“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Poética de Terrence Malick

        Terrence Malick terá nascido no Texas em 1943, tendo-se licenciado em filosofia em Harvard em 1965 com uma tese sobre a teoria do conhecimento em Martin Heidegger, em que teve como orientador o filósofo Stanley Cavell. Isto é dado como certo. A partir daí as fontes tornam-se menos afirmativas: terá obtido uma bolsa de estudo para fazer um doutoramento em Oxford, o qual não terminou por desentendimentos com o seu orientador nessa universidade inglesa – propor-se-ia tratar concepções do “mundo” em Heidegger, Kierkegaard e Wittgenstein, segundo uns, teria viajado pela Alemanha durante os anos 60 do século passado, aí teria conhecido pessoalmente Heidegger e feito uma tradução de ”A essência do fundamento”, segundo outros. Seja como for, não terá concluído o doutoramento, o que é dado como certo, e terá regressado aos Estados Unidos, onde terá ensinado filosofia no famoso M. I. T. e publicado artigos na Newsweek, no New Yorker e na Life, o que também é dado como certo.
          Entretanto, em 1969 terá publicado a sua própria tradução de Heidegger, que já referi, e terá entrado no American Film Institute, no Center for Advanced Film Studies, onde terá obtido o respectivo diploma e feito contactos muito úteis, com gente como Jack Nicholson e o agente Mike Medavoy.
          O pensamento de Malick leventará um tipo de questões que, no pensamento americano, o colocam próximo de Henry D. Thoreau, Walt Whitman, Herman Melville, nomeadamente, isto é, de pensamentos fundamentais na criação da modernidade americana.                                
          Entretanto, e a meio dos “seventies”, faz dois filmes, “Os Noivos Sangrentos”/”Badlands” (1973) e “Dias do Paraíso”/”Days of Heaven” (1978), com melhor crítica que receitas e… desaparece. Isso mesmo: desaparece da circulação, o que leva a que seja comparado a escritores como J. D. Salinger e Thomas Pynchon (algumas fontes dão-no como a viver e a ensinar em Paris, França e no Texas), até reaparecer para fazer “A Barreira Invisível”/”The Thin Red Line” no final do século passado (1998) e recentemente “O Novo Mundo”/”The New World” (2005), filmes que completam a sua escassa filmografia até hoje.
           Quanto ao motivo de tão longo afastamento e silêncio, todos dizem que foi por Malick não se vergar às exigências da indústria cinematográfica, com a qual não tiveram, contudo, grandes dificuldades outros cineastas da sua geração (Spielberg, Copolla, Scorsese, De Palma, por exemplo, embora F. F. Copolla tenha tido dissabores de produção e De Palma tenha feito os seus últimos filmes na Europa.), o que torna o caso dele parecido com o de Michael Cimino, só que este trabalhou até 1980, ano em que “rebentou” com a produtora de “As Portas do Céu”/“Heaven’s Gate”, seu terceiro filme, e depois disso fez apenas mais quatro filmes.
           Se falo disto é para contextualizar o cineasta no cinema americano, na sua geração, a dos chamados “movie brats”, e para dizer que não tenho conhecimento de projectos dele que durante a sua longa ausência do cinema não tenha podido concluir.
         Perante este panorama, tão completo quanto possível, poderia ser uma tentação fazer uma aproximação entre o cinema de Terrence Malick e o pensamento de Heidegger, mas não foi essa a minha opção, até porque esse é um estudo que está feito por vários autores. Preferi dedicar a minha atenção a aspectos formais dos filmes dele que me parecem pouco frequentes no cinema actual, nomeadamente no cinema americano, e que a meu ver definem a sua poética fílmica.
     Os aspectos estilísticos definidores de uma poética do cineasta para que pretendo fundamentalmente chamar a atenção são os seguintes:
- movimentos de câmara;
- inserção de grandes planos ou planos de pormenor de espaços vazios;
- tratamento do tempo, isto é, montagem.
            Esclareço desde já que este último ponto, o tempo, a montagem, é a meu ver decisivo na criação de uma poética fílmica, uma vez que, sendo o cinema uma arte do movimento e do tempo, é o tratamento deste que vai permitir trabalhar aquele, qualquer que seja o tipo de movimento (e de intriga, acrescente-se) que esteja em causa. Isto é uma evidência para quem conheça alguma coisa da poesia como género literário.
