“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Sob o mesmo signo

      Com “Espelho Mágico” (2005), Manoel de Oliveira prossegue a sua obra imparável de uma forma superlativa. Baseando-se de novo em romance de Agustina Bessa-Luís, desta feita o segundo volume de “O Princípio da Incerteza” (trilogia da qual o primeiro volume, “Jóia de Família”, tinha sido já objecto de um filme anterior dele, precisamente com o título da própria trilogia), intitulado “A Alma dos Ricos”, o realizador mais importante do cinema português constrói, como sempre, obra pessoal, com o rigor e a austeridade que lhe conhecemos, mas também com uma ironia que lhe é igualmente peculiar.
     Mais que qualquer outro filme recente seu, este o filme de Oliveira que mais me faz pensar em “O Passado e o Presente” (1971), o filme que lança a segunda fase da obra dele, com o seu jogo de duplos (aqui de espelhos), com a sua acerada visão crítica no que poderia ser uma via renoiriana dessa obra mas acaba por ser, aí como aqui, uma via iberista através da proximidade com Luis Buñuel. Eu explico-me, embora seja fácil entender o que quero dizer, uma vez que, no momento em que escrevo, Oliveira já terá concluído o seu filme seguinte, “Belle Toujours”, no qual prolonga o mítico “Belle de Jour” do mítico cineasta espanhol.
     Se há filme em que o mestre português trata essa singular conflitualidade latente entre os humanos, sempre pronta a despertar quando o motivo pulsional impera, esse filme é, depois de “A Caça” (1964), o referido “O Passado e o Presente”, em que o conflito surge também sob a forma de duplos, ou gémeos. Sempre considerei este filme muito importante, porque penso que ele estabelece uma certa regra de um certo jogo na obra do autor. Simplesmente, essa veia de inspiração reaparece posteriormante de forma desgarrada em filmes como “Os Canibais” (1988), “A Caixa” (1994), “Party” (1996), o mencionado “O Princípio da Incerteza” (2002) e agora neste “Espelho Mágico”.
                                 
       Mas devemos ter presente, nesta original aproximação entre o maior cineasta português e o maior cineasta espanhol, que Manoel de Oliveira continua a ser retintamente português, embora um português que sabe o que é o cinema e estabelece uma rede, uma teia cúmplice com o melhor do cinema espanhol.
       Não me parece que a implacável crítica dos tabus religiosos seja o que mais interessa ao autor de “Acto da Primavera” (1963), mas se há filme seu em que ele por aí anda é precisamente este “Espelho Mágico”, em que o sagrado é dessacralizado apesar de se manter toda a sua carga simbólica, o que em Buñuel também acontecia, mas de outra maneira. De facto, aqui Alfreda/Leonor Silveira assume uma religiosidade familiar através das duplicações especulares, o que a leva a ultrapassar, integrando-as, todas as “tromperies” dos outros – e, no entanto, através daquilo a que Gilles Deleuze chama, em Buñuel, “as pulsões da alma”. Se, dessa maneira, ela passa para “o outro lado do espelho” por intermédio dos laços de género que mantém será outra questão, precisamente a questão que dá ao filme a sua peculiar marca de autor, para além de todos os motivos fílmicos formais aqui presentes.
       Se bem me faço entender, este é o filme em que melhor Manoel de Oliveira revela e demostra uma fundamental cumplicidade feminina a que os homens, mesmo os mais próximos, mesmo os mais compreensivos não têm acesso. Este filme é, assim, muito mais do que aquilo que as belas imagens dele podem mostrar, muito mais do que as palavras desencontradas dele podem sugerir, porque é o mais radicalmente baseado no mistério do feminino de todos os filmes do autor até agora. Pura genialidade dele (e de Agustina). Celsa/Isabel Ruth lá está para o confirmar.
       Seja-me permitido agarrar nesta actriz para estabelecer a passagem para o mais recente filme de Paulo Rocha, “Vanitas ou O Outro Mundo” (2004), cineasta que é o mais próximo continuador de Oliveira, como ele natural do Porto.
       Paulo Rocha foi o criador cinematográfico da criatura fílmica Isabel Ruth com um dos filmes fundadores do “novo cinema português” dos anos sessenta do século XX, “Os Verdes Anos”, de 1963. A ela tem regressado de vez em quando, como acontece em “O Rio do Ouro” (1998), mas é neste filme que, depois do irregular “A Raiz do Coração” (2000), o cineasta repega na criatura para dela fazer o centro de um filme. Para tal regressa ao Porto e constrói uma narrativa aparentemente fútil, com argumento de Regina Guimarães, em que sobre a vaidade do título reflecte a respeito de Nela Calheiros/Isabel Ruth e do meio da moda  em que ela se move, daqueles que com ela convivem.
       Se um colar circula no filme e este se centra em fundamentais mortes de mulheres, esse colar simboliza o que delas permanece para além da morte, o que conserva o rasto delas para sempre, mesmo depois de elas terem passado para o outro lado. Sempre presas do efémero, os homens deixam-se seduzir pelas aparências, pelos toques femininos, como é bom que suceda, mas elas, as mulheres, sabem que, se tudo começou com elas, elas próprias também acabam, à semelhança do que acontece com qualquer transitório homem.
                    
