“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 28 de janeiro de 2012

A interiorização da culpa

   Gus Van Sant é um dos cineastas com obra mais interessante e consistente no actual panorama do cinema americano. Arvorando-se em consciência crítica de uma América em mudança secular, ele convida-nos a olhar os paradoxos internos e as contradições do seu país, os seus medos e os seus fantasmas mas também a sua realidade.
   Se ”Elephant” (2003) cumpria um determinado percurso nesse sentido centrado na violência e “Últimos Dias”/”Last Days” (2005) o alargava e diversificava ao inspirar-se no mítico líder dos Nirvana, Kurt Cobain, “Paranoid Park” (2007), baseado em novela de Blake Nelson, como que conclui do lado de uma paranóia colectiva que, valha a verdade que se diga, encontra múltiplas motivações no quotidiano de que nos dão conta os meios de comunicação. Em “Últimos Dias” ressoava o requiem por uma geração, mas em “Paranoid Park” encontramos como que o reverso de “Elephant”, pois o protagonista, Alex/Gabe Nevins, é um criminoso involuntário, ele também vítima do seu acto, e isso vem dizer alguma coisa mais que os filmes precedentes: uma angústia pessoal interiorizada, que não explode, ao contrário do que acontecia naqueles dois outros filmes.
    Ora há nisto alguma coisa de especialmente paradoxal e perverso, pois já não assistimos a agitados comportamentos pulsionais mas a uma espécie de banalização do mal, que o torna tanto mais ameaçador quanto inesperado, não premeditado, não preparado.
   Na verdade, a família e os amigos de Alex são do mais comum e corriqueiro na sociedade americana, e ele próprio surge como um rapaz perfeitamente igual aos outros, a que faltará a referência masculina adulta que estava presente em “O Bom Rebelde”/“Finding Forrester” (2000) e por isso se encontra especialmente à deriva.
   Sem pretender ver no filme o que nele não está, tenderei a ver em “Paranoid Park” como que a interiorização de uma culpa colectiva que pode emergir em acto, mesmo se involuntário, em qualquer momento, em qualquer lugar. Curiosamente, a “culpa” individual não é assumida publicamente, o que vem aumentar o nível de recalcamento, e vai ser através de uma carta que Alex vai desabafar o que aconteceu – carta essa que vai servir de motivo narrativo estruturante do filme.
   Este assume, assim, uma construção complexa muito interessante, que nos leva a avanços e recuos no tempo, sempre justificados pelo contexto em que a narrativa se verbaliza, e que vai estar na origem de a visualição do crime involuntário de Alex só surgir com o filme já muito adiantado. E é a partir dessa verbalização, nunca expressa em termos públicos, que nos é permitido aceder à interioridade da personagem, perceber a teia de atalhos em que ele se mete involuntariamente – e isso é fisicamente dado pelo caminho por ele percorrido, à semelhança do que acontecia logo no início de “Últimos Dias”.
   Claramente distinguidas, figuras femininas e figuras masculinas delimitam o percurso de Alex, importantes para ele mas a ele de uma maneira geral indiferentes. E é nesse percurso solitário que ele vai ter que construir/reconstruir o que lhe aconteceu como forma de construção/reconstrução pessoal, no que se manifesta um lado dostoievskiano antes não especialmente detectável nos filmes do cineasta, também ele responsável pela originalidade de “Paranoid Park”.
   A fotografia suja vem de filmes anteriores, e a imagem demora-se na escuridão que se faz sobre o protagonista, nas folhas que caem das árvores no seu caminho, mostrando exteriormente a interioridade de Alex. Todavia, a direcção de fotografia está agora a cargo, não de Harris Savides, como nos filmes anteriores desde “O Bom Rebelde”, mas de Christopher Doyle, que já fora responsável pela fotografia de “Psycho”, o remake literal de Hitchcock feito em 1998 por Gus Van Sant - filme notável ele também nesse fundamental aspecto visual, em que a cor assumia tons adequadamente carregados, sombrios – e colaborador permanente e fundamental de Wong Kar-Wai durante 14 anos, entre 1990 e 2004.
   E momentos extremamente belos e significativos surgem para o final do filme sob a forma de estruturas tubulares, de túneis percorridos pelos skaters, o que remete para uma espiral de caminhos repetidos, circulares, de que se adivinha problemática a saída.
                        
    Sem pretender ver no filme outra coisa além do que nele está, repito, parece-me sintomática esta interiorização de uma culpa que advém acidentalmente ao protagonista como imagem de uma América que se debate com os seus próprios fantasmas como com os seus próprios actos, que nunca sabe onde e como vão surgir. E não se trata aqui, como não se tratava nos filmes anteriores de Gus Van Sant, de lidar com os inimigos terroristas do exterior, mas de tentar perceber, mostrando-os, os nódulos irresolvidos da sociedade americana, sem tentar identificar culpados individuais mas mostrando um clima de alheamento mútuo em que todos parecem viver, que uns dos outros separa e isola e onde subitamente a violência, mesmo se imprevista, pode eclodir.
   Depois de ter estreado “Mala Noche” (1985), sua primeira longa-metragem, Gus Van Sant é agora um cineasta bem conhecido dos espectadores portugueses e que se perfila como um criador sempre interessante, desassombrado e de uma grande inspiração cinematográfica, que vale a pena acompanhar. Ele não pretende explicar nos seus filmes a violência da sociedade mas mostrar-nos casos exemplares dela a partir dos quais todos possamos reflectir. E ao passar para o lado interior dessa violência, o de uma culpa sem expiação, ele dá em “Paranoid Park” um passo de certa maneira inesperado mas extremamente esclarecedor, acompanhado por um uso cada vez mais solto, mais perfeito e mais livre da linguagem cinematográfica, o que deve ser devidamente assinalado.

Dezembro 2007

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