          No entanto, e se fizermos a distinção entre o tempo como questão poética e o tempo como questão fílmica, julgo que não terei grande dificuldade em fazer-me entender. Portanto, e para já, esqueçamos pura e simplesmente as palavras “poética” e “poesia” e falemos apenas de tempo fílmico.
          Embora hoje em dia nós não nos demos muito conta disso, foi por exigências de criação temporal que foi criada uma linguagem cinematográfica, no início do século passado. Na verdade, o cinema, que tinha nascido com o plano fixo de duração muito limitada dos filmes dos irmãos Lumière, cedo se deu conta, através dos seus criadores (dos criadores de filmes) de que era preciso contar uma história, primeiro ponto, e de que era preciso fazer filmes mais longos, segundo ponto, isto se queria passar de um mero invento científico e técnico. Dito por outras palavras, para existir o cinema precisou de se viabilizar como espectáculo e como indústria, e para isso precisou de atrair espectadores. Espectadores que estivessem na disposição de pagar cada um muito pouco a troco de algum tempo de diversão, de entretenimento. Ora para tal era preciso não só contar histórias (e lembro-vos a importância da narrativa desde os primórdios da Humanidade, da narrativa oral, da narrativa gráfica, desenhada, pintada, e da narrativa escrita, e da importãncia da narrativa dos primórdios da modernidade até à actualidade…) mas também variar, diversificar o modo de as contar visualmente (e recordo que o cinema era inicialmente desprovido de som, pelo menos na forma como o conhecemos actualmente).
          A linguagem cinematográfica que historicamente nasceu desta necessidade baseou-se nos seguintes elementos, sem os quais o cinema não passaria de teatro filmado:
            - variação da escala dos planos;
            - variação do ângulo de tomada de vistas;
            - movimentos de câmara; e, por consequência necessária,
            - montagem.
          Se pensarmos só nos dois primeiros elementos, escala e ângulo, logo percebemos que estão em causa vários planos e já não apenas um, o que exige imediatamente que se faça a ligação entre esses vários planos. Ora essa é uma exigência com óbvias implicações espaciais: há que criar um espaço fílmico espacialmente consistente. Mas uma exigência que arrasta consigo inevitáveis implicações temporais: quanto tempo fazer durar cada plano, cada sequência de planos, cada filme.
           Numa lógica puramente representativa, segundo a qual o cinema é, deve ser uma mera reprodução da realidade, não se levantam grandes questões temporais, já que o filme deve adoptar o tempo estritamente necessário à reprodução do movimento, humano ou outro. Mas o cinema cria blocos de movimento/duração, pensa com blocos de movimento/duração (Gilles Deleuze), e chamo a atenção para que não é apenas movimento nem apenas duração – apenas movimento seria teatro ou animação, apenas tempo seria música.
         Batemos aqui numa questão central do cinema: é, ou deve o cinema ser uma mera reprodução da realidade, uma representação da realidade?
         A esta pergunta a resposta tem sido sempre afirmativa. O cinema representa a realidade filmada. Todos sabemos, no entanto, que salvos raros e contados casos de representação contínua, isto é, de coincidência do tempo fílmico e do tempo real, o cinema não só selecciona o que filma como selecciona os momentos que filma, normalmente de acordo com um guião prévio. Além disso, e como é óbvio, o cinema, isto é, o criador do filme selecciona como filmar e estabelece o ponto de vista no filme.
         Nada de muito importante, dir-me-ão, e serei o primeiro a concordar convosco. Ninguém se interessa, ou cada vez menos se interessa em saber quem faz o filme, quem é o autor – e contudo foi este o momento escolhido por Terrence Malick para regressar ao cinema. Uma questão de tempo, de “timing”.
            Voltemos, pois, a Malick e aos seus filmes.
          Talvez que o elemento que mais singulariza os dois filmes iniciais dele seja precisamente este: o tempo. É certo que eles têm elementos temáticos e elementos formais, nomeadamente os que referi, movimentos de câmara e planos vazios, que os caracterizam (e estou a falar apenas dos dois primeiros filmes dele, "Os Noivos Sangrentos" e "Dias do Paraíso", neste momento), mas posso dizer que aquilo que neles em primeiro lugar salta à vista, e de uma maneira chocante porque não habitual, é o tratamento do tempo.