          Centrado na morte, e na morte da mulher, o último filme de Paulo Rocha vai, assim, ao encontro do seu primeiro, embora com uma carga sexual muito mais forte e clara. Só que aqui o cineasta transcende-se ao transcender as meras aparências (à semelhança de Manoel de Oliveira em “Espelho Mágico”), e se nos dá da mulher a mortalidade e a permanência dá-nos do homem o labirinto, à semelhança, também neste aspecto, de “Os Verdes Anos” – e até, para maior clareza, a filha, neste caso Mila/Joana Bárcia, torna-se adoptiva.
           Não sei quanto tempo este filme esteve em cartaz, creio que pouco, o que está de acordo com os tempos festivos que permanentemente vivemos, também no cinema. Não sei, no entanto, de filme mais fundamente verdadeiro e comovedor em todo o cinema português recente que este “Vanitas”, que nos arrasta para além das aparências para nos deixar perante os próprios mistérios da vida e da morte. O que acontece, precisamente, por ser um filme inteiramente pessoal, em que Paulo Rocha não se limita a “debitar” cinema para gerir uma carreira, mas se entrega, desta vez sim, até à raiz do coração. Curiosamente, será também este “Vanitas” o filme em que Rocha se mostra mais próximo do lado pulsional português da obra de Oliveira, o do lado renoiriano, neste caso sim, dela, porque nele se explana o "grande teatro português", com as suas regras e os seus jogos.
         Além disso, será de chamar a atenção para o facto de o cineasta aqui integrar imagens da Noite de S. João provenientes do seu documetário “As Sereias” (2001), que assim são utilizadas num outro filme, este de ficção, passado no Porto, que se inicia numa Noite de Finados.
        Mas quais regras e quais jogos, perguntar-se-á quem me ler. São universais e, em termos de meta-cinema são assim: de pai João Bénard, em Oliveira, em filho João Pedro Bénard, em Rocha, todos caímos, julgamos perceber e acabamos sempre nas trevas; de John Cassavetes, contracenando com Gena Rowlands através de Ben Gazzara, a François Truffaut, contracenando com Fanny Ardent através de Bob Hoskins, em “Paris, je t’aime” (2006), continuamos presentes, e enquanto, como no final desse filme, tivermos o campo-contracampo entre Gena Rowlands e Juliette Binoche, com Gazzara a confraternizar com Hoskins, continuaremos a cair também no cinema deles (Cassavetes, Truffaut, Depardieu – certamente -, ou outros) e delas (Gena, Fanny, Juliette ou outras). Isto digo eu.

Março 2007

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