“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 4 de maio de 2014

Por James Gray

    Não estreou ainda em Portugal o último filme do americano James Gray, "The Immigrant" (2013), uma absoluta obra-prima daquele que considero o melhor cineastra americano da actualidade. Com o próprio cineasta como co-argumentista, com Richard Menello, numa dupla que repete a de "Duplo Amor"/"Two Lovers" (2008), a quinta longa-metragem de Gray leva-me a debruçar-me atentamente sobre o seu caso.
                                                          
   Tendo-se estreado com "Viver e Morrer em Little Odessa"/"Little Odessa" (1994), James Gray insistiu no filme de gangsters nos seus dois filmes seguintes, "Nas Teias da Corrupção"/"The Yards" (2000) e "Nós Controlamos a Noite"/"We Own the Night" (2007), para nos surpreender depois com o excepcional melodrama que é "Duplo Amor". Para o seu regresso ele volta ao clima do filme de gangsters mas numa perspectiva histórica, pois "The Immigrant" passa-se em 1921, e cruza-o muito sabiamente com o melodrama na história de amores infelizes que, em tragédia, se consumam de formas diferentes, talvez felizes.
    O que me faz amar o cinema de James Gray é a sua superior arte da mise en scène, que hoje em dia muito poucos cineastas cultivam ainda, usada num filme com todos os ingredientes de género que, pela criação do plano, pelos ambientes de época, pela construção narrativa e fílmica, pelo trabalho dos actores apela ao mais recôndito de nós mesmos para podermos compreender e amar uma história aparentemente banal e personagens aparentemente comuns mas de uma grande actualidade.   
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     Não sei de quem, entre os clássicos da Nova Hollywood, os modernos e os independentes no cinema americano tenha uma tão inteligente compreensão das personagens dramáticas, da narrativa trágica como ele, sem procurar nem perseguir o grande espectáculo, tem. No limiar entre o grande espectáculo e a narrativa dramática, James Gray opta sempre pelo caminho mais difícil e, simultaneamente, mais pessoal, construindo planos de época, evocativos, de uma precisão visual espantosamente justa, em que sistematicamente nega a profundidade de campo em favor de uma sempre justificada desfocagem do fundo.
    Como os seus filmes anteriores, sobreudo "Duplo Amor", "The Immigrant" é uma espantosa história de amores conturbados, que como em François Truffaut ou Claude Chabrol se resolve entre dois homens, Bruno/Joaquin Phoenix e Orlando/Jeremy Renner, e uma mulher, a imigrante polaca Ewa Cybulska/Marilon Cotillard que, desprezada pelos seus tios, tenta a todo o custo resgatar a sua irmã, que com ela chegou à América mas ficou retida em Ellis Island. Direi mesmo que raramente a tragédia, suportada pelo destino, passa no cinema americano com tanta e tão bem sustentada pertinência como no triângulo amoroso deste filme.
                     
       Na verdade, invadido por uma violência interior que se exterioriza, "The Immigrant" deve ser visto como uma desesperada história de amor sem saída para ninguém a não ser para as duas irmãs, à custa do sacrifício dos homens que por elas se querem sacrificar - e tanto Bruno como Orlando são personagens sólidas, dependentes do amor pela mesma mulher, que cada um à sua maneira ambos cumprem.
        Agora a mise en scène, extremamente segura e sempre dominada por forma a dar conta da melhor maneira da dinâmica dramática numa dimensão de tragédia, atinge o seu ácume no plano final, que pressupõe e reflecte "Amor de Perdição", de Manoel de Oliveira (1978), e só posso manifestar o meu maior apreço por James Gray especialmente pela construção desse plano, lúgubre, esperançoso e trágico. Se o filme de gangsters é um género crítico, o seu cruzamento com o melodrama justifica-se aqui plenamente, como nos três primeiros filmes do cineasta, pelo carácter trágico que assume, o que só por si faz deste filme uma obra superior.             
                      
        Vejam os três filmes anteriores de James Gray, editados em dvd, e "Laços de Sague"/"Blood Ties", de Guillaume Canet (2013), de que ele é co-argumentista, enquanto esperam por esta sua última admirável obra-prima. Eu sou, decididamente, por James Gray, um grande, um fundamental cineasta-autor.     

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