         O que a meu ver caracteriza o caso de Terence Malick é o tratamento musical do filme em termos temporais, que é reforçado pela presença da voz-off narrativa. Era aqui que eu queria chegar neste momento, para a partir daqui reflectir.
          Que tempo musical é este?
         Se bem atentarmos, os filmes de Malick passam-se, todos os quatro, em plena natureza, no “wild country” os dois primeiros, numa ilha do Pacífico o terceiro, na Virgínia do início do século XVIII o último. Isto é muito evidente, mas quero aqui chamar a vossa atenção para isso porque penso que esse elemento é fulcral nos filmes dele não apenas a um nível de maior evidência.
            Malick pretende, nos seus filmes, inscrever as suas personagens na natureza em que se movimentam como elemento essencial delas, personagens, e deles, filmes. E aqui acho que devo ceder um pouco, mas só um pouco, o necessário para me fazer entender, à tentação de Heidegger. Há alguma coisa que das personagens o cineasta nos pretende desvendar que está ligado à natureza, e alguma coisa da natureza que ele nos pretende desvendar e que está ligado às personagens, e isso justifica, quanto a mim, o ritmo musical específico dos seus filmes. Um ritmo que não é apenas sonoro, entenda-se, porque o ritmo que aqui tenho em vista é visual, sonoro e audiovisual.
            Eu vou tentar explicar-me melhor.
         Se os filmes de Terrence Malick têm alguma coisa de um ritmo musical é, em primeiro lugar, pela inserção de planos vazios, em segundo lugar pelos movimentos de câmara, em terceiro lugar pela montagem visual e sonora.
           Ora o que os referidos elementos criam nos filmes do cineasta é um ritmo da natureza e do humano nela, um ritmo que dá conta precisamente da adequação e da desadequação entre o ritmo humano e o ritmo natural. Penso que isto é muito importante, porque hoje em dia tendemos a medir tudo pelo nosso ritmo pessoal, sem percebermos que o nosso ritmo pessoal é aquele que nos é imposto pelo meio e pelo tempo em que vivemos. Ora o que o nosso cineasta faz nos seus filmes é puxar as personagens para um plano da natureza, não só ao inscrevê-las numa paisagem que define um determinado espaço (vegetação, água, rochas, céu) mas também intercalando planos de pormenor ou apertados de animais ou de outros elementos da natureza.
          Eu não vou aqui dizer que o ritmo musical dos filmes de Malick é o deste ou daquele compositor clássico, moderno ou contemporâneo. O que vou dizer é que ele procura (e a meu ver consegue) impor nos seus filmes o ritmo da natureza (e para isso servem o espaço escolhido e os citados planos vazios – vazios de seres humanos, entenda-se), para nele inscrever as suas personagens com os seus ritmos próprios decorrentes da irredutível individualidade de cada uma delas e assim nos fazer entender, por comparação com a natureza, como cada um desses ritmos individuais se define.
        O que aqui pretendo dizer é que o acordo e o desacordo das personagens com a natureza define o ritmo visual e também sonoro dos filmes de Terrence Malick, e que isso nos é dado em termos puramente visuais e sonoros como superlativa criação fílmica. Mas não apenas isso.
         O nosso cineasta não tem, salvo por momentos em “O Novo Mundo” e até em “A Barreira Invisível”, a ideia de uma utopia do paraíso terreal ou do “bom selvagem”, não nos quer convencer de que a verdade, o bem, a beleza estão na natureza por contraposição ao homem, à civilização, até porque – e é necessário ver e entender isto – a natureza nos filmes dele é naturalmente desregulada e naturalmente predadora. Apenas nos quer mostrar como uma evidência que há a natureza e que há o homem e que qualquer deles tem ritmos próprios, sendo que os deste podem ou não adequar-se aos daquela.
