“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Billy Wilder, o implacável

        Foi um dos últimos grandes mestres de um certo entendimento clássico do cinema, o que o não impediu de ser um dos principais modernos do cinema americano no desassombro da sua crítica feroz do sistema e dos seus valores, que não escondia, porém, o seu apreço pela sua pátria de acolhimento. Chamava-se Samuel Wilder mas ficou conhecido como Billy Wilder, o seu último filme datava de 1981 e morreu em 27 de Março de 2002 em Los Angeles.
      De origem judaica e nascido em 22 de Junho de 1906 em Sucha, Galícia, ainda no Império Austro-Húngaro, depois de viver uns anos em Viena, onde estudou Direito e trabalhou como jornalista, fixou-se em Berlim, onde continuou como jornalista e foi até dançarino de cabaret, vindo a revelar-se como co-argumentista de "Menschen am Sonntag", filme de Robert Siodmak que em 1929 veio confirmar o cinema alemão numa via realista, diferente do expressionismo que dominara na Alemanha durante a primeira metade dos anos 20. Como muitos outros, sai da Alemanha em 1933, ano fatídico, como se sabe, e depois de uma breve estadia em Paris, durante a qual dirige "Mauvaise graine" (1934), o seu primeiro filme como realizador, fixa-se nos Estados Unidos, onde volta a trabalhar como argumentista e dirige "A Incrível Susana"/"The Major and the Minor" (1942) e "Cinco Covas no Egipto"/"Five Graves to Cairo" (1943). Mas é no ano seguinte que assina o seu primeiro grande filme, "Pagos a Dobrar"/"Double Indemnity", com argumento seu e de Raymond Chandler, baseado em conto de James M. Cain, que ficou como um modelo do filme negro, que durante a década de 40 se iria impor em Hollywood. De 1945, após um curto documentário sobre a libertação do campo de concentração de Bergen-Belsen, "Death Mills", data "Farrapo Humano"/"Lost Weekend", notável pela sua crítica do alcoolismo. Depois de dois filmes em que apura o seu estilo e a sua visão do mundo, "A Valsa do Imperador"/"The Emperor's Waltz" e "A Sua Melhor Missão"/"A Foreign Affair" (ambos de 1948), dirige em 1950 um dos filmes míticos da história do cinema, "Crepúsculo dos Deuses"/"Sunset Boulevard", com William Holden, Gloria Swanson e Eric Von Stroheim, que foi e continua a ser um dos melhores filmes de sempre sobre o próprio cinema.
                                               
      Até então tinha dado mostras de um tom e de um estilo pessoais, que ao longo dos anos cinquenta se iriam apurar e revelar como inspirados nos de um outro europeu, também ele emigrado para os Estados Unidos, Ernst Lubitsch, com o qual chegou a colaborar no argumento de dois filmes: "A Oitava Mulher do Barba Azul"/"Bluebeard's Eighth Wife" (1938) e "Ninotchka" (1939). No entanto, aquilo que em Lubitsch fora humor e subtileza nos filmes e na própria "mise en scène", tornou-se nele crítica virulenta dos equívocos e paradoxos do sistema americano e dos seus valores - colaborara também no argumento de "Bola de Fogo"/"Ball of Fire", de Howard Hawks (1941), baseado em história sua.
      Nessa via se inserem, durante a década de 50, "O Grande Carnaval"/"The Big Carnival" (1951), com Kirk Douglas, e "O Inferno na Terra"/"Stalag 17" (1953), com William Holden, o primeiro sobre o trabalho sensacionalista da imprensa, o segundo sobre um campo de prisioneiros de guerra. Mas vão ser "O Pecado Mora ao Lado"/"The Seven Year Itch" (1955), sobre a irresistível vizinha de um homem casado, em que pela primeira vez dirige Marilyn Monroe, e "Quanto Mais Quente Melhor"/"Some Like It Hot" (1959), comédia desbragada que continua a ser uma das melhores comédias de sempre da história do cinema e foi o segundo e último filme em que dirigiu Marilyn e o primeiro em que trabalhou com Jack Lemmon, os dois filmes que vão revelar em plenitude toda a pujança da sua inventiva e todo o seu talento de explorador de novos talentos e director de actores, com uma mulher deslumbrante, luminosa e muito picante nova actriz. Ainda na mesma década, dirige Audrey Hepburn em duas comédias românticas, "Sabrina" (1954), em que ela contracena com Humphrey Bogart e William Holden, e "Ariane"/"Love in the Afternoon" (1957), em que lhe dão réplica outras duas lendas do cinema, Gary Cooper e Maurice Chevalier, assim prosseguindo o lançamento de uma novíssima actriz romântica. Um filme singular sobre a lendária primeira travessia aérea do Atlântico Norte, "A Águia Solitária"/"The Spirit of St. Louis" (1957), com James Stewart no papel de Charles Lindbergh, permite-lhe mostrar a sua admiração pelo espírito da sua nação de acolhimento, e um filme policial, baseado em Agatha Christie, "Testemunha de Acusação"/"Witness for the Prosecution", em que reúne Charles Laughton, Marlene Dietrich (que já dirigira em "A Sua Melhor Missão") e Tyrone Power e tem como director artístico e cenografista, tal como em "Ariane", o mítico Alexander Trauner, completam esta fabulosa década de 50 na sua obra.
                                     
