“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 29 de janeiro de 2012

Contra o esquecimento

    Jia Zhang-ke, de quem estrearam em Portugal “Plataforma”/”Zhantai” (2000), “O Mundo”/”Shijie” (2004) e agora “Still Life – Natureza Morta”/”Sanxia haoren” (2006), e que foi alvo de uma retrospectiva no IndieLisboa 2005, é considerado o melhor cineasta daquela que é conhecida como a 6ª geração do cinema chinês. O seu percurso singular coloca-o à margem do cinema oficial, o que o tem levado a procurar a filmagem de proximidade em zonas do seu país que conhece bem.
    O último dos três citados filmes, “Still Life – Natureza Morta”, é uma obra belíssima que explora as relações humanas, como os anteriores, desta feita no cenário da construção da barragem das Três Gargantas, no Yang-Tsè, que vai alagar uma vasta superfície na qual se incluem espaços construídos e habitados, por esse motivo destruídos. Os protagonistas encontram-se na cidade de Fengjie, ele, Sanming/Han Sanming, à procura da mulher e da filha (da primeira por causa da segunda, que não vê há 16 anos), ela, Shen Hong/Zhao Tao, à procura do marido, que não vê há dois anos e de quem se quer divorciar.
                        
    Não se trata exactamente de uma busca das origens mas da perseguição de uma proximidade perdida por razões diferentes, na voragem da deslocação de populações gerada pela modernização da China. O muito grande pode originar a observação da multidão mas pode levar também à observação do individual em confronto com o enorme. À semelhança do que acontecia em “O Mundo”, é esta, obviamente, a perspectiva adoptada por Jia, que vai seguir as suas personagens numa procura eminentemente humana, mais que familiar porque dos afectos, como vimos a perceber.
    De pouco importaria, contudo, a humanidade das personagens e dos respectivos percursos, não se dera o caso de a visão do cineasta ser profundamente criadora do ponto de vista cinematográfico. De facto, é o filme que cria as personagens e dá visibilidade à situação, que cria e credibiliza, aliás de uma maneira muito simples, por forma a que a carga humana dos protagonistas não se dilua no meio, antes se afirme, em contraste, mesmo se pequeno, mesmo se ínfimo, com a dimensão do projecto em que aparecem. Os movimentos de câmara são, desde o início, estruturantes e musicais na sua perseguição desses mesmos protagonistas, sejam panorâmicas sejam “travellings”, já que rasgam o espaço do plano, na maior parte dos casos lateralmente. Os tons da fotografia são escuros apesar da nitidez dela e a iluminação, especialmente dos interiores, recorta as personagens contra um fundo sobre o qual abrem portas ou janelas sem que isso signifique uma abertura para elas. Vista de cima, a nova paisagem é assuntadora e nela os humanos não passam de pequenos insectos. Vivos e mortos partem pelas águas do rio, que indiferentes correm.
                                  
    Mas isto é apenas parte dos motivos que levam a que se trate de um grande filme. A desordem pessoal é descrita pelo autor como resultado natural de um processo que decorre, a construção de um grande projecto hidráulico, num quadro económico de que representa uma peça emblemática. Naturalmente, Jia não faz um documentário elogiando a grande obra. O documentário é objecto de um filme à parte, “Dong”, também de 2006, filmado na China e na Tailândia e centrado na figura de um pintor em processo de criação sobre os que trabalham no grande projecto, que como que comenta o processo de destruição e construção na mesma cidade de Fengjie. Assim, este documentário, também ele belíssimo, esclarece “Still Life – Natureza Morta”. O que neste, como em “Dong” está em causa é um processo de criação premente em contraste com uma destruição motivada por uma construção gigantesca. E a criação do pintor Liu Xiaodong, à semelhança da de Jia Zhang-Ke, é uma criação premente, febril, porque aquilo que um como o outro pretendem documentar é o que acontece durante um processo vertiginoso que, para se cumprir, não atende a possíveis interesses de menor dimensão. E é à passagem, vertiginosa e implacável do tempo que é contraposta a duração da vida humana, medida como uma pequena mas fundamental parcela num processo que a excede, num país imenso e com milénios de história.
   Ora é este contraste flagrante que leva a que as vidas dos protagonistas ganhem todo o relevo que merecem, tratadas numa dimensão que contrasta com a do imenso projecto e sempre em contexto social. A escala do olhar do cineasta é ainda a humana, individual e de grupo, e é esse motivo, já presente nos seus filmes anteriores, que o torna uma personalidade que conta com a hostilidade oficial na China. Claro que ele não esquece o geral, mas como que o comenta a partir do individual e da criação centrada no ser humano individual e no grupo, sempre muito importante, de que ele faz parte
    É evidente que o que está em causa no filme não são as belas imagens da China moderna mas as imagens justas, que a esclarecem do lado humano e do lado da criação. Tal tipo de imagens não especula politicamente, faz uma afirmação de fé na criação e na liberdade de criação dessas mesmas imagens, mais: na obrigação de as criar, para que fiquem como documento de uma época de progresso, de modernização, é certo, mas que tem também este outro lado, que é aquele que interessa à criação artística (de outro modo, estaria em causa a aceitação de um processo cego, feito para o futuro num presente que, sobretudo numa
sociedade com a dimensão da chinesa, rapidamente será esquecido). 
                         
    Assim, Jia filma a vida humana em escala, espacial e temporal, filma o esmagamento do indivíduo e a forma como ele apesar de tudo resiste, insiste em procurar as suas próprias referências humanas à escala humana, contrastando assim a mudança geral com a mudança pessoal, a destruição da cidade com a destruição das vidas. Esta perspectiva, que ilumina a obra do cineasta, é imcompatível com cumplicidades ou favores para com o discurso oficial, o discurso dos média, antes é adoptada mau-grado eles e, nesta medida, contra eles. Não se tratará, portanto, do aproveitamento político que o filme possa ter, e pode, mas da sua justificação, estética mas também política, como obra de arte cinematográfica.
    Aliás, a estética do filme, que joga com o muito grande e o de escala humana, que joga com o tempo novo e o tempo ainda humano, com o que muda e, ao mudar, tende a esquecer, a deixar para trás, sendo inteiramente consistente com a dos filmes anteriores do cineasta eleva este “Still Life – Natureza Morta” ao estatuto de obra-prima irrecusável que se torna imperioso conhecer. O encontro final de Sanming com a mulher é, assim, de uma estarrecedora beleza, de uma inacreditável humanidade, contrastando com o encontro frio entre Shen Hong e o marido. E percebe-se, depois de visto, que o filme tenha ganho o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 2006. São, assim, também considerações estéticas as que se podem produzir sobre este filme de uma dimensão política que não pode ser ignorada.

Setembro 2007

Sem comentários:

Enviar um comentário