“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Paul Thomas Anderson: O Enigma


      “Haverá Sangue”/”There Will Be Blood” (2007) é a quinta longa-metragem de Paul Thomas Anderson, realizador americano até agora mais conhecido por “Magnolia” (1999), embora todos os seus outros filmes tenham muito interesse. E se era já, a meu ver muito justamente, reconhecido como um dos mais promissores cineastas da sua geração, a partir de agora pode e deve ser considerado um nome cimeiro do cinema de todos os tempos.
      De facto, ao adaptar o romance de Upton Sinclair “Oil!” (1927), P. T. Anderson adopta uma estratégia visual de concentração e não de dispersão, quer em termos de tratamento das personagens, o que até se percebe, quer em termos visuais, o que é francamente inesperado, pelo menos para mim. Que a desmesurada ambição de Daniel Plainview/Daniel Day Lewis o leve a seguir um caminho que deixa tudo deserto á sua volta em busca de mais, sempre mais petróleo e, consequentemente, de mais, cada vez mais dinheiro até se percebe no contexto americano do início do século XX. Agora, que, para o transmitir, o realizador se centre no protagonista de uma forma que o isola e destaca visualmente, como que para o cortar e separar do que o rodeia tem alguma coisa de surpreendente na medida em que sucede em diversos momentos, e não momentos quaisquer mas momentos capitais com recurso à quebra da profundidade de campo.
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     Outros o têm feito, dir-me-ão, em tempos recentes (por exemplo, Michael Mann), e não serei eu quem irá dizer o contrário. Simplesmente, o filme de Paul Thomas Anderson toma como pontos de referência cinematográficos, nomeadamente, “Aves de rapina”/”Greed”, de Eric von Stroheim (1924) pela temática da ganância e da prospeccção, que nesse filme era do ouro e aqui é do petróleo, e “O mundo a seus pés”/”Citizen Kane”, de Orson Welles (1941), o filme inaugural do cinema moderno americano, pela concentração numa personagem desmedida acompanhada até à morte, o que é dado na parte final deste filme pelo diálogo com o filho adoptivo e pela sequência final entre Daniel e Ely Sunday/Paul Dano.
      Ora sendo isto verdade e até uma evidência que o tratamento dos exteriores e a consulta ao médico comprova, quanto ao primeiro daqueles filmes, e o tratamento do protagonista em geral e na parte final na habitação que mandou construir em especial, quanto ao segundo, ao ponto de se poder dizer que esses filmes são citados expressamente pelo realizador, o que é certo é que quer um quer o outro eram cinematograficamente marcados pelo uso da profundidade de campo, que foi mesmo um dos motivos que os tornou memoráveis, e dessa forma ficou assinalada como marca técnica e estética nos contextos históricos do cinema americano em que cada um deles foi feito
      Deste modo, e ao assumir como referência tais pontos cimeiros, estritamente marcados e identificados na história do cinema mundial, P. T. Anderson quebra deliberadamente uma continuidade estética e estilística sem descer da altíssima qualidade em que eles se situam.
      Eu sei que se podem dizer várias coisas contra este “Haverá Sangue”: que é desequilibrado no tratamento das suas diversas partes, que é um projecto desmesurado do seu realizador, que mostra com cinismo o cinismo das suas personagens, que mostra o lado do predador quando muitos outros mostraram, em questões semelhantes, o lado da presa. Mas tudo isso me parece irrelevante perante a ambição efectiva da aposta do cineasta e a forma como ele a ganha, trocando as voltas à estética do cinema, à história dela ao longo do século XX, e situando uma personagem no seu contexto físico, a terra desértica, em que ela cresce, se afirma para crescer cada vez mais, numa alternância de planos gerais, esmagadores, e de grandes planos, reveladores, até à sua passagem para uma dimensão de alucinação explícita.
      Também sei que haverá quem fique deslumbrado pelo trabalho de adaptação, feito pelo próprio Paul Thomas Anderson, e ele é de facto notável, pelo trabalho dos actores, de facto excepcional, em especial Daniel Day-Lewis, pela fotografia a cores (o que não acontecia nos dois outros filmes citados, salvo as eventuais tintagens do primeiro, que eram a preto e branco) com a assinatura de Robert Elswit, pela música que contém escolhas exemplares e que tudo o mais embala, reveste e contamina de maneira superior. Tudo isso é importante e contribui decisivamente para a altíssima qualidade do filme na sua composição final, da
responsabilidade do cineasta.
      Mas a mim o que me surpreende mais que tudo o resto e mais do que me surpreendeu o tratamento temporal de “Magnolia” é esta pequena questão de estética cinematográfica, que como que envolve todas as outras questões que o filme suscita. Efectivamente, o que justifica e o que significa esta quebra de profundidade de campo na linhagem fílmica que o filme abertamente reivindica, para além da preocupação de se centrar na figura do protagonista e passando por ela? E até com a circunstância de não se verificar sempre e com a implicação de não se verificar o uso do plano-sequência típico de Welles.
      Se Paul Thomas Anderson é um cineasta excepcional, como este filme comprova à saciedade, tudo em “Haverá Sangue”, da terra ao mar, do debaixo da terra aos jorros de petróleo, das comunicações até ao mar, da Bíblia até ao espaço, naturalmente aberto e encerrado pela acção humana, deve fazer um sentido, que se percebe passar por um questionamento da vocação original da América para, a partir dele, tentar entender-lhe o presente. E de facto ajuda mesmo a entendê-lo, esse presente, numa terra em que grandeza e miséria são indissociáveis.

Junho 2008

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