Devo começar por dizer que enfrentei "Selma: A Marcha da Liberdade"/"Selma", de Ava Duvernay (2014), com alguma prudência, pois esperava o simples elogio póstumo, para a história, do herói dos direitos cívicos nos Estados Unidos ao estilo hagiográfico a que o cinema americano nos habituou. Felizmente estava enganado.
Sem se centrar exclusivamente em Martin Luther King/David Oyelowo, o filme segue-o num episódio fundamental, decisivo da luta dos negros americanos pelos seus direitos cívicos. A forma quase jornalística como o filme se constrói, dando espaço ao protagonista mas também aos seus interlocutores mais próximos e até aos seus adversários, permite uma visão clara da época, da questão, de como ela se desenvolveu e foi resolvida, deixando de fora o episódio final trágico do seu assassinato.
Afastado assim o lado martirológico do protagonista, "Selma: A Marcha da Liberdade" centra-se nos acontecimentos, a célebre marcha de Selma para Montgomery, naqueles que a organizaram e a viveram. E aí o filme faz a opção certa de só desenvolver em termos pessoais a relação do protagonista com a sua mulher, Coretta Scott King/Carmen Ejogo, deixando embora espaço para outros militantes dos direitos cívicos em termos de relações militantes.
Com um ritmo calmo e um grande equilíbrio formal, o filme conta-nos tudo o que de relevante então aconteceu, incluindo os diálogos de Martin Luther King com o Presidente Lyndon B. Johnson/Tom Wilkinson e a intervenção do Governador George Wallace/Tim Roth. E de tal modo o integra na marcha e no movimento que "Selma: A Marcha da Liberdade" se torna um documento fílmico exemplar sobre um líder, os seus seguidores e opositores, as suas decisões de acordo com a leitura que em cada momento faz dos melhores interesses da causa que defende e daqueles com os quais por ela luta, sem deixar aos adversários mais do que o lugar secundário que eles historicamente merecem.
O filme explora bem os momentos de maior emoção, como as mortes e o confronto na ponte, e de maior solidão de Martin Luther King, como quando ele dialoga com a mulher ou quando ele lhe escreve, o que distribui pontos nevrálgicos no seu desenvolvimento, deixando sempre um rasto de determinação e de luta que vai abranger gente de outras cores. Por seu lado, a presença de Tom Wilkinson, Tim Roth, Oprah Winfield como Annie Lee Cooper e Martin Sheen como juiz conferem a "Selma: A Marcha da Liberdade" um garbo e uma dignidade que lhe ficam muito bem.
Para o Presidente Lyndon Johnson era importante o que se pensasse 20 anos depois. "Selma: A Marcha da Liberdade" de Ava Duvernay diz-nos com grande apuro (muito bom o uso dos planos mais próximos em contraste com o plano geral e o plano médio) e dignidade o que se pensa 50 anos depois. Anoto que Brad Pitt figura como produtor executivo, o que o confirma como um dos homens mais inteligentes a trabalhar neste momento no cinema americano (ver "O dinheiro", de 29 de Março de 2014), num filme que conta com Oprah Winfield, uma das americanas mais inteligentes e populares da actualidade, na produção.
Sem comentários:
Enviar um comentário