eventual ambiguidade) Martin Scorsese está agora no topo da sua carreira, de que "O Lobo de Wall Street" é uma síntese superior, simultãnea e paradoxalmente crítica e louvor do "sonho americano". Com ele o nosso tempo encontra um cinema à sua altura, crítico sem deixar de ser brutal e comovente (sobre o cineasta, ver "A invenção dos sonhos", 22 de Abril de 2012).
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