“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Voar sem asas

       O cinema é uma arte que, quando adquire e desenvolve a consciência de si própria nas mãos de um cineasta, ainda nos pode surpreender.
       Com “O Tapete Voador” (2008), João Mário Grilo dá sem qualquer hesitação um passo fundamental no cinema português e no seu próprio cinema. Aí ele filma, com ponto de partida na exposição “O Tapete Oriental em Portugal”, que esteve no Museu Nacional de Arte Antiga em 2007, a arte tradicional e a tradição do tapete persa no Irão actual. Mas filma os comentários de especialistas, a arquitectura, o prodigiosamente cristalino ruído da água a cair numa fonte, o trabalho das tecedeiras e os trabalhos sobre os tapetes com uma ideia de harmonia que se desprende da arte da tapeçaria como da arquitectura, com respeito da simetria, do ângulo certo e da distância justa, e desse modo o olhar não acidental do cineasta português adequa-se inteiramente ao seu objecto.
        Quando surpreende a natureza, no planalto, é a natureza através das imagens dela, primeiro de arquivo e a preto e branco, depois actuais e a cores, que é bela e nos surpreende, mas nós percebemos, além disso, que aquela paisagem natural ainda existe e faz ressoar em nós memórias cinematográficas graças às imagens do filme. Do lado humano, um pastor lamenta que a tribo tenha desaparecido, que com ela se tenha perdido o nomadismo, que não encontre já entre os mais novos a quem passar as ovelhas e a actividade, porque todos querem ir para a universidade para serem professores.
http://utaustinportugal.org/uploads/news/tapete018.jpg
      Da fundamental actividade das tecedeiras são-nos dadas imagens de uma espantosa, comovedora e física beleza: dedos velozes que tecem, entretecem (as aranhas) vistos do outro lado relativamente ao lugar da tecedeira – e é uma imagem fortíssima que transmite toda a tensão física, que a transparência parcial do material se limita a atenuar -, para depois nos ser mostrado o dispositivo cénico, a disposição cenográfica que de início apenas tínhamos visto pelo enquadramento da porta. Seguem-se os comentários de uma tecedeira que explica a muito difícil e decisiva arte dos nós e de uma outra, belíssima, que fala de si e do seu trabalho, concluindo que o que faz é uma arte porque o produto final dá prazer. Da fulcral arte das cores são-nos dadas explicações e exemplos de como fazer, a partir de produtos naturais, de como combinar,  são-nos mostradas as instalações.e os equipamentos, tradicionais e modernos. Por fim o acabamento, com o ruído das escovas que preparam os tapetes para enfrentarem os olhares alheios e a temporalidade.
        Depois viajamos até ao Museu Gulbenkian e à colecção de tapeçaria do seu fundador, passamos por um plano longo de árvores vistas de baixo (como em “Non ou a vã glória de mandar”, de Manoel de Oliveira, e em “Juventude em marcha”, de Pedro Costa) e vamos a Londres, à casa que foi de Sigmund Freud, cujo gabinete de trabalho está revestido de tapetes orientais. Mas o filme não acaba aqui, pois após o genérico regressa a imagem e a voz da tecedeira que dera a explicação sobre os nós, que se queixa do tempo que teve que esperar pela equipa de filmagens.
        Sendo o terceiro documentário de João Mário Grilo, depois de “Saramago - Documentos” (1994) e de “Prova de Contacto” (2003), sobre José de Guimarães, “O Tapete Voador” demonstra que a arte do cineasta de “O Processo do Rei” e de “Os Olhos da Ásia”, de “O Fim de Mundo” e de “Longe da Vista”, funciona como um work in progress, assumindo que no cinema, pelo menos no cinema dele, existe a necessidade do documentário para dizer certas coisas, para mostrar certas coisas que não cabem na ficção. Além disso, a construção serial, em que cada capítulo inclui, além do título,  uma explicação escrita, torna o filme especialmente claro e acolhedor, faz com que ele pense – pense o que filma, se pense a si próprio como filme e nos pense a nós, espectadores -, e isso revela uma consciência do cinema e dos seus meios que, dessa forma, já vinha pelo menos de “Prova de Contacto” e que rareia no cinema actual - a utilização de imagens de arquivo vinha, por sua vez, do filme sobre Saramago.
        A este nível, o documentário torna-se criação poética no cinema, que junta e agrega imagens de uma grande beleza, palavras esclarecedoras, ruídos e silêncios pouco frequentes – também música - para nos dar harmonia e tensão criadora num objecto fílmico final que, em soberana demonstração de auto-consciência, culmina com um comentário irónico e crítico – depois de mostrar o local da clínica, termina com a prática da crítica, em termos deleuzianos. Dobrando-se sobre a dobra, “O Tapete Voador” mostra-nos um olhar ocidental, um olhar português informado e curioso sobre uma terra e uma arte mal conhecidas, como o seu povo e a sua cultura, mas mostra-nos esse povo e essa cultura vistos do lado de dentro, na sua paisagem física, humana, artística – também industrial, a tinturaria -, como resultado dum compromisso com o que o documentário filma e quer mostrar, como resultado atingido do próprio filme naquilo que ele quer descobrir e por isso procura para o desvendar. Sem se dispensar de fazer a outra viagem, para o exterior, que dá conta da volta ao mundo dada pelos tapetes persas de uma maneira vertiginosa, culminando com a remissão para a viagem interior.
https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgiV16BpLc_dAWT-UiPb6ZpVi1ciBFFgzD09uqmpLq0vFwhsFZ_C5iJ9wR8lFp6fTDavA8sFOPE1GtLk1JO5TgpkyLbHaxw404hjPQ42melxmMWiYnI0Ogn46pZuTtNIynyhKShap9oZNI/s400/2008-09-05-0513-26.jpg 
        Nas palavras do realizador, este é um filme sobre o próprio cinema. A confirmá-lo está a construção, a beleza e a inteligência dele, para além das afinidades que a arte primitiva do cinema possa ter com a arte tradicional do tapete persa. A poética original que dele se desprende em vários momentos e no seu todo revela-se, assim, como ajustada ao que filma e dá a ver, uma poética pessoal e o momento actual dela na obra do cineasta, em que ela é sempre procurada, construída, criada a partir dos materiais de base com meios puramente cinematográficos e de um modo filmicamente justo, como aqui acontece de forma clara e superior sem o apoio narrativo. Não são, de facto, acidentais as simetrias criadas, depois da deslocação da câmara e do olhar por entre os pilares, pelas panorâmicas para a direita no planalto, para a esquerda sobre o tapete no Museu Gulbenkian e debaixo das árvores, de novo para a direita sobre outro tapete na casa de Freud, como não são acidentais os pequenos movimentos de câmara sobre os tapetes, na primeira parte e no final, no mesmo local, onde se tornam de um rigor abissal na aproximação ao pormenor abismal do desenho - e isso para além de se perceber sente-se, até pelo contraste com os planos fixos, e é muito interessante. Aí, na simetria, nas rimas e nas réplicas, reside uma poética específica deste filme, construída com grande mestria e reveladora de uma grande sabedoria.
         Por tudo isto, que é muito, de uma grande beleza e de uma enorme inspiração cinematográfica, João Mário Grilo confirma-se com este filme como um documentarista a ser muito seriamente levado em conta no cinema português, com a particularidade de nos seus documentários perseguir a criação noutras disciplinas artísticas e, assim, as possíveis intercecções entre elas e o cinema.

Dezembro 2008

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