“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Que nada se sabe

         Negro, manchado de luz que permite ver. Luzes como fontes visíveis de iluminação ou uma luz exterior, natural. Espaços vazios, pedaços, retalhos – sombras -, prédios, chaminés, ruínas, árvores - ferros -, tecidos bordados, recortes, recantos – escadas -, mas também corpos, vivos e mortos.
        Negro que as luzes não travam, não quebram, não  vencem, para nele apenas traçarem linhas de visibilidade que permitem vislumbrar o que ainda existe antes de o quadro se fechar. São os últimos clarões que atravessam alguns espaços, já vazios. Os detritos, os resquícios derradeiros surgem a preto e branco, com precisão e variedade de linhas, quase pictórica mas bem fotográfica.
         Já tudo acabou, vida e viventes, e as fotografias de Paulo Nozolino são como que criadas de memória sobre aquilo que existiu antes do fim. As próprias formas, os próprios objectos não têm densidade, profundidade, surgem lisos sobre uma superfície lisa, sem distinção entre próximo e distante, como colagens. Os espaços, vazios (repito), não têm já o que os preencheu que não sejam outros espaços vazios que neles dasajeitadamente se encaixam, numa sombria montagem.
                                
         Como negro sobre negro recortado, não metálico, não brilhante, mas contrastado como num filme adormecido no fundo da memória, já alheia à história, a uma história. Pequenos quadros de uma pintura abstracta a preto e branco naturais (não exactamente branco, mas cinza, de cinzas abandonadas, esquecidas), porque essa era a própria condição do que foi fotografado, em condição de acesso a uma origem, a uma raiz primordial que assim tivesse sido primitivamente. Sem metáforas, sem sentidos segundos, aquilo foi assim e assim é recordado depois de tudo ter acabado por um fotógrafo de impressionante rigor, que reproduz de cor aquilo de que ainda se lembra.
        Retalhos, pedaços, ruínas, escombros últimos e todavia primordiais, porque de outra coisa anterior não resta já memória alguma: corpos, vida, movimento. O próprio tempo parou naquele instante de que já nada podia nascer, naqueles espaços onde já nada podia crescer. Linhas desenham formas. Arestas sem gumes atravessam, delimitando-os, espaços desabitados, separam a luz da sombra que criam, em locais exactos onde nem músicas, gritos lancinantes, ruídos estridentes se ouvem. O tempo parou sobre destroços e naquele negrume não há beleza para além da das formas e dos contrastes.
      Não há lugar para embriaguez, emoção ou lágrimas, o pulso não acelera, os pêlos e os cabelos não se põem em pé, a memória não se comove. Nada daquilo existe, talvez nunca tenha mesmo existido - e esse é o mistério maior destas fotografias: elas criam de memória, fotografam as impressões deixadas na memória pela recordação de algo a que não se assistiu. Elas fotografam os vestígios, já não fantásticos, muito menos fantasmáticos, de coisas, objectos, seres antecedentes ou simultâneos do fim, elas fazem aparecer o que foi/terá sido e que nem a própria imaginação se atreveria a criar.
       Não falam de liberdade, glória ou poder, de vitórias, descobertas ou conquistas. As fotografias abstraccionistas de Paulo Nozolino recolhem o que ficou guardado num fundo sem fundo de um caos simultaneamente final e primeiro, de que nada se salvou, de que ninguém sobreviveu. Que talvez nem sequer tenha existido, não tenha tido um antes nem um depois.
                                         
       São fotografias feitas com cinzas frias que criam formas abstractas, espaços vazios e desligados. Não há luto por memórias antigas, já que o que aqui está em causa são memórias de memórias esquecidas, reminiscências aplainadas sobre o vazio, no outro lado, oco, do espaço e do tempo, sobre o qual se acumularam. Nem sequer se tratará de acreditar na imagem ou na realidade – acredita-se sempre na realidade da imagem - mas de criar, em contraste velado, ensombreado, o incriado a partir do já desaparecido, do que talvez nunca tenha mesmo existido.
         Os sentidos não são impressionados, o visitante não se sente chocado nem surpreendido. Todos sabemos que foi assim, que é assim que o artista tem sempre que criar o que antes do seu gesto não existia para que olhos alguns o vejam. Nem mesmo as palavras podem, sem elas, dizer bem o que estas fotografias dizem de abissal, mostrando-o. Nem os olhos guardam memória do que (não) viram (o vazio) nem os ouvidos do que (não) ouviram (o silêncio) – e os outros sentidos não são para aqui chamados.
        A parede é negra e nela se recortam pequenas fotografias negras sulcadas por alguns traços, clarões de luz que permitem vislumbrar, em pequena escala, alguns fragmentários objectos isolados, desligados. Sombras de sombras assombradas de que somos nós que fazemos a montagem, de que somos nós que criamos o sentido, se disso formos capazes.
        Não há crepitações, restolhares, barulhos, confusões. Nem ventos ou brisas sopram, nem cascatas ou gotas de água caem. Calaram-se piano, viola, percussão e vozes. O Sol consumiu-se até se apagar. Suspenso, o último momento poético foi fixado, criado por estas 32 fotografias de "Bone Lonely".

Junho 2009

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