“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 29 de janeiro de 2012

O sentido da vida

     Do romance de D. H. Lawrence “O amante de Lady Chatterley” e das suas diferentes versões sabemos tudo. De Pascale Ferran, realizadora de “Lady  Chatterley”, filme francês de 2006 galardoado com cinco Césares, os prémios maiores do cinema francês, não sabemos quase nada. E, no entanto, ela dirigira já, nomeadamente, “Petits arrangements avec les morts”, de 1993, filme bem interessante mas inédito em Portugal. Assim, este é o primeiro filme dela que estreia entre nós, e ainda bem que estreia.
    Baseando-se na segunda versão da obra de Lawrence, “Lady Chatterley e o homem dos bosques”, a cineasta constrói não apenas uma bela obra cinematográfica, no sentido da beleza visual e da composição visual e sonora, como uma obra narrativamente muito interessante, permanentemente a transmitir o lado transgressor que vem do romance em que se baseia. E é neste caso fundamental ter em linha de conta a narrativa, já que de imagens belas está o cinema, em geral, e o cinema francês, em especial, cheio, e reduzir a elas um filme sobre a dita obra literária seria sempre um risco, e um risco claramente a evitar.
     Ora o que sucede com Pascale Ferran é que, como se fosse uma veterana do cinema, que de certa maneira até é, ela se aplica em não ilustrar o romance mas em criar o filme como se fosse uma obra original sua, sem esquecer, no entanto, que está a trabalhar com um material narrativo carregado de sentido. De facto, ela liberta-se de possíveis influências cinematográficas e o que faz é interiorizar uma narrativa mítica conservando toda a frescura dela, como se fosse sua, e criar a partir dessa visão interior.
                                          
     Desse modo, não surgem como visíveis os bordões literários, apesar dos quadros escritos que pontuam de quando em quando o filme, que se apresentam como perfeitamente justificados, e da voz-off narrativa que ocasionalmente se faz ouvir. O que acontece com este “Lady Chatterley” é que ele é criado sobre a obra literária e sobre o mito dela para nos dar uma perspectiva própria, de uma grande simplicidade e de uma estarrecedora construção fílmica, que ignora os lugares comuns do cinema para arriscar na dimensão humana das personagens e da situação que vivem, procurando de cada uma delas mais que o perfil arquétipo, que também dá, as nuances, as subtilezes, e evitando quer o registo melodramático quer o academismo, velha ameaça no cinema francês.
    A reconstituição rigorosa de época não merece qualquer tipo de objecção, como era de esperar, e as personagens de Clifford e de Mrs. Bolton merecem uma atenção pouco mais que circunstancial, sem pôr em causa a concentração da narrativa em Constance Chatterly e Parkin. De facto, as outras personagens estão presentes mas percebe-se com todos os sentidos, incluindo o olfacto, que é por ela e por ele que passa o que de fundamental há neste filme e na transgressão dele. Passa por eles por intermédio dela, acrescente-se, porque é a ela que acompanhamos nas deslocações entre o castelo e a cabana, e é dessa maneira, do ponto de vista dela, que acompanhamos os encontros entre eles os dois
                                 