          De algum modo, essa evidência quer puxar-nos, como às suas personagens, para o ritmo da natureza como ritmo fundamental e primário, e isso tem o mérito de, na actualidade, chamar a atenção para aquilo a que tendemos a prestar cada vez menos atenção, nestas sociedades de consumo em que tudo consumimos sem saber tantas vezes o quê ou como se faz: a natureza. Daí que o percurso fílmico de Malick tenda para as origens: as origens do conflito, as origens da civilização, as origens do seu país, depois de ter andado não à toa pelo século XX americano  (anos cinquenta, anos da I Grande Guerra, anos quarenta).
        Poucos cineastas como ele procuram actualmente ou procuraram na História do Cinema esse primitivo do homem na natureza sem o reduzir a fórmulas de momento ou de moda como Terrence Malick o faz, apenas na tentativa de chegar a desvendar alguma coisa de fundamental sobre a vida e os humanos confrontando-os e contrastando-os com a natureza. E isso não é feito apenas através de meios visuais (e sonoros) por um lado e meios narrativos por outro, mas através de ritmos criados pela montagem, através de ritmos audiovisuais que se separam do objecto que é representado para melhor o entender.
          E aqui voltamos ao problema atrás referido como fundamental da representação no cinema.
        Se há cineasta actual que utiliza a representação dos objectos, animados e inanimados, para criar alguma coisa de novo e de diferente deles mas que ajude a compreendê-los esse cineasta é Terrence Malick.
         Digo e sublinho isto porque evidentemente que o cinema é uma arte da representação, no sentido de reprodução da realidade e no sentido de encenação, o que naturalmente expele qualquer veleidade de uma sua leitura como simples duplicação da realidade. Por aí, pela estratégia da simples reprodução como meio de acesso a uma verdade humana andará o documentário no seu melhor, feito pelos seus melhores praticantes (Frederick Wiseman, por exemplo). Mas não é essa a estratégia de um cineasta como Malick, que tão pouco acredita num cinema da “transparência”, como era o cinema americano clássico. O que ele procura (e a meu ver consegue) mostrar-nos é precisamente a opacidade do humano, a não-transparência dele quando situado num meio natural, que mostra como um todo e de que destaca parcelas como termo de comparação.
         E essa diferença, essa não-coincidência entre humano e natural não resulta de um simples contraste, o que até não seria muito complicado, mas do ritmo criado pela montagem, que é musical de maneira a melhor inscrever o humano desacerto, o humano conflito no seu contexto natural. Ora é isso que é criativo, original, pessoal nos quatro escassos filmes da produção de Malick, esse ritmo que ora é dinâmico (os movimentos de câmara) ora é estático (os inserts de planos vazios) mas é sempre determinado pela montagem, que por assim dizer sobredetermina esses filmes.
        O nosso cineasta não é um autor que se possa catalogar por géneros nem por escolas ou tendências cinematográficas. É um homem do cinema do seu e do nosso tempo, que produz contrastes para mostrar desadequações através de um ritmo que não é o do cinema massificado, nem o do audiovisual, nem o do videoclip, mas que os pressupõe e os integra (pelo menos nos seus dois últimos filmes) numa poética musical própria, especificamente fílmica. Para mostrar desadequações por contraste com adequações, sem cair no simplismo de um cinema de mensagem, ecologista ou outra. Ele é, e isso nos interessa, o que os seus filmes dele mostram. Ele é os filmes que cria e que são, inequivocamente, seus, que têm o ritmo que ele lhes quer dar e que se tratou aqui de tentar identificar como definidor de uma poética própria de carácter musical, o que o põe ao nível do melhor cinema, da melhor arte de sempre. E que outros cineastas sejam possuídores de uma poética, inclusivamente musical, própria (penso, por exemplo, em Martin Scorsese, em que é mais operática) não faz mais que confirmar a original poética decorrente do tratamento do tempo de Terrence Malick, na medida em que estão em causa poéticas muito diferentes e bem diferenciadas por razões temáticas, estéticas e estilísticas.
          Há outros elementos formais, visuais (a composição do plano e o consequente tratamento do espaço) e sonoros (o uso da voz humana e dos ruídos), relevantes na criação da poética malickiana, tal como há a narrativa, incluindo as personagens, o que não pude referir senão em linhas muito gerais mas que é tanto mais importante quanto os argumentos são sempre da autoria do próprio cineasta, que permite também falar de uma poética da narrativa nos filmes dele, mas tudo isso terá que ficar para uma outra oportunidade.
          
Setembro 2007

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