“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 28 de janeiro de 2012

Uma tragédia clássica

   “Promessas Perigosas”/”Eastern Promises”, de 2007, o último filme de David Cronenberg, segue na senda realista do anterior “Uma História de Violência”/”A History of Violence”, de 2005, embora a família do filme anterior surja agora também sob a forma de máfia – a máfia russa em Londres. 
  Sem sombra do fantástico com o qual o cineasta foi inicialmente identificado e a que regressou recorrentemente, este “Promessas Perigosas” surge recheado de referências cinematográficas óbvias (Francis Ford Coppola, em especial, que se tornou um canône no género) para romper e traçar o seu próprio caminho. Com argumento de Steve Knight, com o qual abundantemente colaborou, como costuma fazer, Cronenberg narra um caso particular extremamente interessante em que ressurgem com novas configurações e novos contornos figuras arquétipas.
    A carga simbólica que reveste o embate entre Nikolai/Viggo Mortensen e Kirill/Vincent Cassel em torno da figura paterna de Semyon/Armin Mueller-Stahl está, porém, sempre encarnada em figuras físicas muito bem desenhadas, de que Anna/Naomi Watts e a respectiva família fazem um apropriado contraponto, já que a relação que ela estabelece com os membros da família mafiosa se torna motivo central da narrativa – e haverá que ter presente a recorrência da família como motivo temático na obra de David Cronenberg. De facto, é à volta da tradução de um diário manuscrito que Anna entra em contacto com a comunidade russa em Londres e também com Nikolai, e isso vai ser fundamental para o avanço do filme.
http://thecia.com.au/reviews/e/images/eastern-promises-1.jpg
   Mas o que torna este decisivamente superior e superiormente cronenberguiano é a sua construção inteiramente clássica, mais ainda que “Uma História de Violência” sem qualquer assomo de rebuscamento formal. Tudo aqui é preciso, exacto, da planificação à montagem, passando pelo uso da elipse, sempre superiormente utilizada como é apanágio do cineasta, o que torna uma narrativa de grande carga física perfeitamente clara na sua turbulência, na complexidade dos meandros da sua intriga.
    E se a narrativa assume contornos bíblicos, shakespeareanos, é não só devido às personagens e à sua caracterização mas também graças à intensidade física que as interpretações implicam. Por esse lado, o das tatuagens mas não só ele, entramos de pleno no universo corporal que, de “Experiência Alucinante”/“Videodrome” (1982) a “A Mosca”/“The Fly” (1986), de “O Festim Nu”/“Naked Lunch”(1991) a “eXistenZ” (1999), atravessa a obra do cineasta, de que é uma das marcas distintivas. De facto, há em “Promessas Perigosas” uma energia que extravasa em violência, que é física e fisicamente dada, envolve a carga de ambiguidade das personagens e da narrativa e confere a esta um carácter dramático inusitado até catapultar tudo e todos para um plano catártico de tragédia.
    Mas se esse lado físico do filme é importante, não o é menos o cruzamento de espaços geográficos a que nele assistimos, numa referência extremamente actual á mobilidade e ao cruzamento de culturas em que vivem todas as sociedades da Europa ocidental. E penso mesmo que a deslocação geográfica do filme para a Europa (onde já decorria, também em Londres, “Spider”, de 2002) é muito importante e sintomática da multiplicidade de referências culturais a que David Cronenberg está aberto. Aliás, no caso dele percebe-se que isso suceda sem cair na banalidade da superprodução internacional, já que se ajustam plenamente os intuitos do cineasta, o meio em que decorre o filme e a localização geográfica deste, com referências múltiplas.
    “Promessas Perigosas” surge, assim, como um filme justo, exactamente cronenberguiano no modo como as imagens justapostas segregam, diria que fisicamente, uma narrativa que é justamente aquela, e não outra. Cineasta culto e de referência, Cronenberg constrói com particular sabedoria as cenas de violência, em especial a da luta nos banhos públicos, e as cenas de elevada carga dramática, por via de regra resolvidas de uma forma cinematográfica muito simples, clássica, e por isso extremamente eficazes, como a da tentativa de afogamento da criança.
    E se o filme, pelo seu lado de intriga de família mafiosa, envolve uma elevada dose de ambiguidade ela advém em larga medida da sua concentração na personagem de Nikolai, especialmente no final carregado de sugestões de uma dualidade de que aparentemente ele não sai e que faz parte integrante da poderosa carga sugestiva do filme. Se ele é vencedor daquela contenda, para quem e para quê serviu o seu triunfo? E esta pergunta, evidentemente perturbadora, faz parte essencial da trama dramática de “Promessas Perigosas”, e dela não somos distraídos por quaisquer artifícios, formais ou narrativos. Deve, aliás, notar-se que também esse jogo do duplo, da duplicidade, assombra a obra do cineasta, desde “A Mosca” e “Irmãos Inseparáveis”/“Dead Ringers” (1988) de forma muito acentuada, dela fazendo parte e conferindo-lhe um interesse muito especial, ao ponto de dever mesmo ser considerado parte integrante da sua modernidade.
                                   
   Devo ainda fazer uma referência, que não é frequente encontrar, ao extraordinário talento de David Cronenberg na escolha dos actores e na direcção deles, coisa que até surge como bastante clara neste filme mas que é consistente com um continuado trabalho do cineasta na procura do actor certo para cada papel e está na origem da perfeita adequação que daí habitualmente resulta, com o acréscimo precioso da direcção dele – e neste filme o lado masculino do elenco está sobre-representado devido às suas características de tragédia clássica, que encena os lugares do poder.      
   Além disso, a fotografia de Peter Suschitzky, colaborador do cineasta desde ”Irmãos Inseparáveis”, os cenários de Carol Spier, que com ele trabalha desde “Fast Company”, 1979 (com excepção de “Crash”, 1996), o guarda-roupa de sua irmã Denise Cronenberg, sua colaboradora desde ”A Mosca”, e a montagem, aqui classicamente “invisível”, de Ronald Sanders, responsável por este sector nos filmes dele desde “Fast Company” (com excepção de “A Ninhada”/“The Brood”, 1979), marcam a tonalidade visual e o clima muito característicos dos filmes do autor nos ambientes muito específicos e nas personagens notavelmente caracterizadas, nomeadamente do lado emocional, deste “Promessas Perigosas”. E também a música, com motivos russos, de Howard Shore, que colabora com David Cronenberg desde “A Ninhada” (com excepção de “Zona de Perigo”/“The Dead Zone”, 1983), não deve ser considerada alheia ao peculiar impacto do filme, já que dele participa de maneira assinalável. Numa palavra, em “Promessas Perigosas” temos a equipa de colaboradores habituais do cineasta canadiano a trabalhar em pleno.
   Agora que o filme, centrado na máfia russa em Londres e aí muito bem caracterizado, apesar de aparentemente frio encontre ressonâncias universais e intemporais inequívocas deverá ser considerado como fruto dos muitos talentos acumulados de David Cronenberg, que insisto em considerar como um dos mais importantes criadores cinematográficos vivos, possuídor de um universo pessoal e de um imaginário inteiramente coerentes em que, ao contrário do que se diz, não é apenas o corpo que está em jogo, uma vez que nos seus filmes o lado físico e o lado psíquico sempre se replicam, reflectem/refractam e assim se ampliam.

Dezembro 2007

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