“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Um mundo verdadeiramente novo

              É conhecida a história de Pocahontas e do Capitão John Smith, que constitui como que um mito fundador da nação americana. É conhecida a obra, feita de poucos e temporalmente muito distantes filmes, de Terrence Malick: todos os filmes dele são de qualidade superlativa. Do encontro do cineasta mítico com o mito era de esperar o melhor, e as expectativas concretizaram-se plenamente.
           De facto, “O Novo Mundo”/”The New World” (2005), não sendo, embora, o melhor do cineasta, é um filme em que ele confirma todas as expectativas, se não mesmo certezas, que se criaram com os seus filmes precedentes: as que afirmavam ser ele de um talento raro, único, no panorama do cinema americano. Na linha de um John Ford mas muito diferente dele, Malick cria neste filme uma obra pessoal de grande inspiração visual e plástica, tratando o mito ao nível da natureza, selvagem e idílica, do início do século XVIII. É neste quadro que as personagens se definem, que os conflitos resultantes do “cruzamento de olhares” entre o velho e o novo mundo ganham credibilidade.
            E quando falo de quadro não me limito a referir um “pano de fundo” cenográfico para um conflito. Na verdade, a maneira como o cineasta cria o seu filme faz com que personagens e cenário natural se tornem indissociáveis, com o humano como parte da natureza e a natureza como parte integrante do humano, de uma forma que não é frequente encontrar no cinema mas que é perfeitamente consistente com os filmes anteriores de Malick – para não irmos mais longe, e convém ir, com “A Barreira Invisível”/”The Thin Red Line” (1998), seu filme imediatamente anterior.
                                   
         E é dessa maneira, inteiramente visual e fílmica, que nós percebemos que há os habitantes nativos daquele novo mundo e os homens que vêm de fora. Quero eu dizer na minha que a cor da pele não basta para distinguir uns dos outros, há que perceber como cada um dos grupos se move sobre a terra, uns sobre a terra sua e outros sobre a terra alheia, e tudo isso está muito bem dado visual e filmicamente no filme. Aliás, é desta mesma maneira que o enlace entre o Capitão John Smith/Colin Farrell e Pocahontas/Q’Orianka Kilcher se dá e se estabelece, como é dessa maneira que os conflitos dele com os seus companheiros de viagem surgem. E é, assim, natural que seja da mesma maneira que se estabelece o contraste, no final do filme, entre a “Old Albion”, com a sua arquitectura monumental, e esse novo mundo, em que o lugar dos monumentos é ocupado pela natureza. Tudo natural, tudo claro, límpido, porque tudo de uma grande sabedoria cinematográfica.
       Esta sabedoria, esta “ciência” do cinema, radica-a o cineasta num grande cuidado com o enquadramento (excepcionais os planos tirados do interior contra a porta ou a janela abertas) e na direcção dos actores no espaço criado por esse enquadramento, mas também nos excelentes e sempre apropriados movimentos de câmara, muitas vezes muito amplos e na sua maioria para a frente. Dessa maneira Terrence Malick cria o espaço e o tempo do seu filme – o espaço-tempo deste -, o que passa necessariamente por uma montagem certa, precisa, que determina o ritmo e a cadência deste “O Novo Mundo”, respeitando os enquadramentos e subvertendo-os, e dando um sentido novo e mais dinâmico aos movimentos de câmara.
                       
          De mais? Quase o diria, de tal maneira as personagens são vistas às vezes quase de passagem, mas é assim mesmo, é esse o peso justo, porque o estilo justo do cineasta, e é ele que permite entender não só o conflito entre as personagens mas também o conflito delas com a natureza – e são prodigiosos os planos dela sem personagens.
        Uma poética de Terrence Malick neste “O Novo Mundo” torna-se o entendimento justo, indispensável do filme, como o era já nos seus filmes anteriores. Será apenas de sublinhar, neste aspecto, que os elementos fílmicos formais para que chamei a atenção vêm todos dos filmes anteriores do cineasta, designadamente do já citado “A Barreira Invisível”, que se torna, assim, o filme fundador desta tardia mas excepcional segunda parte da obra do cineasta. Elementos esses que, deve notar-se, estavam já presentes nos seus filmes iniciais (“Os Noivos Sangrentos”/”Badlands”, 1974, e “Dias do Paraíso”/”Days of Heaven”, 1978), mas aqui surgem mais trabalhados, o que só confirma que o talento (poupo as palavras) do autor não é de modo nenhum acidental.
           Há bons e maus, civilizados e selvagens neste filme? Talvez, mas o que parece interessar Malick mais do que isso é a civilização dos selvagens em confronto com a selvajaria dos civilizados, que foi, como todos sabemos, a forma como nasceu o mito e como nasceu a nação americana, aliás também em confronto com as potências coloniais da época, o que o filme, também nesse aspecto respeitando quer o mito quer a história, mostra, dá a ver muito bem.

Março 2007

Sem comentários:

Enviar um comentário