    Cumplicidade feminina, dir-se-ia, que a autora assume deliberadamente, mantendo o filme permanentemente num registo de sensibilidade dos dedos, da pele, dos contactos físicos entre as duas personagens. Naturalmente que isso beneficia este “Lady Chatterley”, retirando-lhe o lado voyeurista que se poderia esperar (e recear) para lhe dar um carácter eminentemente sensual e sexual, mas fora dos caminhos mais percorridos pelo cinema nesta matéria. Tudo está no filme, inclusivamente o longo tempo de espera depois de um encontro casual, as amarras que prendem a protagonista ao marido, a dependência deste, a presença constante da natureza, para que os encontros entre Connie e Parkin assumam toda a dimensão que têm entre eles os dois, e é nesse percurso entre marido inválido e amante que a acompanhamos a ela. Por vezes, em Parkin surpreendemos também momentos de espanto, sempre misturados com uma espécie de candura, que se considera habitualmente ser própria dos grandes solitários, mas também eles fazem parte da relação de infinita ternura que se estabelece entre eles. Uma ternura que parte da cumplicidade física em que se baseia.
    Desta forma, percebemos que uma relação tão íntima, que na época da publicação do livro (anos 20 do século passado) suscitou reacções escandalizadas que levaram à proibição dele, na sua passagem para o cinema pelas mãos de Pascale Ferran assuma uma figuração tão distintamente visual e sonora, jogando com as várias possibilidades expressivas do cinema – e penso aqui na variação de escala dos planos e na utilização do fora de campo, resultantes de um trabalho de planificação muito elaborado, na utilização dos ruídos in e off, nos planos vazios da natureza e do céu, mas também, e inevitavelmente, nos actores, Marina Hands e Jean-Louis Coulloc’H. De facto, entre eles os dois teve que se estabelecer a cumplicidade que passa para as personagens, o que será sempre de evidenciar porque neste caso reside nos actores a criação das personagens, sem que isso anule ou diminua a criação da realizadora, permanente instigadora e cúmplice de ambos na procura do gesto exacto, do momento certo, da expressão adequada, da melhor colocação do equipamento de registo.
     O que de mais secreto este filme nos transmite, mais que uma crítica social implícita, que aliás permanece clara (1), é a abertura que se verifica em cada uma das personagens a partir do seu encontro, do aprofundamento das relações mútuas e da intimidade assim criada. Uma abertura que se sente que é física mas é também interior, que lhes permite abrirem-se um para o outro mas também cada um para si próprio - e, no caso dela, até para a vida, o que com ele só acontece no diálogo final -, embora de maneiras e com exteriorizações diferentes, que acabam, porém, no mesmo banho de pura jubilação, de pura e simples celebração da vida.
                        
     Se visto por este lado, que está no filme e nos leva a sentir o cheiro da terra e do sexo, a sentir o perfume da saciedade e da partilha sem reservas, este “Lady Chatterley” torna-se uma experiência cinematográfica muito gratificante, tanto mais quanto rara no cinema actual e quanto conserva a carga transgressora do romance de que parte, a de uma felicidade simples, humana, imediata, física, que, dure o que durar, fica e marca e liga um ao outro os protagonistas muito mais que qualquer ritual poderia alguma vez fazer. E dá-se até o caso de essa relação feliz ser vivida apesar da instituição, neste caso matrimonial, e contra um inválido, por isso merecedor de especial compaixão, o que até faz parte da carga subversora do livro, que o filme conserva. A passagem da transgressão para o exterior torna-se, aliás, mais clara na segunda parte do filme, em que os jogos a que se entregam o marido e Mrs. Bolton substituem a longa espera do início.
     Depois do fim, entre Connie e Parkin poderá haver o que houver ou não houver, mas aquilo que viveram e que vimos, por simples e comezinho ficará como um ponto de abertura e de circulação entre eles, sem necessidade de explicações nem de metafísicas. Ali estiveram, ali viveram e foram, daquela maneira, felizes. Interrogações podem sempre colocar-se, mas não serão as que eles se colocam no final que verdadeiramente interessam?
    Acrescente-se que o filme tem uma versão longa, destinada à televisão e intitulada “Lady Chatterley et l’homme des bois”, com um início diferente mas que joga essencialmente com o mesmo material fílmico a que dá uma outra distribuição, embora contenha imagens novas e até suprima outras. Ao trabalho de nova arrumação de várias cenas alia-se o alongamento de algumas delas, Clifford e Mrs. Bolton assumem maior relevo, percebemos melhor Constance. Aliás, a comparação entre as duas versões permite aumentar a nossa admiração pelo trabalho da realizadora no campo da montagem, que era já apreciável na versão filme mas chega na versão longa ao requinte, até porque permite a comparação e perceber, assim, o nível de elaboração atingido.

Nota
(1) E para entender bem esta dimensão do filme tem todo o interesse ler o que escreveu Gilles Deleuze sobre D. H. Lawrence em “Critique et clinique” (Capítulo VI), actualmente disponível em português (“Crítica e Clínica”, Século XXI, Lisboa, 2003).

Setembro 2007

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