        De 1960 data "O Apartamento"/"The Apartment", outro grande e mítico filme da obra de Billy Wilder, em que ele junta pela primeira vez Jack Lemmon e Shirley MacLaine, que formaram o par comum, moderno da época, e que é a sua terceira colaboração com Trauner e a terceira com o seu co-argumentista favorito, I. A. L. Diamond (as anteriores tinham sido em "Ariane" e em "Quanto mais quente melhor") - e note-se que o próprio Wilder sempre foi co-argumentista dos seus próprios filmes, até "Crepúsculo dos Deuses" com Charles Brackett como seu co-argumentista favorito). Pode considerar-se que a veia crítica-satírica-humorística do cineasta, que tinha tido os seus pontos mais altos em "O Pecado Mora ao Lado" e "Quanto Mais Quente Melhor", encontra aqui o seu prolongamento natural de forma brilhante, que prossegue, naquela que é a fase de maturidade da sua criação, com "Um, Dois, Três"/"One, Two, Three" (1961), "Irma la Douce" (1963), novamente com Jack Lemmon e Shirley MacLaine, "Beija-me, Idiota"/"Kiss Me, Stupid" (1964) - estes dois de novo com a colaboração de Trauner - e "Como Ganhar Um Milhão"/"The Fortune Cookie" (1966), o filme que lança a parelha Jack Lemmon/Walter Matthau.
       A partir daqui, acentua-se na sua obra uma certa tendência para a repetição, que vinha pelo menos de "Beija-me, Idiota", com a sua revisitação da infidelidade conjugal. Numa espécie de divertimento pessoal, dirige "A Vida Íntima de Sherlock Holmes"/"The Private Life of Sherlock Holmes" (1970), penúltima colaboração de Alexander Trauner, e parodia-se a si próprio em "Amor à Italiana"/"Avanti!" (1972). A seguir realiza "Primeira Página"/"The Front Page" (1974), baseado na peça de Ben Hecht e Charles MacArthur, datada de 1928, que já tinha sido levada ao cinema por Lewis Milestone em 1931 e por Howard Hawks em 1940, e em que junta pela segunda vez Lemmon e Matthau, faz uma nova incursão crítica no mundo do cinema com "O Segredo de Fedora"/"Fedora" (1978, e última colaboração com Trauner) e, três anos depois, encerra a sua obra com "Os Amigos da Onça"/"Buddy Buddy", a sua última variação com Lemmon e Matthau.
       É evidente que, mesmo quando em parte se repete ou repete outros no final da sua obra, Billy Wilder sempre se acrescenta e os acrescenta, com uma segurança e uma serenidade que ainda hoje causam a maior admiração.

                                                  
      Um dos maiores cineastas e autores da história do cinema, um daqueles que deram a este o indiscutível estatuto de arte, Billy Wilder foi sempre um inconformista, um homem que remou contra a maré do sucesso fácil, mas ao elaborar um estilo, uma estética e uma temática próprias foi muito justamente reconhecido em vida como grande entre os maiores. Fantástico explorador de talentos e director de actores - William Holden, Kirk Douglas, Marilyn, Audrey Hepburn, Jack Lemmon com Marilyn, com Shirley Mac Laine, com Walter Matthau -, os seus filmes merecem ser vistos e revistos para conhecer a obra de um dos maiores, mais irónicos e cáusticos críticos das regras da sociabilidade humana, uma obra que se mantém plenamente actual mesmo na sua virulência, sarcástica, ácida e melodramática. No lado mais cruel dos seus filmes talvez tenha pesado mais a influência dos filmes mudos de Eric Von Stroheim que a de Lubitsch, mas chamar-lhe "moralista" esquece o realismo crítico que ele sempre praticou, e que o sucesso dos seus filmes resulta de a sua crítica acerada incidir, afinal, sobre a própria natureza humana.
       A importância do sexo e a prevalência do dinheiro como sinónimo de poder e contrária aos interesses mais humanos, a falta de escrúpulos, as raízes e manifestações da incompreensão humana e a compreensão dos seus mecanismos, com as respectivas consequências sociais, são motivos recorrentes na obra de Wilder, que ele soube tratar com um enorme domínio das formas cinematográficas, da narrativa cinematográfica e dos seus intérpretes, cuja escolha rasgou novos horizontes ao cinema americano a partir dos anos 40. Se a isto juntarmos uma perfeita coerência temática e estética, em que a atenção dedicada ao lugar-comum virava do avesso as normas estabelecidas e as próprias regras da sua infracção, sempre com uma enorme ternura pelas suas personagens, e em que a imagem era trabalhada exaustivamente e os diálogos sempre excelentes, teremos justificado em poucas palavras todo o peso e toda a dimensão que ele e a sua obra tiveram no cinema, e a razão pela qual o conhecimento dos seus filmes continua a ser fundamental para conhecer a evolução da linguagem e das formas cinematográficas, de que eles formaram um paradigma ainda hoje não ultrapassado.

Dezembro 2006

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